A torrente das coisas*

thais k. lancman
Revista Pasmas
Published in
8 min readOct 23, 2020

“O amor pode desviar, pode tombar, mas existe esperança de que, em seu movimento natural, ele chegue.”

por Thais K. Lancman

Mas as melhores metáforas para o amor são aquelas em ele está atrelado a movimento, por uma certa imprecisão precisa. E por serem movimento, e por serem tão boas, falar delas revela algo da sua natureza. Uma deliciosa imagem que não encerra a questão, mas a expande, o que faz dela tão poderosa e tão apropriada.

Percebi isso com Let me roll it, do Paul Mccartney & The Wings, na fixação instantânea que a imagem do amor — ou do coração, invólucro desse amor — como uma roda, empurrada até chegar ao Outro, provocou em mim na primeira vez que ouvi essa música, em uma viagem de ônibus, anos atrás. E, depois, quando Fiona Apple cantou essa música no programa do Jimmy Fallon e imediatamente se tornou minha cantora favorita e uma das minhas referências pessoais de liberdade e potência artística.

Então, penso nesse amor que uma pessoa entrega a outra, mas sem depositar nas mãos, e sim com um empurrão, fazendo-o girar, mover-se sozinho, até chegar a alguém, aquele que se tinha em vista desde o princípio. Tanta coisa pode acontecer no caminho. O amor pode desviar, pode tombar, mas existe esperança de que, em seu movimento natural, ele chegue.

Na mesma época, ouvia muito The Black Keys. Ainda ouço na verdade, tanto o álbum Brothers quanto o Paul pós-Beatles. E desde então, chama a minha atenção que uma das minhas músicas preferidas desse disco, Everlasting Light, fale no amor como the coal that makes this train roll.

O amor, então, pode ser não a roda, mas o carvão que alimenta o fogo do trem. Algo que está lá para ser consumido, cujo estoque se renova indefinidamente, e que, entre mil processos mecânicos, faz uma máquina gigante se mover. O resultado é que uma estrutura enorme, de ferro, pesada, que na nossa imaginação, em movimento, parece leve, pairando sobre os trilhos.

Penso no amor e nas viagens. Celine e Jesse, de Antes do Pôr do Sol, teriam se apaixonado se não estivessem em um trem? Ainda que não mais movido a carvão, mas na própria máquina deslizante que os levou a Viena e depois Paris? Eles se apaixonaram por eles ou pela jornada? Não me cabe analisar, mas gosto da hipótese, da bruma que envolve os dois naquele trem, a fumaça do carvão-amor que contagia e, assim que o trem que se move, tudo aquilo que está dentro dele está imerso em amor, talvez não prestes a vivê-lo mas disposto a olhar o mundo através desse filtro. Enquanto estão entre lugares, incorporam o amor, como se embriagados de uma poção.

Cena do filme Antes do Pôr do Sol (Richard Linklater, 1995)

É bem da nossa construção dos relacionamentos, o gosto que as pessoas parecem ter em falar que, por trás das aparências de alegrias e da facilidade que a autossuficiência do amor traria, estão as dificuldades, os desafios diários. Eu sempre procurei me ater à imaginação, rejeitando o peso dos discursos e trabalhando, muito mais interna do que externamente, pela leveza das relações humanas, materializando o trem flutuante imaginário que desliza sem limites movido a carvão renovável (o meu romanticismo galopante ao escrever esse texto não deixa eu me render ao eterno posto que é chama).

O pensamento também se move, então elucubro aproximações possíveis entre os dois, o amor-roda e o amor-carvão. Ambos com ponto de partida certo e um ponto de chegada estimado, mas sob o risco de se perder. A roda não escolhe quem a segura na volta. Eu imagino o amor de Let Me Roll It como um jogo infantil em que um empurra um pneu a outro, um pouco distante mas-não-tão-distante.

Talvez esse seja o detalhe fundamental desse amor, saber que há uma incerteza mas ao mesmo tempo se garantir de antemão que o destinatário do amor está a uma distância apropriada e consciente de sua tarefa de receber aquela roda com os dois braços e o corpo todo, em um gesto quase de abraço. E o mesmo, talvez aconteça com o carvão, que está lá para ser utilizado nas caldeiras do trem, apenas uma situação absurda levaria a outro uso.

A roda para. O carvão se consome. Essa talvez seja a diferença fundamental. A roda ainda é roda, mesmo que parada. Ela sempre parece à espera de rodar novamente. O carvão não, ele acaba, vem outro carvão, e outro, e outro, e somos nós que nos movemos. Não que seja exatamente produtivo listar diferenças como se quisesse chegar a uma escolha definitiva para a melhor metáfora, apenas é prazeroso conservar a ideia de que amor é algo que se movimenta em direção a algo ou alguém, e que tem algo de sobrenatural que o envolve em sua movimentação, no entre (o trem flutuante em estação nenhuma, a roda entre mãos).

Entre, a roda girou entre Paul, George e John. Let Me Roll It é, talvez, a música mais johnesca de Paul, o que, segundo Mccartney, não foi intencional. Coisa de quem escreveu muito junto, talvez, competição saudável quem sabe, prefiro pensar que é algo próprio desse amor, do pneu lançado de um a outro, sempre perto para que o outro pegue e, ao mesmo tempo, para saber o que e outro está fazendo a todo instante.

