Por que precisamos de um feminismo popular e anticapitalista?

isa salines
partoartistico
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5 min readApr 22, 2021

Este texto foi escrito por Caroline Schmidt — colunista do Parto Artístico e estudante de História da Arte. Pesquisa e estuda sobre cinema na Antiguidade Oriental. É editora da Revista Ícone, da UFRGS, e já apresentou-se em eventos nacionais e internacionais sobre cinema feito por mulheres no Brasil.

Em 2020, logo no começo da pandemia de Covid-19, a ONU lançou um documento no qual já previa o que aconteceria com os avanços das lutas das mulheres: “ […] com a pandemia de Covid-19, até os ganhos limitados conquistados nas últimas décadas estão sob o risco de retrocederem”. Não poderia ser diferente, um ano após o primeiro decreto de “isolamento” no Brasil, o cenário é mais ou menos esse: de acordo com o IBGE, 16,5% das mulheres estão desempregadas; a nível internacional, a empresa Kaspersky apontou que 67% das mulheres ficaram responsáveis pelo trabalho doméstico e 78% pela educação dos filhos. No que tange à área da saúde e integridade física e psicógica, o Brasil apresentou um aumento de 35% das agressões contra mulheres; o projeto Um Vírus, Duas Guerras, constatou que houve um aumento de 5% do feminicídio em abril de 2020 se comparado com a mesma data em 2019; sobre saúde mental, um estudo desenvolvido pela USP no Hospital de Clínicas com 3 mil pessoas teve como resultado que mulheres corresponderam 40,5% dos sintomas de depressão, 37,3% de estresse e 34,9% de ansiedade.

Mas, esses dados ainda não dizem muito sobre a realidade das mulheres no Brasi. É preciso que façamos os recortes de raça e classe, tão importantes para analisar a nossa sociedade. Para 16,5% mulheres desempregadas comentado anteriormente, é de 19,8% a porcentagem para mulheres negras; o Instituto Polis apurou que a cada 100 mil habitantes, 140 mortes eram de mulheres negras contra 85 de mulheres brancas; a CEPAL afirma que 209 milhões de latino-americanos vivem na pobreza em 2020; nos povos indígenas foram mais de 52 mil infectados, de acordo com os dados da APIB; em relação ao garimpo, nas terras Yanomami houve um aumento de 30% em 2020 (estudo desenvolvido pelas organizações Hutukara e Seedume com apoio do Instituto Socioambiental).

Essa realidade existe há muito tempo, a covid-19 apenas tornou explícita a vulgaridade da nossa burguesia, que representa a 2º maior concentração de renda no mundo e conta com 20 novos bilionários neste período da pandemia.

A questão que se coloca é: como nós mulheres podemos nos organizar contra todas as desigualdades de forma efetiva? A primeira característica da nossa organização deve ser reivindicar um feminismo anticapitalista.

No manifesto “Feminismo para os 99%” (2019) — deixando clara à oposição ao 1% do planeta que controla a riqueza, incluindo as mulheres burguesas — Cinzia Arruzza, Tithi Bhattacharya e Nancy Fraser detalham o que seria esse feminismo: um feminismo que entra nas lutas “por justiça ambiental, educação gratuita de alta qualidade, serviços públicos amplos, habitação de baixo custo, direitos trabalhistas, sistema de saúde gratuito e universal […] batalhando por um mundo sem racismo nem guerra […] o feminismo para os 99% abarca a luta de classes e o combate ao racismo institucional […]”

Além disso, o feminismo para os 99% deixa claro para quem ele serve: “concentra os interesses das mulheres da classe trabalhadora de todos os tipos: racializadas, migrantes ou brancas; cis, trans ou não alinhadas à conformidade de gênero; que se ocupam da casa ou são trabalhadoras sexuais; remuneradas por hora, semana, mês ou nunca remuneradas; desempregadas ou subempregadas; jovens ou idosas” e, principalmente, é um feminismo anticapitalista.

O que elas chamam de “feminismo para os 99%”, podemos chamar e caracterizar como um “feminismo popular”, que há muitos anos é tocado pelas mulheres trabalhadoras, de minorias representativas étnicas e pelas feministas anticapitalistas.

As autoras do manifesto, seguindo a tradição marxista, identificam o capitalismo como o gérmen da crise da sociedade. O capitalismo é o produtor de suas próprias crises para poder se reinventar; se reinventar como green, como LGBTQI+ friendly, como quem dá oportunidade para as mulheres subirem na carreira e até como produtor do seu próprio feminismo, o feminismo liberal.

Apropriando-se das lutas feministas, negras, LGBTQI+, ambientais e outras, o capitalismo forja até quando a militância pode ir por direitos. Nesse sentido, fornece a superação da condição material de indivíduos alimentando o discurso meritocrático e esvaziando o verdadeiro significado da militância política.

O feminismo para os 99% ou o feminismo popular, que clamam os movimentos sociais no Brasil, não acredita na liberdade do indivíduo dentro do sistema capitalista. Tais movimentos prezam pela liberdade das classes subordinadas como um todo. Nunca seremos livres enquanto nossas irmãs e irmãos estiverem acorrentados ao sistema que nos utiliza feito objetos.

Por isso, o feminismo liberal é um dos problemas, não a solução.

No manifesto, Arruza, Bhattacharya e Fraser são assertivas: “Completamente compatível com a crescente desigualdade, o feminismo liberal terceiriza a opressão. Permite que mulheres em postos profissionais-gerenciais façam acontecer precisamente por possibilitar que elas se apoiem sobre mulheres imigrantes mal remuneradas a quem subcontratam para realizar o papel de cuidadoras e o trabalho doméstico. Insensível à classe e à etnia, esse feminismo vincula nossa causa ao elitismo e ao individualismo. Apresentsndo o feminismo como movimento “independente”, ele nos associa a políticas que prejudicam a maioria e nos isolam das lutas que se opõem a essas políticas […] Nossa resposta ao feminismo do faça acontecer é o feminismo impeça que aconteça. Não temos interesse em quebrar o telhado de vidro enquanto deixamos que a ampla maioria limpe os cacos. Longe de celebrar CEOs que ocupam escritórios luxuosos, queremos nos livrar de CEOs e de escritórios luxuosos”.

Está mais do que claro que a sociedade capitalista vem cavando o buraco que separa as classes sociais e nos torna desiguais. Cabe a nós a luta e a derrubada do dessastre eminente por meio da organização popular. No Brasil, são vários os movimentos anticapitalistas que estão surgindo ou que sempre estiveram presentes.

Especialmente por conta do retorno do Brasil ao mapa da fome com o aumento da insegurança alimentar, cresceram os projetos de cozinhas e brechós solidários, entregas de cestas e equipamentos de segurança. Sem contar na guinada à esquerda que está sendo desenhada com as candidaturas de agentes com vínculo orgânico com movimentos de base, candidaturas coletivas e de políticos assumidamente socialistas.

E você, mulher, vai fazer parte dessa mudança?

Os dados citados aqui podem ser encontrados nas seguintes reportagens:

https://revistagalileu.globo.com/Sociedade/noticia/2021/03/como-e-por-que-pandemia-afetou-de-forma-desproporcional-mulheres.html

https://www.kaspersky.com.br/blog/pandemia-carreira-mulheres-tecnologia/16875/

https://valor.globo.com/mundo/noticia/2021/03/04/america-latina-atinge-maior-nivel-de-extrema-pobreza-em-20-anos.ghtml

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