“Soul” como retrato da sociedade do desempenho

O filme da Pixar cria de forma lúdica um paralelo com a sociedade atual, a qual incentiva sonhos a qualquer custo e despreza a possibilidade do fracasso

Amanda Pickler Corrêa Candido
Paradoxos
3 min readApr 12, 2021

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Por Amanda Pickler, Daiana Rodrigues e Rebecca Gomes

Crédito: Pixabay

Imagine passar toda sua vida profissional fracassando e, quando sua maior ambição está próxima de ser finalmente realizada, você morre. Essa é a premissa inicial do mais novo grande sucesso da Pixar. “Soul” poderia facilmente ser uma animação americana sobre a importância de se acreditar em seus sonhos, como tantas outras. No entanto, de maneira inesperada, dá luz a um lado pouco explorado do tema e que entra em choque direto com o mote do grupo Disney: o excesso de positividade do mundo pós-moderno. Positividade essa que muitas vezes pode nos cegar para a vida que existe ao redor.

Joe Gardner sonha com a consagração como músico de jazz. A tal ponto que coloca suas aspirações acima de qualquer um ou qualquer coisa. O egoísmo e o egocentrismo são marcas fortes da personagem. Joe, a princípio, não é lá muito carismático. Mesmo após a morte, continua obcecado com seus desejos mundanos e com a glória de ser um musicista renomado. Logo nos minutos iniciais do filme, percebemos que sua carreira não é bem-sucedida. Vemos em Joe a personificação da sociedade atual, sendo um individuo infeliz pelo fato de sua realidade não corresponder ao tão prometido american dream. Infeliz, mas, ainda sim, esperançoso.

O filósofo sul-coreano Byung-Chul Han acredita que cada época apresenta enfermidades que influenciam diretamente os indivíduos inseridos nela. O excesso de positividade da sociedade do desempenho — assim ele se refere ao mundo pós-moderno — entra em contraposição com a sociedade disciplinar de Foucault, pautada na repressão e negatividade, o que gerava “loucos delinquentes”. A sociedade atual do desempenho, por sua vez, geraria “depressivos e fracassados”.

Vivemos em tempos de altas demandas. Walt Disney certa vez proferiu a seguinte frase: “Todos os nossos sonhos podem-se realizar, se tivermos a coragem de persegui-los”. Esse tipo de mentalidade, extremamente fomentada por um sistema econômico capitalista, não poderia estar mais longe da verdade. Hoje vemos uma legião de jovens ansiosos e infelizes. Eles foram ensinados desde crianças que todos os seus desejos, não importa o quão distantes da realidade, podem ser conquistados com esforço. Porém, quando entram em contato com o duro mundo adulto, descobrem que esforço por si só não é suficiente. E em um mundo com sete bilhões de pessoas, nunca será.

É evidente que metas são importantes, não é à toa que o “spark” mencionado no filme — espécie de selo que as almas devem conquistar antes de nascerem — é facilmente confundido por Joe e mesmo por nós, espectadores, como algo relacionado à vocação, ao invés do sentimento mais básico do ser humano: vontade de viver. Sim, metas de vida são importantes e nos motivam. O problema nasce quando ambições superam relações interpessoais. Quando se tornam propósito único de nosso desejo de se estar vivo. Sonhos não realizados, em um mundo tão exigente quanto o nosso, podem facilmente se tornar pesadelos. Nem todo mundo será presidente. Nem todo mundo será famoso. Nem todo mundo estará registrado nos livros de História. E está tudo bem. Ou ao menos deveria estar.

O longa termina com um desfecho aberto e um sentimento de paz. Ao ganhar uma segunda chance na Terra, Joe pela primeira vez não sabe o que fazer. Ele entra nessa nova vida com o simples desejo de se estar vivo. Talvez esse devesse ser o verdadeiro american dream. Grande será o dia em que metas profissionais serão apenas o contorno de um desenho já repleto de cor. Esse é o sonho.

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