As mulheres dos resistentes

Lembrando os heróis e as heroínas que tiveram suas vidas vigiadas pelo Dops

Heloisa Pait
Revista Pasmas
5 min readSep 5, 2019

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– Uma verdadeira adoração, a Sarinha pelo Goldman. Era uma coisa que não dava pra entender… — minha mãe falava pensativa, voltando duas décadas atrás, quando eram todas jovens e haviam, pelo casamento, decidido seus destinos.

Fichas do Dops disponiveis no Arquivo Público

Minha mãe, pelo que contava, teve outras opções, entre elas um homem bonito, rico e não muito bem dotado no que realmente importa para um mulher: o cérebro. Escolheu o piadista da festa, ao lado de quem construiu uma vida divertida — ele a fazia rir até mesmo durante as ácidas brigas de divórcio — mas sem um dia de folga: trabalhou até o fim.

Na tradição judaica, o casamento tem um componente prático muito grande, sendo regido por contratos públicos. A devoção é reservada aos pais, por um lado, e aos filhos, pelo outro, como tantos já explicaram e até ironizaram. Daí a surpresa de minha mãe com essa devoção fora da tradição.

Os jornais deram destaque à morte de Alberto Goldman, de modo apropriado dado o papel que o líder político desempenhou na história recente brasileira. Mesmo o governador atual, seu inútil desafeto, declarou luto oficial; como vice-governandor, Goldman exerceu o comando do Estado por alguns meses. O comunista Alberto Goldman esteve presente em todos os passos da reconstrução democrática da qual participou a geração de nossos pais.

O Brasil, país de paradoxos, teve em uma das alas do Partido Comunista uma cultura democrática, legalista e até mesmo liberal, que recusou a luta armada durante o regime militar. Essa esquerda progressista perdeu espaço, com a repressão dirigida dos anos 1970 e depois com a emergência do Partido dos Trabalhadores, para a esquerda sindical e ideológica, numa guinada que é responsável, em larga medida, por nossa catástrofe atual. No momento em que a sociedade brasileira busca se reorganizar para enfrentar os novos riscos do autoritarismo, é certo resgatar nosso passado de lutas democrático, de pragmatismo político e de uma visão de longo alcance que Alberto Goldman representou.

Na bela matéria do Estadão sobre Goldman, ele conta ter buscado se dedicar aos filhos quando já era avô. E fica então uma lacuna no artigo: quem criou os filhos? Quero aqui lembrar que a resistência contra a ditadura, arriscada e custosa, teve a participação de mulheres tanto na linha de frente quando na retaguarda, onde cuidavam das tarefas tradicionais femininas e muitas vezes se desdobravam nas tarefas de seus homens presos, clandestinos ou simplesmente dedicados à causa. Nos últimos anos, maior atenção foi dada aos jovens de 1968, a maioria dos quais era solteira e sem filhos. Mas entre os comunistas, a repressão pegou muitos já casados, com mulher e filhos, com responsabilidades que alguém deveria assumir, já nos anos 1970.

Clarice Herzog se tornou um ícone da resistência, mas há tantas outras que tiveram que assumir funções de família mesmo sem passar pelo drama que se abateu sobre a família Herzog. Lembro aqui a mãe de meu amigo querido Felipe de Holanda, que durante a ausência do marido foi pai e foi mãe, levando os filhos para visitar o pai preso e principalmente levando o sustento, a estabilidade, os valores para casa, enquanto Jarbas de Holanda lutava uma luta que era de todos os democratas. Sua exemplar carreira como gestora pública foi motivo de orgulho para os filhos e também para nós, seus amigos.

Fichas do Dops disponiveis no Arquivo Público

Não vi na Enir Guerra Macedo a devoção ao marido, que minha mãe apontava em Sarinha. Mas vi sim o respeito e a compreensão, o companheirismo enfim, de uma verdadeira esposa. Estão os dois bem de saúde e é um prazer vê-los nas festas de família! Jarbas primeiro foi preso, se não me engano, quando era vereador da cidade de Recife, logo em 1964, por se recusar a votar a favor de um projeto de lei imposto pelos ditadores. A partir daí, membro do Partido Comunista, alternou períodos preso e clandestino, enquanto os filhos cresciam e a Enir labutava.

É preciso então lembrar os Jarbas e as Enir, os Goldman e as Sarinha, pois foram juntos que eles puderam resistir à ditadura e manter sua dignidade, manter os laços sagrados entre pais e filhos, manter a família, essa instituição genial, intacta, apesar de todos os ataques.

Hoje as coisas são distintas. Hoje as mulheres estão em maior número na linha de frente, nas passeatas, nos parlamentos, sofrendo de modo direto, e não só indireto, os ataques vis do poder. Hoje precisaremos nós de companheiros que nos lambam as feridas depois de cada enxurrada de críticas ou de ameaças. Hoje precisamos, como ontem, enfrentar juntos os riscos a nós, como indivíduos, e à nossa democracia, mas o que será esse “juntos” é algo que vamos desenhar nós mesmos, em novas formas de solidariedade.

Quanto ao meu pai, minha história foi mais doce. Meu pai, primeiro pela ressonância do 20º Congresso do Partido Comunista, de 1956, depois pelo anti-semitismo do próprio Partidão aqui no Brasil, resolve sair do partido. Quando chega 1964, ele já tem com o comunismo uma relação remota. Depois se apaixona pelos Estados Unidos, para surpresa de amigos, mas olhando a posteriori, fazia todo o sentido: ele tinha a alma novaiorquina. Se em 1964 ele preferiu ficar uns dias no Guarujá esperando as coisas se definirem, quando os arquivos do DOPS se abriram ele constatou que o regime nada tinha contra si.

Já minha mãe tinha uma paciência limitada com os arroubos artísticos de meu pai; com os arroubos políticos, não teria nenhuma. Assim como ela selou seu destino se casando com ele, ele também selou o dele casando com ela: devia saber, no fundo, que não encontraria em casa uma Sarinha, nem uma Enir, e talvez nem mesmo uma Clarice, se fosse o caso. Era possível, mas não se pode saber ao certo, que ficasse de sua luta apenas rancor. Minha mãe não se importava do suar; era parte do contrato entre os dois. Só que lágrimas não seriam. Então cresci, naqueles anos turbulentos, com os dois pais em casa, com conforto material e com segurança.

Hoje tenho a noção de que isso foi uma possibilidade entre muitas e nesses próximos anos, quando nos despedimos daquela geração, devemos sempre lembrar dos heróis e das heroínas que tiveram suas vidas vigiadas pelo Dops.

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Heloisa Pait
Revista Pasmas

Professora de sociologia, pesquisa o papel dos meios de comunicação na construção da esfera pública. Publicou contos em revistas brasileiras e americanas.