Não existe amor à primeira vista.

Leo Medeiros
Parapeitos
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2 min readFeb 23, 2023

O que há são obsessões, nada mais que atalhos feios para acalmar nossos corações entediados. Mas nem feiura nem honestidade são defeitos. Sabendo disso, Julia deixou-se abalar. Encontrou, num instante febril e comum, olhos distantes e solitários despejando lágrimas. Eram olhos cravados, trêmulos, num rosto horroroso, implodindo na censura de seu dono. Tinha os lábios prensados por uma mordida firme e violenta o suficiente para que impedisse a sequência do fluxo que o molhava. Curioso, ela pensou.

Em meio a tantos rostos, pernas, pescoços e orelhas, corpos e almas, estava ali, no fundo de um corredor, sob luz estúpida, sem cuidado cinematográfico qualquer, algo que a atraía. Sem qualquer espécie de aviso, influíram em Julia o cuidado e a inveja, daquelas lágrimas cujo percurso oposto ela desejava poder realizar e desvendar sua origem. Era a largada de uma obsessão.

Dias depois, Julia o reencontrou e rompeu descaradamente o silêncio revelando a imagem que a penetrara dias antes. Não conseguiu muitas palavras, mas arrancou dele sincera tristeza e um primeiro contato que abriu portas para mais. Foi conseguindo conversar sobre banalidades e, assim, pistas. Cada conversa, um mapa; cada descoberta, um passo a mais rumo ao tesouro da intimidade alheia.

Até que certo dia, a troca durou e durou e terminou num silêncio leve, cheio de desejos contidos. Ela, então, envolveu a lateral de seu pescoço com as mãos. As mãos de Julia, quentes e curiosas, o seu olhar fissurado, envolvente. Ela olhou bem no fundo dos olhos do rapaz até alcançar ali o seu próprio reflexo. Sorriu. Ele não reagiu. Ela se aproximou. Ele não reagiu. Ela parou diante de sua boca. “Posso?”. Finalmente, uma reação: “Pode”. Ela o beijou.

Marcaram um encontro para o fim de semana. Viveram um dia. Família, futuro, as mazelas que engolem o mundo, reconhecimento das próprias mediocridades e comportamentos esquisitos, tiques, toques e o tic-tac impiedoso do relógio os entretiveram até um convite inusitado dele. Sim, quero, ela respondeu, aceitando ir para sua casa.

Não falaram quase nada após abrirem a porta. As roupas deslizaram por seus corpos encontrando-se com o chão e seus corpos se encontraram quentes. Transaram, sem muitas dificuldades. Julia achou medíocre. Embora o corpo tenha despejado energias ululantes, não gozou, nem chegou perto. E com a noite rugindo e a escuridão lambendo as ruas, ela se vestiu ainda econômica nas palavras, agradeceu pela experiência e se foi, recusando companhia até o ponto.

Trocaram alguns olhares por algumas semanas, cumprimentos contidos. Nunca mais se falaram. Dúvidas devidamente caladas. Enquanto isso, a areia desce na ampulheta, as nuvens atormentam os céus e uma nova obsessão pode surgir a qualquer momento, quando menos se espera. Julia estará pronta.

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Leo Medeiros
Parapeitos

Escritor, ansioso; a letra da frente sempre fazendo a de trás tropeçar, mas nunca deixando de dizer.