Bateria humana: minerando criptomoedas com o calor do corpo humano

Na Holanda, o Institute of Human Obsolescence já está trabalhando na implementação de um esquema de trabalho para aqueles que doarem seu calor corporal a ser transformado em energia elétrica para a mineração de criptomoedas.

Lidia Zuin
Paratii
7 min readJan 5, 2018

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Uma das tendências para 2018 mapeadas pelo site Technology Review traz justamente a questão da fome por energia advinda da mineração de criptomoedas, a qual será tão grande que irá se sobrepor ao crescimento de fontes renováveis de energia.

Se, por um lado, essas fontes terão o preço cada vez mais reduzido, por outro, a mineração de Bitcoin e de outros tokens continuará crescendo mais do que 20% ao mês, a não ser que alguma grande correção no preço ocorra. Por isso, acredita-se que, por volta de janeiro de 2019, a mineração de criptomoedas poderá estar usando cerca de 10 vezes mais energia do que já usa atualmente, competindo com o consumo de países como a Itália.

Essa especulação não é tão surpreendente se considerarmos que, já no ano passado, uma pesquisa feita pela empresa britânica Power Compare revelou que o volume necessário para a mineração da quantidade disponível de Bitcoin em 2017 já equivalia ao consumo de 159 países individuais, incluindo a Irlanda, Croácia, Sérvia, Eslováquia e Islândia.

Isto é, esses dados são equivalentes aos 16,7 milhões de bitcoins em circulação naquele momento, sendo que a moeda, por regra, pode chegar ao limite máximo de 21 milhões. Portanto, como avaliado em reportagem pela BBC, “enquanto a eletricidade continuar a ser uma fonte de energia barata e confiável e o valor da moeda digital for alto o suficiente para absorver os custos de produção, o bitcoin continuará a estar nas manchetes até atingir seu volume máximo em circulação.”

Por outro lado, são os desenvolvimentos da inteligência artificial e da automação que trazem o temor de uma nova onda de desempregos, na qual os seres humanos são substituídos por máquinas. Contudo, como também levantado pelo mesmo relatório da Technology Review, a discussão sobre como a IA impactará o mercado de trabalho sofrerá uma mudança de foco ao longo deste ano: em vez de pensarmos na eliminação de empregos, passaremos a procurar maneiras de como os trabalhadores podem se adaptar diante dessa mudança inevitável. Isto é, diferentes países terão abordagens variadas para solucionar essa questão, o que pode combinar investimentos em bens sociais, como educação e segurança, ou mesmo criar e manter um ambiente seguro e saudável para o empreendedorismo e a inovação.

Na Holanda, porém, o Institute of Human Obsolescence (IoHO) traz um outro olhar que faz o cruzamento entre a questão energética da mineração de criptomoedas e a problemática do trabalho em vista às inovações tecnológicas. Ao considerar que, sim, os humanos estão se tornando obsoletos, é necessário então repensarmos nosso papel na sociedade. A solução encontrada pelo time holandês, no entanto, se assemelha muito à narrativa da ficção científica, por exemplo o enredo do filme Matrix (1999), no qual seres humanos são usados como baterias para sustentar os robôs que dominaram o planeta.

A proposta do IoHO, portanto, é usar o corpo humano como uma “bateria” de mineração de criptomoedas e como essa mesma função funcionaria como uma nova forma de trabalho. Isto é, se o corpo de um adulto gera aproximadamente 100 watts sob repouso, cerca de 80% dessa energia acabam sendo desperdiçados como excesso. A ideia do instituto é justamente captar esse excesso de calor do corpo e transformá-lo em energia para minerar criptomoedas. Nas palavras deles:

As máquinas estão nos superando. Assim como, a tempos atrás, também aconteceu aos cavalos depois da invenção da máquina à vapor, os humanos também estão se tornando obsoletos para realizar trabalhos mecânicos. Logo, os avanços na inteligência artificial também irão afetar nossas possibilidades de sermos trabalhos úteis ao realizar tarefas intelectuais.
O IoHO explora esse cenário e tenta fazer as perguntas sobre como nos reposicionaremos no papel de humanos na sociedade, particularmente em como iremos lidar com um mercado de trabalho dominado por máquinas.
Nossa obsolescência irá criar um novo cenário no qual novas formas de trabalho irão emergir e florescer. Nosso objetivo é explorar, questionar e intervir em cenários dessa transição.

