Um dia após o outro

Marina Sayuri
Paradoxos
Published in
2 min readJun 1, 2021

A vontade de viver em meio ao pesadelo da marginalização

Por Marina Sayuri

Créditos: Paweł L. no Pexels

H á uns dias conheci Nikole, uma mulher transexual, pobre e , assim como a maior parte das pessoas que vivem abaixo do índice de pobreza, ela está à margem de uma sociedade enraizada por preconceitos. Era um dia nublado em que o vento batia nas vidraças do vagão de metrô sentido Palmeiras-Barra Funda, o meu caminho de todos os dias para o trabalho.

Ela estava indo para casa após uma manhã conturbada, visitando casas de famílias e conhecendo possíveis novos patrões. O trajeto que eu percorria todos os dias pareceu passar mais devagar. Após perder o emprego de carteira assinada, não receber auxílio emergencial e viver à base de quentinhas, como ela chama, doadas por vizinhos, o que restou foi apenas R$4,40 em sua carteira. O dinheiro, também doado, poderia ter dois destinos: a passagem de ônibus para terminar de chegar em casa ou 10 pães franceses na padaria. Escolha difícil para uma sexta-feira à tarde.

Seu esmalte vermelho vinho já descascado, o lápis preto marcando o olhar profundo e os cabelos crespos presos contavam a história de uma mulher que já foi gari e limpou muito lixo jogado nas ruas para poder sobreviver. Há poucos dias havia perdido sua melhor amiga para a covid-19, e desde então passou a morar na casa dela para cuidar dos cachorros e dos filhos que ficaram. Sua vida nunca foi mil maravilhas, mas o pouco que ganhava, como vendedora, era o suficiente para não passar fome. Agora dependia da bondade de uma sociedade que não é capaz de enxergá-la.

Durante a conversa, o celular toca. Ela lê o nome escrito na tela e respira fundo antes de atender. “Chego em 1h, nos vemos quando você voltar da escola. Hoje teremos pão com manteiga para o jantar”. Deu um sorriso e desligou. Nikole fez a sua escolha de sexta-feira.

A voz robótica ao fundo avisou que a próxima estação, Brás, era a dela. Nos despedimos, e agradeci pela conversa. Suas últimas palavras, antes da porta se fechar, foram “não deixem que te tirem a esperança de viver e conseguir vencer adversidades”. Me ajeitei no banco, coloquei os fones de ouvido e observei o restante do trajeto pela janela do metrô, até chegar a minha vez de descer.

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