Editorial

Marcelo José Abreu Lopes
Paradoxos
Published in
11 min readJan 1, 2018

Você descobrirá que 2016–2017–2018 é 1966–1967–1968

A atual quadra em que vivemos é mais do mesmo, é a História que se repete como farsa. No entanto, a humanidade parece insistir em ignorá-la, o que também sempre fez parte dessa farsa que é a nossa tragédia sem fim. Para quem ainda está perplexo com o espetáculo do ódio, da intolerância, da boçalidade, da aparente capacidade ilimitada da produção de estupidez que se apresenta sob nossos narizes constipados, vai aqui uma "dica" preciosa: dê uma passadinha pelos jornais e revistas do Brazil há 50 anos. Tal leitura parecerá um tanto profética, no mínimo!

Naquela época, às vésperas e nos primeiros anos da ditadura — e é curioso observar como esta não chegou de repente, na calada da noite entre 31 de março e 1º de abril de 1964, mas foi se instalando antes e depois, passo a passo, enquanto muitos nem percebiam —, os moralistas de plantão — ou "os hipócritas, os racistas, os puxa-sacos", "o milico metido a machão, o burro metido a sabido e o intelectual metido a besta"¹ — pouco a pouco ceifavam a democracia e a liberdade, e com a complacência de uma imprensa cúmplice.

Felizmente, havia resistência, como aquela oferecida pelo jornalista carioca Sérgio Porto, que em 1953 deu vida ao seu pseudônimo-personagem Stanislaw Ponte Preta. Nas páginas do Diário Carioca, Tribuna da Imprensa e Última Hora, Sérgio/Stanislaw dedicou-se em suas colunas a "gozar a vaidade e as tolices dos poderosos e bem-nascidos"², e "sentia especial prazer em debochar da classe ociosa, de seu consumo conspícuo, de sua escancarada arrogância e da proverbial burrice de alguns de seus mais badalados representantes, com destaque para os coleguinhas que nos jornais e revistas repercutiam frioleiras do café-soçaite"³. A partir de 1964, a ditadura militar — que ele jocosamente chamava de "redentora" — só serviu para abastecer ainda mais as pautas de suas crônicas e comentários, que exalavam ironia e irreverência de alta qualidade.

Esse material deu origem ao Festival de Besteiras que Assola o País (Febeapá), publicado primeiro como coluna diária, depois reunido em livro. Ou melhor, livros: Febeapá 1 foi publicado em 1966; Febeapá 2, em 1967; e Febeapá 3, em 1968, já após a morte precoce do jornalista. "A matéria principal dos três volumes do Febeapá são, assim, coisas engraçadas, jocosas, gozadas, bestas, broncas, ridículas, absurdas, vis, infames, porcas, indecentes, obscenas, tradicionalmente constitutivas das relações sociais no Brasil, desde os tempos coloniais, e intensificadas pelo 'liberou geral' do retorno recalcado fascista nos cinco primeiros anos, entre 1964 e 1968, dos longuíssimos vinte ou 21, ou mais, que por aqui durou a ditadura de 1964." Algum sentimento de déjà vu?

Censura às letras e às artes? Vejamos o comentário "Dois críticos", em Febeapá 2:

Às vezes eu fico achando que há um certo exagero nas besteiras de alguns, diante da clarividência de outros. Por exemplo: a Dops paulista proibia um pintor pernambucano de concorrer à Bienal “porque considerou seus quadros subversivos” e mandou-os de volta, junto com o pintor, antes do júri encarregado da grande mostra internacional ter dado qualquer palpite. Por sua vez, um delegado de costumes de Florianópolis (SC) entrava nas livrarias da capital catarinense e retirava por conta própria os exemplares do livro Pan América, de José Agripino de Paula, para confiscar por “ser uma obra irreverente e pornográfica”. Isto que é um país culto, sô! Onde investigador de polícia manja um bocado de artes plásticas e delegado de costumes é crítico literário.

Ainda em Febeapá 2, temos o comentário "Tsar subversivo":

O célebre filme de Serguei Eisenstein — Ivan, o terrível –, que seria exibido pela primeira vez em Belém do Pará, durante um festival de cinema russo, teve sua exibição proibida pelo secretário de Educação. Segundo o distinto, a ordem veio “de escalões superiores (?), preocupados com o credo vermelho do festival”. Portanto, nessa altura, deixava de ser festival cinematográfico e virava festival de besteira, porque a Revolução Russa ocorreu em 1917, enquanto o biografado Ivan (ou Ivã, se preferem) morreu em 1584. Entre sua época e a época do comunismo, vai uma diferença de trezentos e trinta e três anos e seria muito difícil Ivan estar metido nisso, por mais terrível que ele fosse.

