Civilização é Esterilização

Em análise sobre as obras Admirável Mundo Novo e 1984, a autora reflete sobre o futuro da humanidade.

Isadora Sinay
Revista Pasmas
12 min readDec 22, 2020

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por Isadora Sinay

No nosso imaginário social Admirável Mundo Novo e 1984 são livros que retornam sempre como opostos complementares ou reflexos em um espelho. Escritos com 17 anos de diferença por homens que possuíam uma ligação peculiar (Huxley foi professor de George Orwell em Eton), os dois romances partem de uma mesma tese central: o futuro da humanidade representa a perda de sua liberdade. Contudo, os livros entendem essa liberdade e sua perda de formas opostas: tornou-se lugar-comum dizer que Orwell prevê nossa prisão feita daquilo que odiamos, enquanto Huxley vislumbra uma derrocada trazida pelo prazer. É certo que, como analisa Christopher Hitchens em um prefácio à edição de 2010 de Admirável Mundo Novo, o mundo de Orwell é definido e moldado pela escassez material enquanto o de Huxley se marca pela abundância, contudo, essa fartura não se traduz exatamente em satisfação. Pelo contrário, o prazer se encontra ao mesmo tempo cerceado e direcionado a seu parceiro mais sombrio. Isso porque no mundo de Huxley a repressão aprisiona sua própria origem: os mecanismos do desejo.

Já nas primeiras páginas, o leitor de Admirável Mundo Novo é informado que este é um mundo livre de sujeira. No original, Huxley opta pela palavra “smut”, algo maior do que a sujeira que pode se acumular nas coisas físicas, mas sim uma substância poluidora, um elemento de corrupção. Algo impuro e obscuro. Algo do qual essa sociedade se livrou quando aboliu a família, a religião e as restrições sexuais. O sexo nesse universo é livre, abundante, frequente e, ao mesmo tempo, distantes do que nós entendemos como erótico. Protocolar, obrigatório e asséptico, esse sexo se opõe quase exatamente ao que Georges Bataille conceitua como erotismo. Bataille, em seu clássico do tema, define o erótico como, essencialmente, um movimento da vida interior de um sujeito, fruto de sua subjetividade particular e diferente da sexualidade, algo que pode existir de forma não-erótica, por exemplo, no mundo animal. A vida sexual instintual é uma coisa, afirma Bataille, algo de ordem primária e, em certa instância, coletiva. O erótico é algo diferente. O erótico é aquilo que move desejos particulares e que possui em sua natureza um elemento de transgressão, porque exige um desejo por parte desse indivíduo, o de transgredir sua unidade. Bataille identifica o movimento erótico como uma vontade contraditória de abandonar a subjetividade de origem, um desejo que assume formas peculiares, mas cujo objetivo final é o abandono da peculiaridade, o fim das fronteiras entre Eu e o Outro. O prazer erótico é mais que o prazer físico do sexo, é o prazer espiritual da transcendência representada pela dissolução do ego, pela fusão com meu objeto de desejo. Dessa maneira, Bataille argumenta que embora a sexualidade aproxime-se do comportamento animal instintual, o erótico se trata de um movimento da vida interior do sujeito e, portanto, requer ao mesmo tempo um arcabouço cultural e o desejo de abandono desse eu estruturado e desejante. Em termos freudianos, o erótico de Bataille é a busca por um prazer que nasce justamente da dissolução do ego em um objeto de desejo.

Carole Seborovski, ‘Memory: Luncheon On The Grass’ (1960)

Se tomarmos essa definição do erótico e voltarmos para Admirável Mundo Novo fica claro porque, embora abundante e fácil, o sexo do livro pareça tão pouco desejável a nós e também porque um homem como Bernard Marx, o protagonista, se ressinta de sua disponibilidade. Marx, frustrado pelo alcance de sensações que sua sociedade lhe permite, desejaria esperar pelo sexo, alimentar um desejo não recompensado, movimentar as estruturas do erótico. Para os outros habitantes desse universo, por mais “pneumático”[1] que seja o sexo, o conceito de erótico não pode sequer anunciar a si próprio, porque essas pessoas não possuem uma vida interior a ser movimentada e o lado perigoso desse desejo — a dissolução do Eu — perde sua aura obscura uma vez que qualquer estruturação egóica foi de antemão aniquilada. Resta o prazer físico e mecânico do sexo, mas ausenta-se o prazer transcendental do erotismo como definido por Bataille.

Esse raciocínio pode ser levado para outras áreas da sociedade imaginada por Huxley, além do sexo. Para quase toda atividade que nós humanos do século 21 consideramos prazerosa é possível traçar a oposição e a conexão entre simples estímulo físico e um refinamento cultural, que estimula e revela nossas identidades particulares e mundos interiores. A moda, a gastronomia e a música são prazeres sensoriais ampliados e refinados ao se tornarem prazeres da subjetividade e que ao se apresentarem em versões catárticas (por exemplo, um show de rock) permitem exatamente a fusão de uma individualidade no Outro que é a base do desejo erótico de Bataille.

