Janela entreaberta

Camila Moraes
Paradoxos
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2 min readSep 23, 2017

Por Camila Moraes

Foto: Camila Moraes

Todos os dias, ao alvorecer, sinto o abandono na pele, do gigantesco peso da família esmagando meu peito, da sensação de estar à deriva num vácuo escuro. O vácuo escuro que me levou à prostituição, não só do meu corpo, mas de minha mente, e com ela foi-se a alma. E foram nessas condições que eu me formei em medicina veterinária.

Às vezes me afogo em lágrimas e me afogo em soluços, pensando num passado que nem parece meu, e talvez nem seja. A cada dia eu nasço de novo e luto. Uma batalha impossível, perdida com meus olhos, uma nação contra um.

A sobrevivência é dura e fria, uma noite eterna de chuva gelada, cristalizando sonhos perdidos. Pés nus, sujos e duros como couro no asfalto. E esse asfalto é mais acolhedor do que os rostos fantasmagóricos inexpressivos que passam de relance.

Talvez você esteja se perguntando: como posso dizer as expressões das pessoas se sou cego? Com certeza não posso mais vê-los, mas os fantasmas do passado estão encravados nas memórias, nas órbitas leitosas que um dia viram as belezas do mundo.

Percorri o caminho de Santiago de Compostela, senti o temor do Coliseu e vi Paris inteira de cima da Torre Eiffel. Mais um passo concluído rumo ao topo.

Hoje em dia o topo é aquele pedaço de papelão que puxo sobre minha cabeça à noite, com dedos sujos e mãos trêmulas, para me proteger das garras frias do vento que sopra no vão livre do Masp, onde sou prisioneiro. A meia marmita gelada mata minha fome, enquanto a pinga aquece o coração e afasta a solidão e a dor.

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