As Impressionistas

por Thais Lancman, editora do nosso Salon des Refusés.

thais k. lancman
Revista Pasmas
4 min readDec 18, 2020

--

Costumo pensar nos jurados de premiações literárias como pessoas convidadas a responder à pergunta clichê de leitura ideal para uma ilha deserta. Por um lado, a questão se debruça sobre uma situação irreal. Dificilmente se estará em um local ermo e, caso isso ocorra, não haverá a possibilidade de escolha daquilo que se lê. Além disso, quem gosta de ler a ponto de priorizar um livro no caso de um exílio, sofre com a necessidade de fazer uma escolha radical pois nunca se satisfaz com um livro apenas. Por outro lado, o exercício reflexivo produz resultados interessantes. Quando autores disputam prêmios, é inevitável pensar na artificialidade do processo. O premiado (ou o conjunto de agraciados com alguma soma em dinheiro ou menção honrosa) é aquele que segue com o júri para algum tipo de ilha deserta, tornando quase obrigatória a pergunta a respeito dos outros concorrentes.

Essa comparação é para reafirmar que existe um grau de ficcionalidade em conceder um prêmio a um texto ou livro. Isso não se traduz na crítica que costumam fazer aos prêmios, geralmente na chave da justiça. Dizer que um prêmio é injusto porque alguém venceu enquanto outro bom autor perdeu é o mesmo que condenar alguém que escolhe levar Machado de Assis para sua ilha deserta, em vez de Guimarães Rosa. Ou, ainda, que escolhe As Mil e Uma Noites, pelo volume de texto, ou prefere pensar em um clássico de sua infância no lugar de qualquer obra canônica, optando pelo valor afetivo. Enfim, são muitos critérios, de forma que a artificialidade do prêmio — no sentido de dizer que uma é a grande obra literária do ano ou algo do tipo — não faz dos métodos e critérios de uma premiação condenáveis. Especialmente no caso do Concurso de Ensaísmo serrote, que contemplou ensaios inéditos e cujas inscrições fizeram uso de pseudônimos, excluindo então o peso de biografias e editoras consagradas.

Dito isso, adianto: os ensaios desta coletânea são perdedores, mas nem por isso deixam de ser excelentes. É como se o júri, frente a uma estátua, tivesse optado por fotografá-la de um ângulo específico. A Pasmas, depois de observar este registro, optou por outro. Aqui estão sete autoras, de diferentes locais do Brasil e com trajetórias próprias na escrita, unidas nesse bloco de mármore que foi o concurso, formando o nosso Salon des Refusés. Em vez de ensaios parados em gavetas, a publicação por conta própria, como no Salon original, que acabou sendo o meio do Impressionismo de criar seu espaço na História da Arte.

Tacita Dean, The story of beard, 1992*

A fotografia que exibimos aqui do ensaísmo feminino produzido para o concurso da revista serrote sintetiza uma variedade de contextos e referências. São mensagens na garrafa que merecem chegar a alguma praia e certamente farão a alegria de náufragos. Ao mesmo tempo, a coletânea sugere algumas linhas mestras, fazendo desse registro, como o oficial e premiado, uma leitura do momento atual sob uma ótica particular. Nesse sentido, temas cotidianos em 2020, em especial a pandemia e a morte como tema constante e onipresente surgem nos ensaios desta coletânea.

Isadora Sinay, por exemplo, traz os protocolos sanitários que tomaram a nossa vida nos últimos meses em face do prazer, contrapondo-o à assepsia como estabelecida em romances distópicos de Orwell e Huxley. Já a morte propriamente dita e sua ritualização nos tempos modernos são centrais no ensaio de Julia Medina. Em tempos de distanciamento social, as palavras escritas em condolências e reflexões diante do luto ganham uma nova dimensão. Julia estende a nós a pergunta que faz a si mesma em um desses momentos: os grupos de Whatsapp e a linguagem dos emojis estão prontos para esse tipo de situação?

Outro foco dessa coletânea são as tragédias clássicas. Mariana Nepomuceno busca nelas respostas para o Brasil de Bolsonaro, fazendo uso do grotesco e das questões que ele suscita, enquanto Natalia Acurcio Cardoso nos oferece uma leitura do feminino em Antígona, entendendo a insubmissão da personagem que dá título à obra face sua feminilidade e a leitura que foi feita dela.

É característico do ensaio (ainda que seja um Gênero Intranquilo, como diz João Barrento, então qualquer traço fundamental é sempre questionável) o largo uso de situações pessoais, e é o que vemos com particular destaque em três ensaios reunidos aqui: Beatriz Milanez faz uma espécie de diário de leitura ao longo dos estudos na Universidade, em meio à descoberta de conceitos e textos sobre gênero, Teoria Queer e afins como instrumentos de análise da realidade política brasileira. Amanda Calazans convida à observação de sua boca, especificamente seus dentes, fazendo uma leitura subjetiva e também social da odontologia. Para tanto, ela traz consigo Rubem Fonseca. Por último, eu, Thais Lancman, agrego algumas linhas sobre a idade e o envelhecimento em tempos de Internet: nossa ânsia por uma vida online atualizada e sua característica de arquivo-vivo, sempre à mostra.

Foi com muita alegria que a Pasmas recebeu a minha ideia de criar este Salon des Refusés, e é nesse clima de confraternização e contentamento que apresento o meu texto e das minhas colegas impressionistas (não seria o impressionismo a dor e a delícia do ensaio?). Ao longo de uma semana, os ete ensaios serão publicados aqui na Pasmas, e posteriormente estarão em uma coletânea disponibilizada em ebook. Eis aqui aquelas que mentalmente chamei de Beautiful Losers nas últimas semanas. Espero que gostem!

Dezembro de 2020

*todas as imagens ilustrativas dos textos publicados no nosso Salon são releituras de Le déjeuner sur l’herbe, quadro que Édouard Manet expôs no Salon des Refusés original, em Paris, 1963.

--

--

thais k. lancman
Revista Pasmas

eu quero uma vida lazer, com muito sucrilhos, kiwi e mate