Fotofilmes

Estúdio Madalena
Blog do 11º Paraty em Foco
6 min readSep 7, 2015

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ou o paradoxo das imagens
estáticas em movimento

Por Érico Elias

A mostra Fotofilmes Brasileiros será projetada na Tenda Multimídia
nos dias 24, 25 e 26 de setembro, durante o 11º Paraty em Foco.
Participe!

O que é, o que é? Tem corpo de cinema e alma fotográfica.

É o fotofilme.

Provavelmente, você já ouviu esse nome. Ele soa bastante familiar. Eu particularmente li pela primeira vez em algum dia do ano de 2007, quando entrei em contato, por indicação de Alberto Bitar, com o programa de número 32 da Programadora Brasil, distribuidora de filmes nacionais criada com a nobre missão de difundir o cinema brasileiro, dando vazão à sua enorme diversidade. Com o título “Fotofilmes”, o programa reuniu alguns curtas que utilizam a técnica de animação de fotografias. Quem criou o texto do programa foi Newton Cannito, que assim definiu tais paradoxais produções.

“Foto fixa. Imagem estática em movimento. Edição de som. Basicamente estas são as principais características dos fotofilmes, trabalhos realizados a partir de imagens still em set, sem o sistema tradicional de registro fílmico contínuo.” (grifos meus)

Frame de Juvenília (1994), de Paulo Sacramento, filme fotografado por Marlene Bérgamo

Na época, eu estava iniciando pesquisa de mestrado no Instituto de Artes, na Unicamp, sob orientação de Fernando de Tacca. Meu tema de pesquisa era justamente a edição de fotografias no formato cinematográfico, tipo de criação que ainda mal sabia definir. Quando me deparei com o termo “fotofilmes” descobri ali meu “santo graal”, era como se todas as minhas inquietações pudessem ser sintetizadas em uma só palavra.

Os fotofilmes são filmes feitos exclusivamente a partir de fotografias ou nos quais a linguagem fotográfica é trabalhada de maneira estruturante. Sabemos que o cinema filmado é feito, em verdade, a partir de fotografias, imagens estáticas que, capturadas em sequência e posteriormente reproduzidas no mesmo ritmo da captura, ganham o poder de criar a ilusão de movimento contínuo, tal qual observamos em nossa experiência cotidiana do mundo.

A diferença fundamental dos fotofilmes para o cinema filmado está no fato de que os fotofilmes partem de fotografias capturadas isoladamente.
Esse detalhe faz toda a diferença.

Diversamente do cinema filmado, no cinema de animação de fotografias a corrente de frames não está dada na captura, ela precisa ser construída pelo realizador. Por isso, a temporalidade resulta sempre artificial. Os fotofilmes são elementos estranhos, que circulam nos interstícios de cinema e fotografia, habitam as margens de formas institucionalizadas de fazer e de circular. Mesmo para o cinema de animação são corpos estranhos e raros.

Frame de Enquanto Chove (2003), de Alberto Bitar e Paulo Almeida

Quem parece ter a primazia nesse tipo de produção em terras brasileiras é Marcello Tassara, com o fotofilme A João Guimarães Rosa (1969), primeira produção realizada no âmbito do curso de cinema da Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP). Trata-se de uma “transcriação” de terceiro grau, lançando mão do termo foi cunhado por Haroldo de Campos para definir o papel do tradutor. Traduzir é transcriar, criar de novo, em novo idioma. O mesmo princípio se aplica quando tratamos de diferentes meios simbólicos, o que Júlio Plaza chamou oportunamente de “tradução intersemiótica”.

Maureen Bisilliat havia transcriado o universo literário de Guimarães Rosa em suas fotos, que foram então transcriadas por Marcello Tassara em linguagem cinematográfica. O sertão é o mote poético para múltiplas interpretações, para traduções, transposições, transmutações, metamorfoses. Aqui, mais que nunca, vale a máxima de Guimarães Rosa, expressa na fala de Riobaldo:

“Digo: o real não está na saída nem na chegada:
ele se dispões para a gente é no meio da travessia”.
Aventurosa travessia.

