Samba do Crioulo Doido

Helena Arida
Paradoxos
Published in
3 min readSep 20, 2017

O racismo sempre existiu e continua sendo velado

Por Helena Arida e Roberta Tokunaga

Seu Zé e Seu João estavam de prosa na rua numa manhã de quarta-feira. O debate da vez era o Fla-Flu daquela noite; seu Zé, Fluminense, seu João, Flamengo. Um dia atípico para os dois amigos, velhos companheiros de vizinhança, mas que se atritam quando o assunto é futebol. Encostados no muro que separam as casas um do outro, a discussão se estendia e chamava a atenção de quem passava.

Seu Manoel, o padeiro, prestou atenção na prosa que dava som às paredes da pequena ruela das Rosas, e cumprimentou os amigos de longa data. “Fala, negão! Como vai, seu Zé?”. Seu João era um senhor de 60 e poucos anos, mas nunca tinha parado para refletir sobre esse chamado. “Hoje a coisa vai ‘tá’ preta pro Flamengo hein, negão?”, continuou seu Manoel. Seu Zé aproveitou a deixa e soltou a larga gargalhada que mudou o clima da conversa. Seu Manoel seguiu seu caminho até sua casa, e os dois amigos continuaram ali, em frente ao portão, rindo juntos.

Seu João levava uma vida tranquila de mecânico aposentado, e conseguiu sua moradia na rua das Rosas graças à família de seu Zé. Seu pai ele não conhecia, sua mãe viveu uma vida sofrida servindo à família dos Casablanca. Dona Maria, como se chamava, teve que deixar o filho, ainda adolescente, após uma grave tuberculose. O sr. Casablanca logo expulsou João da casa, afinal, ele nunca deu atenção ao menino.

João foi aprender a mexer em carros com o pai de seu Zé, que era dono de uma oficina, precisava de uma mão-de-obra mais barata e, sem perder o “jeitinho brasileiro”, disse ao menino que lhe ofereceria um quartinho em troca de seu trabalho. João trabalhava desde o nascer do sol até o fim do entardecer, mas pelo menos tinha um colchonete no chão e duas refeições por dia.

Viveu sua vida sendo chamado de Negão, Neguinho, dono do Samba do Crioulo Doido, mas nunca se importou, achava um carinho. Uma tarde, já velho, seu João lia o jornal e viu uma notícia sobre lei antirracial. “Serão punidos, na forma desta Lei, os crimes resultantes de discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião, ou procedência nacional.”

Seu João sempre foi preto pobre. Sempre foi o menino do quartinho dos fundos, que só usa a porta dos fundos. Seu João sempre foi o “neguinho” da rua das Rosas, que fazia favor para as vizinhas quando precisavam de um servicinho, em troca de um cafezinho preto.

Seu João sempre foi o filho da empregada Maria, que engravidou de Sinhô Casablanca sem conseguir se defender. Seu João sempre foi o filho bastardo de Sinhô Casablanca, mas nunca iria saber.

Foto: Pinterest

“Denegrir a imagem do Sinhozinho não vai te tirar desse lado negro da vida. Seu pé na cozinha não te dá direito de saber sobre seus antepassados. Quem nasce preto não sente inveja branca. Quem nasce na senzala não chega à Casablanca”.

A coisa tá preta, João.

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