Isso soa ridículo? Então, o que dizer de "Castrado o rei Saul" (Febeapá 3)?

Nosso correspondente em Brasília informa: “Stan, você pode pensar que é brincadeira, mas aqui vai textualmente o que despachou a Censura, sobre a peça O segundo tiro: ‘A peça fica proibida para menores de 10 (dez) anos, por não ser própria para crianças’”.

Mas o mais bacaninha aconteceu com a peça de César Vieira — Um uísque para o rei Saul –, que a extraordinária atriz Glauce Rocha encenou aqui na capital federal. Na frase dita pelo rei — “Dei meus testículos para o bem do povo” — o censor sublinhou a palavra testículos e anotou: “corte-se isto!”.

Perseguição à ciência na mídia e nas universidades? Está escrito em "É proibido nascer" (Febeapá 2):

Toda essa fofoca sobre “publicações pretensamente científicas” foi causada pela revista Realidade, que publicou uma reportagem sobre o nascimento de uma criança e, por isso mesmo, foi apreendida e espinafrada por ligas de famílias, juizados de menores, senhoras marchadeiras etc. etc. O juiz de menores de São Paulo, Pedro Wilson Torres, reuniu a imprensa para esclarecer por que tinham apreendido uma revista que mostrava como se nasce: “Foi uma medida saneadora” — disse o magistrado.

Cura gay? "O problema" (Febeapá 3) é o seguinte:

O professor Raul Pitanga, com setenta anos de idade, anuncia algo assombroso: conseguiu descobrir a cura para o homossexualismo. O professor vai comparecer nos próximos dias à Academia Brasileira de Medicina para explicar que o homossexualismo é uma doença curável. […] o professor septuagenário tem toda razão. O problema é a recaída.

Dizem que a economia vai bem, mas o bolso do pobre vai mal? É notícia de ano novo que já nasce velho, assim como em "Janeiro começa bem" (Febeapá 2):

Num discurso de saudação ao Ano-Novo, o então ministro do Trabalho — sr. Nascimento Silva — dizia textualmente: “Já não há mais classes privilegiadas neste país”. Os trabalhadores que escutavam o discurso ficaram encantados com a novidade.

"Ajuste" econômico? Em "Baiano é mau mamífero" (Febeapá 2) está bem claro de quem é a culpa pela crise, é ou não é?:

Falando na televisão, o governador Luís Viana Filho referia-se ao preço do leite, que em Salvador está a seiscentas pratas o litro. O distinto saiu-se com esta maravilha de explicação:

"O leite, em nosso estado, atingiu alto preço porque o povo baiano ainda não aprendeu a tomar leite com frequência e, em consequência, o consumo é pequeno, o que obriga os criadores de gado leiteiro a aumentarem o preço."

E disse mais: disse que seu governo, preocupado com o assunto, ia desenvolver uma campanha no sentido de “ensinar o povo a tomar leite”, alimento indispensável — segundo ele mesmo, o dr. Luís Viana — “principalmente para as crianças”.

Assim, pelo raciocínio do ilustre governador escalado da Bahia, os problemas do povo brasileiro seriam facilmente resolvidos, bastando, para tanto, que o povo aprendesse a comer mais para diminuir o preço dos gêneros alimentícios. Pelo jeito, pobre só é pobre porque não sabe gastar dinheiro, é ou não é? E o leite na Bahia só ficará barato depois que o baiano aprender a mamar.

Ora, ora, mas tudo pode melhorar com uma "reforma trabalhista". Não é exatamente uma ideia nova, como podemos ler em "Do contra" (Febeapá 2), mas a imprensa sempre a trata como novidade:

Em Benfica de Minas, o jornalista e bacharel José Alves de Castro — diretor de O Pioneiro, em pleno mês de agosto de 1967, na sua coluna “Notas sumárias” (aliás, sumaríssimas), escrevia bobagens desta natureza:

"Somos contrários na participação de empregados nos lucros das empresas, porque isso parece significar um movimento comunista. Então o patrão arrisca seu capital em determinado negócio, sujeito portanto a perdê-lo, e o empregado irá embolsar parte de seus ganhos? […] Também inconformamos com o tal de décimo terceiro salário, que a nosso ver não devia ser legislado pelos fazedores de leis, porque parece subversivo, uma vez que o ano do nosso calendário se resume em apenas doze meses."