Ao verter imagens para o formato fílmico realiza-se duplo movimento. As imagens fotográficas ganham uma duração, determinada pelo tempo em que permanecem na tela. Além disso, elas passam a ser informadas por uma banda sonora, que interfere em sua leitura desde o interior. Esse é um dos aspectos mais importantes dos fotofilmes, já que as fotografias, relatos visuais mudos, ganham sonoridade inaudita. No cinema, imagem e som ocupam um mesmo patamar de relevância. São camadas inextrincáveis de um mesmo processo criativo. Os fotógrafos, em geral, quando experimentam com a imagem em movimento, se esquecem da importância da banda sonora e acabam por subestimar o seu potencial.

Frame de Trilogia Inconsciente (2007–2008), de Carlos Dadoorian

Os fotofilmes são como irmãos gêmeos dos fotolivros. Ambos permitem enfeixar fotografias em uma sequência pensada de forma autoral, definir suas hierarquias de importância, cercá-las de palavras, permitindo complexas interações entre texto e imagem, que estão na origem de narrativas de irresistível poder. Enquanto no fotolivro definimos o tamanho de cada imagem e sua disposição na página, no fotofilmes definimos sua duração na tela e os movimentos no seu interior, os reenquadramentos. O fotolivro é objeto palpável, que pode ser manuseado segundo o gosto do freguês, o fotofilme é evanescente feixe de luzes, enfileiramento de frames cujo ritmo é imposto pelo autor. No fotolivro as palavras e as imagens são mudas, ressoam somente na mente do leitor; no fotofilme, as palavras podem ser declamadas e a fotografias podem ser sonorizadas. Em ambos os casos, a imagem fotográfica se reveste de um incalculável poder de fabulação.

É também desde o mestrado que recolho fotofilmes. Conforme meu repertório aumenta, mais me surpreendo com a enormidade de possibilidades criativas abertas pela manipulação de fotografias no formato fílmico. A revolução telemática, sabiamente descrita e visionada por Vilém Flusser em “O Universo das Imagens Técnicas”, como resultante da união de telecomunicações e informática, vem estabelecendo um ambiente cada vez mais propício às experimentações com formatos híbridos.

Os fotofilmes vivem um verdadeiro boom com a popularização da imagem digital, dos computadores e o compartilhamento em rede. O que antes era feito com muito esforço e demandava conhecimentos técnicos especializados hoje pode ser feito facilmente em softwares de edição de vídeos não linear.

Técnicas como time lapse, pixilation e stop motion ganham enorme impulso, assim como as iniciativas para transposição de arquivos ou ensaios fotográficos para o formato cinematográfico. O digital é campo das passagens plenas. Os computadores permitem traduzir variadas formas expressivas em uma linguagem binária comum, propiciando fusões inesperadas.

Frame de # (2010), de André Farkas e Arthur Gutilla

A mostra Fotofilmes Brasileiros, curada em parceria com Fernando de Tacca, reúne produções significativas para esse universo criativo em âmbito nacional. Como habitam num incerto território “entre-imagens”, recorrendo uma vez mais à pertinente expressão cunhada por Raymond Bellour, os fotofilmes são resultantes de iniciativas autorais provenientes de uma ampla variedade de origens. Do pioneiro Marcello Tassara até novos artistas que despontam na segunda década do século 21, selecionamos produções experimentais que causam estranhamento e fascínio.

Após passar pelo 26º Festival Internacional de Curtas-Metragens de São Paulo, a mostra Fotofilmes Brasileiros atraca à beira do 11º Paraty em Foco, em busca de um público qualificado de fotógrafos, críticos, curadores, amadores e entusiastas. Estão todos convidados para experimentar um tipo de comunhão alquímica de cinema e fotografia. Sejam benvindos ao curioso universo das narrativas fotofílmicas!

A Mostra Fotofilmes será realizada na Tenda Multimídia, a partir das 22h, dias 24, 25 e 26 de setembro.
Venha conferir, a entrada é gratuita!

A edição do blog do 11º Paraty em Foco
é de Érico Elias e do
Oitenta Mundos .

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