Tem mais. O Let Me Roll It de Paul e o verso let me roll it to you de George Harrison, na música I’d Have you Anytime. Palavras e sons que passam de um a outro, e não pode a matéria do amor ser, ela mesma, amor, sem jamais encostar em pessoas, prescindindo de uma relação? Taí uma parte das metáforas que se revela, Amour sans Amour, que talvez realmente não mire alguém específico mas uma ideia de alguém, apenas como pretexto para existir. De tão insignificante, encolhe e some, e versões do amor, coisas do amor, passam a ser ele próprio, não menos puras e, portanto, disponíveis para nós colhermos, organizarmos numa cesta, darmos de presente com um laço bonito.

Na mesma toada, Neil Young pegou Lady Jane dos Rolling Stones e fez a música emprestada, Borrowed Tune, mais materialização da pureza daquilo que não é de um nem de outro, da terceira coisa que consolida o amor, não do relacionamento amoroso ou da amizade, mas um amor pelo estado das coisas, pela oportunidade da experiência. E todo amor, talvez, seja isso, e por isso precisa de mover, para que tenhamos a ilusão de antes e depois, de aqui e lá. E aquilo que amamos, pessoas, músicas, ideias, se juntam umas às outras nos fazendo querer falar assim, das coisas em corrente.

Volto, então, ao amor e às viagens. Quando não se está em lugar nenhum e, então, o amor ganha forma, peso, parece ser mensurável. Pode-se pintar o amor, escrever sobre ele quando ele possui a consistência do trânsito. Não falo das viagens empreendidas em nome do amor, Odisseia, Divina Comédia, apesar de querer falar, saber que são pontas soltas dessa conversa jogada fora. Fica aqui uma sugestão, para que se imagine essa conversa como uma conversa paralela. Futuros amantes, sem se afobar, nada é pra já. Flea, baixista do Red Hot Chili Peppers, fala em seu livro de memórias das inúmeras viagens que fez com Anthony Kiedis, vocalista na banda, no início da amizade entre os dois. Amizade a que ele se refere como uma longa conversa, iniciada no dia em que se conheceram e esticada até músicas compostas em parceria.

A primeira vez que esquiou, Flea estava acompanhado de Kiedis. Amou esquiar. O amor então, fico aqui pensando, é o movimento, entre cidades, da descida das montanhas, do mundo que se desdobra à sua frente em velocidade ampliada, a roda que gira e que faz os dois “vibrarem na mesma frequência”, Flea diz, quando, novamente, o amor vira algo, música.

“Saber que não se escreve para o outro, saber que as coisas que vou escrever não me farão nunca amado por aquele que amo, saber que a escritura não compensa nada, não sublima nada, que ela está precisamente aí onde você não está — é o começo da escritura”, diz Barthes em Fragmentos de um Discurso Amoroso. Talvez isso me encante nessas metáforas, no amor em movimento, colocado em palavras ou memórias, paradoxalmente a ineficiência delas consegue exprimir, um pouco, esse começo da escritura que é, por sua vez, única materialização do amor possível, porque não sublima nada, é ela mesmo algo, disponível para ser apropriado, transformado, jogado por entre os cantos.

Cena do filme A Liberdade é Azul (Krzysztof Kieślowski, 1994)

Algo que pede para se completar. Em A Liberdade é Azul, a criação da música e a concretização do amor só ocorrem quando há movimento. Enquanto Julie não age, tudo está parado, como a água da piscina. Ela nada, transita entre as pessoas, bares de strip-tease, o asilo em que está a sua mãe. Olivier anuncia que vai terminar a sinfonia do marido falecido de Julie e, quando questionado, diz que só fez isso para força-la a tomar alguma atitude na vida. Julie toma muitas atitudes, e então, ao fim de todas elas, termina a sinfonia. E, depois, se dirige à casa de Olivier.

O filme se encerra com a sinfonia, tocada sobre imagens dos personagens da história, afetados de diferentes formas por Julie, imagens intercaladas no azul, cor da liberdade. A liberdade não é a da mulher que, no início do filme, dizia querer sumir, não fazer nada. A liberdade extraída da ação, o movimento emulado e depois conquistado do qual surge essa forma estranha de amor. Ela desliga o telefone, corre e, então, mais uma vez, uma música, que embala as pessoas, que tem cor e formas. Mas não o contrário. A música é o amor, as pessoas não. Elas o constroem com as mãos e a mente, e então o vivem, o consomem, tiram proveito dele, aprendem com ele.

Nesse meu périplo entre músicas, leituras e filme amarrados por um fio frágil e talvez inexistente, talvez tenha elaborado uma topografia precária do amor, um álbum pessoal e com as páginas soltas, com as figurinhas feitas por mim, ainda não coladas, sempre voando. As coisas bonitas que nos tocam têm esse poder de se aglutinarem, de quererem ficar conosco se amarrando a outras coisas bonitas. Eu tento agarrar essas figurinhas a todo instante, antes que elas se percam, ainda que defenda que é da natureza delas voar, e ficamos nesse jogo. Não vou dizer que o amor é isso, mas o amor está em alguma parte disso.

Thais K. Lancman é escritora e doutoranda em Literatura Comparada pela Universidade Presbiteriana Mackenzie, São Paulo.

*A Torrente das Coisas é um trecho do seu livro inédito Meu ano Flávio de Carvalho.

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