Evidentemente, uma boa "reforma trabalhista" tem que vir acompanhada de uma boa "reforma da Previdência". É uma maravilha; está lá, em "Previdência e previsão" (Febeapá 3):

O Instituto Nacional de Previdência Social […] baixou uma circular prevendo o seguinte: se o senhor é segurado do INPS, não tem certidão de casamento, mas necessita de maternidade para sua mulher ter filho, terá que fazer o pedido com trezentos dias de antecedência, conforme o regulamento previdenciário. Mas como o período de gestação é de apenas duzentos e setenta dias — o que dá nove meses — o senhor deve dar uma passadinha lá no INPS trinta dias antes de pensar em fazer qualquer coisa.

A Petrobras é um problema? Sempre foi, né? Mas, um problema para quem, mesmo? Leiamos o comentário "Bomba atômica" (Febeapá 3):

O sr. Luiz Cintra do Prado, membro do Comitê Consultivo Científico da ONU e da Agência Internacional de Energia Atômica, depondo na comissão parlamentar de inquérito sobre energia nuclear, manifestou-se contrário à criação da Atomobrás, autarquia que, se criada, segundo o depoente, acarretaria o rebaixamento de nível dos entendimentos internacionais sobre a matéria, hoje mantidos de governo a governo.

Se é assim, concluiu Bonifácio Ponte Preta, para o bem do Brasil, que suba o nível dos entendimentos. Precisamos acabar com o Instituto Brasileiro do Café, a Petrobras e demais entidades, que impedem o governo brasileiro de manter conversações diretas com outros governos.

Temos que pensar no futuro, isso sim! Façamos uma ponte até ele! Para lograr tal objetivo, necessitamos de uma "reforma educacional". "A Executiva executa" (Febeapá 2) é inspirador:

Quem não chegou a se envolver em tantas trapalhadas por causa de surras nos estudantes foi o general Osvaldo Niemeyer. Depondo na comissão parlamentar de inquérito que investigava as clássicas violências ocorridas durante uma passeata dos estudantes contra o acordo MEC-Usaid, o general, que é superintendente da Polícia Executiva da Guanabara, afirmava que a polícia não tinha batido em ninguém, garantia não conhecer nenhum dos policiais fotografados de arma em punho, ameaçando os estudantes, e insinuava que quem atirara uma bomba num fotógrafo foram os estudantes e não a polícia. Se demorasse mais um pouquinho, o declarante ia dizer que o acordo MEC-Usaid quem assinou foram os estudantes, e que fazia parte de um plano de subversão imperialista bolado pela esquerda.

E se algo der errado? Bem, como podemos (pre)ver, sempre temos a benção da polícia para colocar tudo em ordem. O comentário "Fiesta" (Febeapá 3) atira (e acerta) no alvo:

— Os jornalistas deveriam apanhar da polícia não só durante a passeata, mas antes também. Eles são incapazes de reconhecer o valor da polícia. Os fotógrafos, por exemplo, nunca fotografam os estudantes batendo no policial.

Essa declaração foi feita pelo secretário de Segurança de Minas Gerais, coronel Joaquim Gonçalves.

Isso porque "as instituições estão funcionando normalmente". Sempre estiveram, diga-se de passagem, é ou não é? Está na Constituição, como podemos ler em "A separação dos poderes" (Febeapá 3):

Enquanto o marechal presidente declarava que em hipótese alguma permitiria fosse alterada a ordem democrática por estudantes totalitários, insuflados por comunistas notórios, quem passasse pela Cinelândia do dia 1º de abril depararia com o prédio da Assembleia Legislativa cercado por tropas da Polícia Militar.

Na certa, a separação dos poderes, prevista na Constituição, passará a ser feita com cordão de isolamento e muita cacetada.

Hoje, como d'antes, os Quatro Poderes têm feito o seu trabalho com afinco. Deixemos o comentário "Padre nosso que estais na Dops" (Febeapá 2) nos conduzir (coercitivamente?):

Em São Paulo, mais de quarenta padres, das mais variadas ordens religiosas, ousaram fazer manifestações de protesto em frente à Dops, principalmente por causa da maneira boçal com que os agentes da Delegacia de Ordem Política e Social agiram para efetuar a prisão injusta de alguns beneditinos. Sobre o ocorrido, comentava um matutino do Rio, onde há um redator que faz cobertura de sutilidades:

"O governador Abreu Sodré declarou que os padres em São Paulo não foram presos, mas conduzidos de automóvel para prestar declarações. O sr. Gama e Silva, indiferente a eufemismos, deu logo ordem ao Departamento Federal de Segurança Pública que soltasse os presos."

