A Mesquita dos Judeus

A escritora Thais Kuperman Lancman escreve sobre a sua viagem para o Marrocos.

thais k. lancman
Revista Pasmas
8 min readJul 17, 2019

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por Thais Kuperman Lancman*

Não é que estávamos em uma busca, mas ela acabou se impondo na nossa viagem. Temos um hábito de anotar endereços e pontos de interesse no Google Maps e, quando não sabemos o que fazer em uma cidade desconhecida, seguimos nosso mapa e nos surpreendemos com nossas próprias escolhas. Para não nos perdermos, nos perdemos. Assim fiquei duas semanas, mais ou menos, no Marrocos. As Mellahs, antigos bairros judaicos, como as Judiarias espanholas, já estavam no roteiro, mas a própria viagem impôs uma busca pelos resquícios de uma vida judaica intensa no país, onde chegaram a viver 300 mil judeus e hoje não chegam a 3 mil.

Não fiquei emocionada de ver esses fragmentos de história, é um outro sentimento. O peso da história se mostra acachapante ao constatar que a emigração em massa de judeus marroquinos se deu em momentos críticos da relação entre países Árabes e Israel, como em 1967, pós-Guerra dos Seis Dias. A materialidade de um conflito não por marcas de balas, ruínas de explosões ou nomes de mortos, simplesmente uma vida estável esfacelada.

Em Tinghir, uma pequena cidade em meio às montanhas do Atlas, o guia nos mostrou resquícios da Mellah, inclusive “a mesquita dos judeus”. Um menino grego do nosso grupo, obviamente chamado Stavros, começou a provoca-lo, perguntando como era a mesquita judaica, e o guia ficou desconcertado. Um tempo depois, ele corrigiu: quis dizer a igreja dos judeus. Stavros não perdeu a oportunidade de destacar a errata: “Pessoal, uma atualização!”. Mas no final, que diferença faz o nome? Não tem mais ninguém ali, nem nas casas judaicas de Tinghir, com suas portas forradas de latas de sardinha.

Em Marrakech, existe uma sinagoga ativa, hoje administrada pelo Beit Chabad. Uma família de ortodoxos parece viver ali, em um andar adaptado para servir de moradia. Na sala principal, um casal de turistas rezava, a mulher sobre o púlpito e o homem degraus abaixo. As antigas sinagogas marroquinas lembram um pouco as de Tzfat, em Israel. Não possuem fileiras de cadeiras de frente para o Aron Hacódesh, arca em que se guarda a Torá. São cadeiras dispostas contornando paredes e colunas, de forma que alguns ficam de lado, outros até de costas para o rabino que conduz o serviço religioso. Em Tzfat, aprendi que isso serve para os debates em grupo, tão presentes na educação judaica. No Marrocos, ninguém nos explicou nada, ninguém sentava nas cadeiras, mas as sinagogas eram sempre assim (para os homens, as mulheres, como nas sinagogas mais tradicionais do Bom Retiro, ficam no andar de cima, bem menos espaçoso).

Pátio da sinagoga Salat Al-Azamat (Foto: Thais Kuperman Lancman)

Nas pias localizadas no pátio da sinagoga, com os inconfundíveis canecos com duas alças, utilizados para o Netilat Yadaim, a lavagem ritual das mãos, meninas americanas limpavam a casquinha formada sobre a pintura de hena feita em alguma armadilha de turistas. Já eu me hospedei em um riad cheio de regras, entre elas a proibição de hóspedes decorarem as mãos com desenhos em hena. Uma parte minha chegava a achar desrespeito lavar a tatuagem falsa na pia do Netilat Yadaim, mas uma pia é uma pia, eu prefiro reprimir esses apegos a alguma religiosidade. Meus sentimentos, afinal, eram um pouco de ciúmes da sinagoga não ser só dos judeus, ser dos turistas inclusive meninas que só queriam saber das suas mãos ornadas em estereótipos.

Saímos da sinagoga em direção ao cemitério judaico. No Marrocos, meninos ficam sempre tentando adivinhar para onde você está indo, indicando o caminho para ganhar algum dinheiro. É irritante e inconveniente, e nesse caso desnecessário, pois ao chegar no cemitério, encontramos o mesmo casal da sinagoga. É o roteiro comum. Também encontramos um policial para quem havíamos pedido indicações de caminho na véspera. Ele e outras autoridades usam o cemitério judaico como estacionamento.

Cemitério Judaico Miaara (Foto: Thais Kuperman Lancman)

A grande atração do lugar, se é assim que se pode chamar, é uma enorme área em que estão enterradas mais de duas mil vítimas de uma epidemia de tifo, na maioria crianças. Os túmulos brancos e anônimos parecem ondas em um campo verde. Você pensa em morte e em Ilhas Gregas ao mesmo tempo, não sabe se fotografa porque é bonito ou muito triste, e se sente mal em fotografar pensando que é gente morta. Um grupo grande de turistas estava lá mais para rezar para um certo Chacham HaGadol (grande sábio, em hebraico) e os seguranças do local ofereciam livros de reza para quem não tivesse um. Alguém desse grupo insistentemente tentou abrir a porta do banheiro enquanto eu estava dentro da cabine, mesmo que eu tenha falado em três idiomas que estava ocupado. Saí falando impropérios que, não fosse quem eu sou, seriam considerados antissemitas.

