Por um fio

Camila Moraes
Paradoxos
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3 min readNov 11, 2017

Por Camila Moraes

Foto: Yolanda Reis

Hoje Deus me disse que eu não deveria olhar para baixo porque as criaturas vis da noite vêm das profundezas escuras dos nossos desejos para possuir nossos corpos e dominar nossas mentes, aterrorizar nossos corações e impelir-nos as suas vontades, subjugando o próximo com o ódio que flui dos rios arredios de almas perdidas, suplicando salvação, através das nossas artérias, preenchendo os olhos com o carmesim furioso de incontáveis eras de tortura.

A suntuosa abóbada palaciana reluzia acima Dela, cercada por muros translúcidos diamantados, refletores de nossas próprias ambições, e portões de ouro maciço: o objeto de desejo dos tolos, uma ilusão inalcançável por mãos carnais, acessível por um mundo de ideias, tão cheio de possibilidades quanto qualquer outro e, ainda assim, apesar de toda a exaltação recebida, apenas um absurdo.

Dei as costas para ela, cobrindo o rosto com as mãos trêmulas, e pelas frestas dos dedos eu vi. Um turbilhão de dúvidas me preencheu, levou meu ar e tirou meus pés do chão, e o medo escorreu dos meus olhos arregalados por entre meus dedos. O medo do que fiz, do que posso me tornar; da falta de compreensão e súbita consciência de sua significação. Um abismo; um passo rumo à lugubriosos labirintos infindáveis, tortuosos a cada movimento dos olhos, a cada escolha bifurcada. Do outro lado do mundo das ideias, milhões de portas numeradas, frente a frente, lado a lado, solenes, sem fechaduras. Uma porta abriu-se à minha esquerda e vislumbrei uma cena acolhedora da minha vida, uma realidade que nunca existiu; fiquei tentada a entrar e tomar meu próprio lugar naquela história. Congelei por um segundo, com o pensamento controverso de assumir uma posição que possuo e que nunca possui, zunindo nos meus ouvidos, e dei meia volta.

O Diabo falou comigo e soou exatamente como eu. Disse que eu deveria seguir em frente sem olhar pra cima pois as luzes estavam ali para me cegar e, por mais que as estrelas brilhem, não vão me aquecer. As cordas estão esticadas e a dele não é a única mão a puxá-las.

Fechei os olhos, o sol crepuscular acalentou mansamente meu rosto e, ao abrir os olhos, eu percebi.

Não preciso de asas pra voar, nem do mar pra me afogar. Sou Deus, sou o Diabo; todas as coisas boas e todas as ruins; centenas de deuses em um e nada em lugar algum; os universos e os tempos; todas as impossibilidades do futuro que já passou; estou presente em todas as dimensões conectadas por nossos pensamentos; sou a energia, o pulso elétrico nessa rede sináptica; o sinal de guerra, o sinal de paz; sou a nascente nos seus olhos, o sol no seu sorriso e o belo bosque repleto de vida que mascara a tristeza nele enterrado; sou a divinização da natureza primitiva e a singularidade do passado que ainda não aconteceu; sou o ontem, o agora, o amanhã. E no final, sou todos. Sou nada.

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