Carta a Hanna Paulsson

Juliana de Albuquerque
Revista Pasmas
Published in
6 min readJun 25, 2020

A escritora Francesca Cricelli compartilha os tesouros do seu baú de arquivos ficcionais.

Buscavas uma flor
e encontraste um fruto.
Buscavas uma fonte
e encontraste um oceano.
Buscavas uma mulher
e encontraste uma alma —
ficaste desapontado.

Edith Södergran, “O dia arrefece”
tradução de Luciano Dutra

Edith Södergran (1892–1923)

Essa é uma carta descoberta em meu baú de arquivos ficcionais dedicada a Edith Södergran, Hagar Olsson, Hilda Hilst e Marguerite Duras. Em meu doutorado me ocupei da transcrição, organização, estudo e tradução das cartas de Giuseppe Ungaretti a sua amada Bruna Bianco. Desde então, o gênero epistolar tornou-se um dos meus preferidos. Afinal, seria a carta uma messa in scena, como se diz em italiano, uma teatralização? Quais seriam as projeções e invenções numa comunicação epistolar? Aqui faço uma homenagem à poeta símbolo do modernismo sueco finlandês, Edith Södergran, e sua parceira e amiga, a escritora, jornalista e dramaturga Hagar Olsson. É uma carta imaginária em que o desejo se faz um pouco mais explícito do que seria possível revelar na poesia ou mesmo nas cartas existentes da poeta à amiga. Edith viveu desde sua mocidade com tuberculose e faleceu da doença em 1923. Nasceu num território entre culturas, no que hoje é Rússia mas já foi Finlândia, sua escolarização foi em alemão mas sua língua doméstica era o sueco. Nessa missiva imaginária, misturam-se, distorcidos, alguns versos seus, frases soltas de cartas reais, versos de poemas seus, mas também Hilda Hilst, e acena-se a um conhecido poema de Marguerite Duras. Quanto mudou no mundo literário, em cem anos, a posição ocupada pelas mulheres? O que é preciso ainda se permitir para existir nesse contexto? Os nomes das protagonistas são levemente alterados, para acomodarem-se confortavelmente no campo ficcional.

Francesca Cricelli [1]

Hagar Olsson (1893–1978)

15 de março de 1920

Hanna querida,

Sonhei contigo a noite passada. Os dias por aqui se arrastam divididos entre as horas que gasto a fitar o teto e as outras em que me perco no horizonte, sinto falta dos meus gatos nesse confinamento, há momentos em que o tratamento é doloroso e estar tão arrancada do mundo é-me um aleijamento. Meus parcos livros, cadernos e suas cartas, sim, mais do que qualquer outra coisa, é o meu desejo de escrever a ti o meu amparo nessa travessia.

Dizia do sonho, estávamos em minha casa em Raivola, tu sempre impecável vestindo uma camisa branca, calças escuras combinando com o paletó, uma gravata. Teu olhar noturno, o sorriso discreto, sempre a ocultar os dentes, os cabelos arranjados cuidadosamente num coque modesto e baixo. Teu cabelo sempre parece mais curto do que deveras é. Tu sempre aprumada e eu, como os meus fios, convulsa, criando uma ponte entre pensamentos e firmamento. No sonho, eu estava sentada na grama, mantinha as costas apoiadas numa bétula, e tu te deitavas em meu colo. Mantinhas a tua cabeça deitada em meu colo alvo. Tu deitada em meu colo! Hanna, eu sabia, desde que iniciamos essa correspondência, após sua resenha sobre meu livro, que seríamos assim distantes e inseparáveis, cruéis e amáveis uma com a outra, afiadas como diamantes. Nesses dias de isolamento, é mais evidente que tudo vive em mim, tudo se entranha, e o que mais desejo é uma companheira de brincadeiras que possa romper com o granito morto desse céu e desafiar a eternidade. Estavas mais magra no sonho e lias um novo conto, ou talvez um esboço de dramaturgia, do enredo eu não me lembro, mas fica nítida uma imagem: falavas de uma poltrona para dois. O móvel estava revestido com um estofado turquês de veludo, acomodado sobre uma jangada, ele flutuava no mar colorido de azul-báltico. Teria sido o mar do leste esse do sonho? Ou um mar mais ao norte, um oceano escuro como os meus olhos, um mar rodeando uma poltrona-montanha? Uma poltrona dupla com vista para o oceano, um confortável assento arremessado em alto mar, à intémperie, não, um assento duplo protegido pelo bom tempo, a falta de ondas e pouca correnteza. Estaríamos sentadas uma ao lado da outra, expectadoras das marés? Ou teríamos sido objeto de observação dos pescadores e das sereias, em meio ao palco líquido e obscuro do mundo marítimo? Duas mulheres, uma ao lado da outra, sob os holofotes. Acordei sentindo-me culpada, como se tivesse que esconder de mim algum vestígio dessa viagem onírica, dessa visita noturna. Revirei-me sob o lençol. Nada mais me lembro desse sonho, mas pouco importa, queria voltar ao teu rosto virado para o meu, sua boca a narrar a escrita, queria voltar somente para percorrer de novo, com os olhos, a linha fina dos teus lábios, essa cor incerta, nem rosa nem rubra, essa cor exata no sonho e inexata na vigília. Hoje o dia arrefece novamente, caminha rumo ao anoitecer e embaixo da minha língua esse enigma terroso, rosado, um sabor agre de vislumbre. Diz-me, Hanna, por onde anda minha liberdade de mulher, essa que caminha de cabeça erguida? Minha risada? Em que condições vivemos realmente, nós mulheres, Hanna?