Segundo os cálculos feitos pela equipe, cerca de 1.700KW de eletricidade podem ser gerados a partir do calor humano da população holandesa. Esse calor é adquirido a partir de um traje que possui geradores termoelétricos que coletam o diferencial de temperatura do corpo humano e do ambiente, convertendo-o em eletricidade utilizável, a qual será manterá funcionando um computador que se conecta ao traje para produzir criptomoedas. Aparentemente, não há nenhum pré-requisito para se tornar um “doador”, já que os então chamados trabalhadores só precisam ficar deitados sem fazer nada. Parece, então, que aqueles clickbaits sobre como ganhar dinheiro dormindo podem se tornar uma realidade, não é mesmo?

No momento, a equipe conta com 37 trabalhadores, os quais já doaram quase 130mW pelas 212 horas trabalhadas, o que equivale a quase 17 mil moedas geradas, entre elas a Vertcoin, Startcoin e Ethereum. O instituto trabalha com 4 ciclos de operações biológicas de 22, 69, 39 e 84 horas, o que significa que as 212 horas totais coletadas foram divididas em turnos de 1, 2 ou 3 horas entre 37 trabalhadores distintos. Agora, por que essa metodologia parece tão bizarra quando, se pararmos para pensar, nossos corpos, nossas rotinas, a informação que consumimos e tantos outros elementos que envolvem nossa vida cotidiana já estão sendo capitalizados, porém não por nós mesmos e sim por grandes empresas?

Dados gerados por seres humanos já são extraídos por empresas como Google e Facebook, que produzem grandes quantias de capital. Então porque nós, trabalhadores informacionais, não podemos capitalizar isso? Se mesmo os desempregados estão gerando capital ao produzir dados, será que estamos mesmo desempregados? Quais proporções de nossos direitos como trabalhadores informacionais podemos pensar a respeito?

Desse modo, o olhar da IoHO está totalmente alinhado às tendências em torno da valorização da produção de dados. Se o big data está para se tornar uma indústria de 200 bilhões de dólares e nós somos aqueles que fomentam essa indústria, como força de trabalho a produzir dados, é a partir de uma forma distribuída de propriedade sobre esses dados que se pode enfrentar a exploração e capitalização desses dados que, por enquanto, estão sob o monopólio de algumas empresas.

Segundo o IoHO, “nós queremos mudar esse paradigma de trabalho não pago e começar a obter lucro disso. A partir de iniciativas como a Data Workers Union, queremos estabelecer plataformas com as quais iremos ganhar agência sobre nossos direitos.” Propostas como essas, portanto, visam a uma forma de fazer com que o projeto da Renda Básica Universal (Universal Basic Income) se torne uma realidade, assim como já proposto por Elon Musk e também testado em países como a Finlândia.

Estamos explorando a proposta de receber uma Renda Básica Informacional em troca de nossa produção de dados. Todas as propostas contemporâneas de Renda Básica Universal têm como garantida nossa contribuição com a economia na forma de trabalho informacional, portanto a Renda Básica Informacional está intrinsecamente ligada às propostas atuais de Renda Básica Universal.

Club Watt Rotterdam

Vale lembrar que a proposta de coletar calor humano para geração de energia não é exatamente uma ideia inédita do Institute of Human Obsolescence, mas outros projetos como a academia The Green Microgym e a discoteca Club Watt Rotterdam já se utilizam de duas diferentes metodologias para angariar essa forma de energia dos corpos humanos: o primeiro, a partir de aparelhos de ginástica como bicicletas ergométricas (bem no estilo Black Mirror), e o segundo a partir de uma pista de dança com piso especial.

Iniciativas como esta do IoHO podem parecer estranhas à primeira vista, mas conforme a percepção sobre nossos próprios corpos vai se modificando ao longo do tempo (da imagem de Deus até o corpo biológico e racionalizado pelos iluministas), é possível que soluções como esta, em que remuneramos pessoas que “doarem” seu calor e energia para produção de eletricidade, se tornem menos absurdas à opinião comum, visto as vantagens não só financeiras, mas também em desdobramentos que levem em consideração nossa saúde física e psíquica diante de problemas como o desemprego e a pobreza.

Por outro lado, no entanto, ao extrapolarmos tais possibilidades, é evidente a visualização de cenários distópicos, em que as pessoas podem ser realmente desumanizadas em prol de uma completa instrumentalização de seus corpos, assim como nas experimentações médicas durante o regime nazista. Nossa esperança é encontrar um meio termo, no qual a tecnologia pode servir de solução para determinados problemas e não de canalização para tendências e impulsos opressivos.

Paratii é uma plataforma de vídeo que permite a criadores terem de volta o controle sobre suas receitas. Funciona sobre uma rede peer-to-peer, é resistente à censura, e cada login tem sua própria carteira de tokens. Saiba mais através do nosso site.

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Lidia Zuin
Paratii

Brazilian journalist, MA in Semiotics and PhD in Visual Arts. Researcher and essayist. Technical and science fiction writer.