Acha que o presidente está sensível às demandas da sociedade? Muito!!!! Desde a época de "… e Norte" (Febeapá 2):

Em visita a Belém do Pará, o presidente pronunciava um discurso no Instituto Astério de Campos, de educação de surdos e mudos. O redator da Agência Nacional informava que “em seu discurso no Instituto de Surdos e Mudos o presidente foi muito aplaudido”.

E os governadores? "A bruxa solta" (Febeapá 2) nos dá uma boa ideia:

(…) o governador escalado para o Piauí, seu Helvídio Barros, dava uma de Salomão de Teresina, para acabar com uma disputa entre dois de seus correligionários da Arena, ambos do município de Raimundo Nonato, onde funcionavam um ginásio e um hospital com subsídio estadual. Dois deputados do lugar queriam a direção das instituições citadas e, como o governador escalado não quisesse desgostar nenhum dos dois (um era José de Castro e o outro Waldemar Macedo), enviou uma comissão ao município, para estudar in loco o problema.

Um outro deputado, chamado Nazareno — mas, por acaso, é claro –, lá esteve e encontrou a solução. Sabem qual foi? Para não desgostar os dois deputados, a comissão fechou o ginásio e acabou com o hospital.

E nem precisamos mais nos espantar com o prefeito e suas preocupações com a merenda escolar. "Distorções" (Febeapá 3) já era revelador:

Em Brasília, o sr. Luís Reinaldo Zanon, coordenador do II Congresso Brasileiro de Agropecuária, declarou:

— No Brasil não há fome, mas apenas distorções de hábitos alimentares.

Mas, se o Brazil é um país sem juízo, felizmente temos juízes, como este de "Julgando em causa própria" (Febeapá 3):

Eu falei em Justiça? Falei sim, e, se falei, aqui vai mais uma: “O juiz federal do estado do Rio, sr. Vitor Magalhães, concedeu mandado de segurança para que os juízes do estado do Rio não paguem imposto de renda”.

O magistrado justificou a concessão do writ argumentando que “não só a estabilidade funcional do juiz haveria de ser respeitada, mas, também, a estabilidade econômica”.

Ufa!

A esperança é a última que morre, diz o povo. Quiçá este erre e aquela nunca morra, nem no fim. Pois talvez já estejamos no fim. Stanislaw, em Febeapá 2, já escrevera "É o fim":

Mais trágico, e muito mais cretino, era o jornal O Poder, que se edita em Belo Horizonte sob os auspícios de uma missão religiosa:

"Fatos de discos voadores nos vigiarem, sabotagens nas fábricas de armas nucleares por marcianos, casamentos de mulheres de bustos à mostra, e de homens, na Inglaterra casando com homens, fora a confusão reinante — tudo indica que caminhamos para o princípio do fim."

Enquanto isso, Paradoxos — pontos de vista reverencia Sérgio Porto e edita esta versão 2017 de Um Novo Festival de Besteiras que Assola o País. Nossos jovens jornalistas empunham seus textos e imagens, demonstram resistência e nos dão a tal esperança.

E, para encerrar, sigamos a sábia dica encontrada em "Luta íntima" (Febeapá 2):

Manchete do Jornal da Cidade, de Gravatá (PE): “É necessária muita cautela para revidarmos uma autocrítica”. É verdade!!!

Edição de 2015 da Cia. das Letras, reunindo os três volumes de Febeapá

Referências

¹ AUGUSTO, Sérgio. A metamorfose. Apresentação de PONTE PRETA, Stanislaw. Febeapá — festival de besteira que assola o país. São Paulo: Cia. das Letras, 2015, p. 17.

² Id., ibid., p. 17.

³ Id., ibid., p. 19.

HANSEN, João Adolfo. Notícia do Festival de Besteira que Assola o País. Posfácio de PONTE PRETA, Stanislaw. Febeapá — festival de besteira que assola o país. São Paulo: Cia. das Letras, 2015, p. 458.

Referência ao acordo entre o Ministério da Educação (MEC) e a United States Agency for International Development (Usaid).

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