A sinagoga Ibn Danan em Fez (Foto: Thais Kuperman Lancman)

Já em Fez, as sinagogas são relíquias escondidas que ninguém parece entender como podem ter pessoas interessadas em visita-las. A primeira que visitei tem um puxadinho em que vive uma mulher e seus filhos, e não sei o que aconteceu no local nos últimos anos, que passamos quase que dentro da sua casa para entrar. Nas outras sinagogas, a mesma mulher surgia do nada pedindo dinheiro para abrir a porta, esperava que saíssemos, dava explicações vagas e em voz mecânica, trancava a porta e ia embora. Para mim não fazia sentido, ela falar aquilo como se não fôssemos judeus, mas quem senão um judeu se dá ao trabalho de ir ali? A Mellah de Fez é pouco visitada, embora esteja em destaque no guia do Lonely Planet. O que tem de judaico à vista: os balcões de prédios antigos e alguns batentes com marcas de onde estiveram pregadas mezuzót um dia.

Apartadas das portas, as mezuzót hoje estão em lojas de bijuterias, confundidas com broches. Melhores que as lojas de antiguidades, é com os adereços em prata que se encontra, acidentalmente, um artigo judaico antigo no Marrocos. Não que eles estejam escondidos, apenas estão largados, mais porque os vendedores certamente notam que eles despertam o interesse de turistas, mas muitas vezes não sabem para que servem. Além das mezuzót, Kearót, bandejas utilizadas nos jantares de Pessach, se misturam a outras peças ordinárias dos antiquários. Eu pensava nas famílias que abandonaram tudo e em comerciantes encontrando essas relíquias — ou tralhas, quem sabe? — e em quantos outros vão para o Marrocos e se sentem arqueólogos escavando os fósseis de outras épocas.

No cemitério, quiseram cobrar entrada. Argumentamos, e então perguntaram se éramos judeus. Judeu não paga. Lá dentro, o que mais atraia turistas era o túmulo de Lala Sulika, garota que viveu no século XIX e foi escravizada pelo rei do Marrocos, como uma de suas amantes. Ao se recusar a se converter ao islamismo, foi presa e condenada à morte. Ortodoxos rezavam por ela quando estivemos lá. Nunca vi algo assim no judaísmo, orações por uma mártir. Sempre me impressiono quando vejo como as religiões se parecem. As pessoas também rezavam no túmulo do presidente da comunidade judaica da época de Sulika, pois ele tentou interceder em seu favor e garantiu que ela recebesse comida kosher na prisão. Aí não entendi mais nada.

Também em Fez, um dia na Medina me deparei com uma faixa “Museu Maimônides”, um lugar que também era loja e ficava em uma das inúmeras galerias daquelas ruas. Maimônides, ou Rambam, é um dos maiores sábios do judaísmo, nasceu em Córdoba, Espanha, no século XII, e viveu em Fez. Foi aluno da Universidade Al Qaraouyne e agora não é mais do que um amontoado de coisas cujo responsável é um velhinho que secava o cabelo com secador e uma escova redonda quando entramos no seu estabelecimento-museu, com artigos de Judaica e astrolábios.

Ele disse que estava muito feliz porque éramos os primeiros a entrar ali naquele dia, e já passava das duas da tarde. Tinha um problema no coração, vivia na França e estava lá para se desfazer de tudo que estava naquele espaço, inaugurado por seu pai. Segundo ele, Maimônides vivera naquela casa. Não sei se era verdade, mas ele nos mostrou uma Torá muito antiga, inscrições em hebraico nas paredes que indicavam que aquele lugar, se não foi a casa da família de Rambam, foi um local de educação judaica ou algo assim, muitos objetos que remontam a uma vida judaica populosa. Foi lá que comprovei uma suspeita prosaica que me acompanhava desde os primeiros dias de Marrocos: as chanukiót (candelabros utilizados em Chanuká, a festa das luzes) marroquinas têm um formato único, parecem feitas para serem penduradas na parede, e com depósitos para o armazenamento de óleo, não para velas, como estamos acostumados. Fui acometida por um surto consumista e quis muito uma chanukiá daquelas, embora não acenda velas em Chanuká, depois quis um astrolábio, obviamente um objeto ainda mais inútil, pechinchei, mas não deu. Fomos embora, o velho obviamente frustrado e irritado porque depois de tanta conversa não vendeu nada, e provavelmente encerraria o dia tendo como únicos possíveis clientes dois brasileiros cujo interesse em sua loja-museu era inversamente proporcional ao dinheiro que dispunham para tchatchkes. Nosso interesse não tinha um selo de autenticidade como o astrolábio que ele tentou me vender, mas fomos sinceros.

Em Tanger, a única sinagoga que visitamos hoje é um museu tristinho de fotografias antigas da cidade. No lugar antes ocupado pelo Aron Hacódesh, um palco de teatro infantil, com um cenário permanentemente montado, no caso, uma cama e móveis de um quarto antigo, uma arara com vestidos. Em comum com as outras sinagogas que visitamos era a presença dos mosaicos de azulejos coloridos, tão característicos do Marrocos e da Andaluzia. Mas a essa altura da viagem, os azulejos já tinham deixado de chamar a atenção. Lembrei de uma igreja transformada em academia de ginástica em Nova York e não só lá, e da festa de aniversário hipster em uma antiga yeshivá da série Russian Dolls. E então entendi que talvez o que melhor simbolize essa busca, e inevitavelmente esse relato, seja o momento em que vi em algum souk — sequer me lembro qual — placas prateadas com imitações de hebraico, algumas letras imaginadas, uma falsa relíquia tentando desesperadamente dizer alguma coisa para algum estrangeiro, sem entender o que ele procura mas sabendo que é o que um dia esteve ali.

*Thais Kuperman Lancman é doutoranda em Letras pela Universidade Presbiteriana Mackenzie.

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