A vida intensa de Hilda Hilst

Daniella Zupo
Revista Pasmas
Published in
4 min readApr 21, 2019

Se a obra de Hilda tivesse sido escrita por um homem, teria sido reconhecida em seu tempo?

por Daniella Zupo*

A primeira vez que li Hilda Hilst foi em uma entrevista para uma revista de literatura. Fui arrebatada por aquela senhora culta, intensa, irreverente e indecifrável, que vivia com dezenas de cachorros e a companhia de alguns amigos, numa espécie de exílio intelectual. Ela dizia que “metal algum pode cavar mais do que a pá da palavra” abrindo caminhos para o entendimento mais profundo de um ofício que eu, estudante de jornalismo, indagava. A partir daí, tomei contato com quase tudo que Hilda escreveu, a começar pela poesia.

E que poesia! De sua estreia literária em Presságios (1950) até o último livro, Cantares do sem nome e de partida (1995), o que se confirma nesta obra é um timbre absolutamente pessoal que se constrói sobre temas universais: o sagrado, o desejo, o amor e a morte. Mas Hilda transitou com a mesma desenvoltura pela ficção, pela crônica e pelo teatro. Com a originalidade própria dos grandes autores, construiu uma trajetória literária à margem das tendências de seu tempo. Por isso, em determinado momento, ela decide pela incursão na literatura pornográfica, com a ironia que lhe era peculiar : ”Agora vou ganhar dinheiro.” E escreve sua trilogia obscena : “O caderno rosa de Lori Lamby”, “Contos d’escárnio/Textos grotescos” e “Cartas de um sedutor”.

Uma provocação aos que não souberam receber sua produção literária até então. Questionada sobre a “guinada” ela responderia : “ Obsceno? Ninguém sabe até hoje o que é obsceno. Obsceno para mim é a miséria, a fome, a crueldade, a nossa época é obscena.”

Não se fez popular. Sua literatura pornográfica, conforme lhe explicaram, era dificílima. Uma vez Hilda perguntou ao amigo e crítico de teatro Anatol Rosenfeld: Por que acham que escrevo para eruditos? Eu falo tão claro. Falo até sobre a bunda.” Ao que o amigo respondeu: “Tua bunda é terrivelmente intelectual, Hilda”.

Apesar do prestígio literário, Hilda muitas vezes foi publicada com baixas tiragens e, durante anos, parte de sua obra esteve fora de catálogo ou esgotada. Sua obra completa só foi reeditada em 2018 pela Cia das Letras, mesmo ano em que foi a autora homenageada na FLIP ( Festa Literaria Internacional de Paraty).

Além da obra reeditada, chegou ao mercado literário, também em 2018, o primeiro perfil biográfico da autora : “Eu e não outra: a vida intensa de Hilda Hilst” ( Ed.Tordesilhas) organizado por Laura Folgueira e Luisa Destri. O livro tenta abarcar essa intensa biografia, desde o seu nascimento em Jaú, no interior de São Paulo até sua morte na Casa do Sol. E a vida incomum vivida entre estes dois episódios: a precoce carreira literária, iniciada aos 20 anos, a juventude glamourosa com flertes que incluíram Marlon Brando, a ida para a Casa do Sol aos 36 anos em busca de uma rotina mais reclusa e concentrada na escrita e o relacionamento com o pai Apolônio, esquizofrênico, também escritor, de quem sua mãe se separou quando ela tinha 3 anos de idade e a quem ela, em diversas entrevistas, afirmava ter dedicado sua obra. “Meu pai ficou louco, a obra dele acabou. E eu tentei fazer uma obra muito boa para que ele pudesse ter orgulho de mim.” O livro tem o mérito de lançar luz sobre a biografia de uma mulher tão fascinante quanto sua obra. E de deixar claro o comprometimento de Hilda com a literatura, a quem dedicou sua vida com verdadeira devoção.

HIlda aos 29 anos. Foto: Fernando Lemos.

Uma questão inevitável ao se constatar a envergadura da obra hilstiana e o desconhecimento desta obra por grande parte do público durante décadas, e até mesmo uma certa negligência do establishment literário: se a obra de Hilda tivesse sido escrita por um homem, teria sido reconhecida em seu tempo? Difícil afirmar com precisão, mas o fato dela ter sido uma libertária certamente não a acomodou facilmente entre seus pares nem tampouco entre os leitores da época. Hilda era livre. Mais livre que permitia o seu tempo. Namorou quem quis, se casou, descasou. Não teve filhos por opção. Viveu uma vida de badalação na alta roda paulistana, abandonou tudo ao decidir que literatura e frivolidade eram incompatíveis. Fez pesquisas com o além e escreveu sobre sexo e sobre Deus. Como escreveu Caio Fernando Abreu em carta à amiga: “Sem ser panfletária nem dogmática, você é a criatura mais subversiva do país. Porque você não subverte politicamente, nem religiosamente, você subverte logo o âmago do ser humano.”

Quinze anos após sua morte, Hilda nunca foi tão lida e pesquisada. Mas a importância do resgate desta obra é, sobretudo, chegar onde Hilda sempre quis: ser lida por um público mais amplo, desbancando a pecha de “autora hermética” que ela tanto abominava. Uma injustiça que o tempo parece poder reverter. Até certo ponto. Porque ler Hilda Hilst sempre será estranhamento, mas apenas porque nos coloca diante das forças primordiais. Da vida e da literatura.

Sim, a vida, “essa aventura obscena, de tão lúcida”.

*Daniella Zupo é jornalista, escritora e documentarista.

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