As paredes nesse confinamento estão todas vazias, só há a repetição do branco, é como o rijo ribombo da realidade isso, o branco, perder a noção do tempo entre um tratamento e outro, o isolamento, contra os meus sonhos há a realidade. Há algo desses dias que me remete à tentação de Santo Antão. Diferentemente da representação de Bosch, ou de algum discípulo seu, sinto que não fui conduzida a esse lugar por vontade própria, muito pelo contrário, o que me trouxe aqui foi uma força maior: o tempo em que vivemos, essa doença, minha herança genética, o ressurgimento da enfermidade que levou meu pai. Sinto que, por trás dessas paredes, deve haver uma paisagem miraculosa, todos os verdes da Carélia em primavera, uma abertura para caminhos que correm entre os lagos, riachos, águas que correm rumo ao mar. Por trás desse oco alabastro, há uma capela rústica de madeira, as cúpulas são seios tesos, divindades apontando ao céu. No entanto, eu, como Santo Antão, só vejo diante de mim um fluxo de seres escabrosos flutuando num outro riacho. Sonhar-te arrancou-me à fixação dirigida ao tempo que corre à revelia da minha vontade. Por trás do que se apresenta agora, albugíneo e anevoado, ou à frente, em algum outro lugar, como em sonho, ocupa-me a boca toda, a língua, os lábios, as arcadas dentárias, o céu da boca, transborda quase uma nostalgia por uma cor desconhecida. Imagino-a se revelando sob sua camisa branca, será da mesma cor do seus lábios finos? Concebo-os, rosados ou terrosos, esféricos, rotundos da cor das mãos impressas em negativo, quiçá, há trinta mil anos numa caverna francesa. Dobro-me como diante de uma deidade. Nós, duas fortes mulheres em sua dura hora. Demora-te, dizes com teus olhos mouros, firmes sobre meu corpo tiritante. Demora-te. Te fazes carne e posse. Tu e eu num divã em alto mar, tu e eu sob a sombra de uma bétula no jardim da casa da minha, tua, infância. Irmãs sob as tramas; irmãs sob a pele. Me tire daqui, Hanna.

Judith Nordgren

[1] Nascida em 1982 em Ribeirão Preto, Francesca Cricelli é poeta, pesquisadora e tradutora literária. Doutora em Letras Estrangeiras e Tradução pela Universidade de São Paulo, publicou os livros Repátria (Demônio Negro, 2015), 16 poemas + 1 (edição de autora, 2017 e 2018), As curvas negras da terra (Nosotros, 2019) e Errância (Macondo e Sagarana forlag, 2019). Atualmente vive na capital mais ao norte do mundo, Reykjavík, onde estuda língua e literatura islandesas na Universidade da Islândia.

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