Em Além do Princípio do Prazer Freud investiga movimentos de afastamento e desaparição como um processo de formação do ego. Sua reflexão acerca de um impulso que se oponha ao princípio do prazer parte da observação de um bebê que atira longe seus brinquedos para depois reencontrá-los. Nesse jogo, o bebê conquista duas coisas: primeiramente ele reencena o desaparecimento diário da mãe, que sai para trabalhar, elaborando assim esse processo de rompimento e separação entre eles; depois, ele ressignifica o desprazer da ausência dos objetos, uma vez que o prazer de os reencontrar é muito maior que o de sua presença constante.

Acontece que, em Admirável Mundo Novo, não existem mães — seres humanos são criados em laboratório — ou o contraste que permita a intensificação do prazer. É um conhecimento quase instintivo sobre a elevação do prazer antecipando-o com uma privação, sobre como raridade de uma sensação ou de um objeto lhes confere um valor elevado em nossa cultura. Sendo assim, ao eliminar qualquer restrição às sensações físicas supostamente prazerosas, o que o universo postulado por Huxley conquista não é a dominação das pessoas pelo seu prazer, mas por uma ilusão de prazer que no fundo advém a apenas de um cerceamento das possibilidades do desejo e uma proibição de constituição do Eu. Esses personagens têm acesso irrestrito ao sexo em seu sentido animal, à música e aos filmes que estimulam um aparato dos sentidos, mas lhes é negado o prazer mais intenso e complexo do erotismo.

Ao focar sua crítica no autoritarismo e na hipervigilância Orwell imagina uma distopia que poderia se dar em ambos os lados do espectro político (o século XX é inclusive a prova de que autoritarismo transcende separações entre direita e esquerda), mas os problemas apontados por Huxley são muito mais particulares ao capitalismo, o que torna sua crítica mais específica e de certa forma original. Afinal, muitos críticos, Orwell entre eles, questionam que lugar teria a subjetividade e a individualidade dentro dos regimes comunistas como foram formulados, mas esse mesmo problema raramente é apontado no capitalismo, mesmo por seus detratores. A livre inciativa e o incentivo ao consumo trazem outros problemas, mas tendem a parecer terreno fértil para a expressão individual. Huxley, contudo, identifica no consumo desenfreado uma proibição prática à sacralização de objetos o que, afinal, minimiza mecanismos de identidade e memória. Nós acumulamos lembranças e histórias em objetos de valor sentimental. A eles, é permitido ficar velho, feio ou quebrado, transformações proibidas entre as pessoas. Em uma sociedade que determina que roupas nunca devem ser remendadas, mas substituídas, a possibilidade da moda como expressão da individualidade e dos objetos como reflexo de uma subjetividade e de uma história pessoal se esvai.

O que parece ser o centro da distopia de Huxley é um olhar para além da crítica mais fácil e imediata ao capitalismo. Embora este se venda como um sistema do prazer e do excesso e seus detratores imediatamente vejam nessas características os elementos distópicos, o escritor considera que esse prazer precisa ser condicionado e amornado. Vendido em sua aparência, mas nunca real. Não basta um capitalismo que ofereça a todos a promessa de felicidade, para que se alcance a estabilidade, valor primordial do universo de Admirável Mundo Novo, é preciso que a felicidade universal seja de fato alcançada, mas em uma versão que apresenta muito poucas semelhanças com o que nós consideraríamos uma felicidade real. E isso porque o verdadeiro prazer é sempre um movimento do ego, da vida interior e da subjetividade que ao mesmo tempo separam os indivíduos e trazem consigo poderosas pulsões de aniquilamento, perigosas e subversivas.

Essa ideia é levantada por Huxley de forma mais clara em seus ensaios sobre drogas psicodélicas. Em As Portas da Percepção e Céu e Inferno o escritor aponta que para a verdadeira estabilidade social é necessária uma droga de controle e escape que possua menos efeitos colaterais do que o álcool e explora de início a ideia da mescalina, substância usada especialmente por nativos americanos do sudoeste dos Estados Unidos e sob a influência da qual ele escreve esses textos. Contudo, ele pondera, a experiência do peyote leva o usuário a estar muito próximo da transcendência e da sensação de possuir um conhecimento extraterreno, de escapar de fato da esfera do material.

Ele opõe a necessidade de escape da realidade pálida, que todo humano possui, e à qual a psicodelia responde, aos perigos de ir longe demais nessa fuga. Escapar de uma existência entediante e insuficiente, sim, mas nunca o suficiente para realmente almejar uma outra vida. Como resposta a essas contradições, entra em cena o Soma, droga fundamental do universo de Admirável Mundo Novo.

É curioso que talvez um dos elementos mais clarividentes do romance seja justamente esse uso de drogas em quantidades terapêuticas. Nos últimos anos a ideia de microdosagem se tornou tendência e o CBD (substância extraída da maconha que oferece relaxamento, mas não altera a consciência) o Santo Graal da indústria de bem-estar, sendo oferecido na forma de cremes, tinturas e chás, que arrefecem o estresse da vida cotidiana, mas não carregam o usuário para nenhuma outra realidade sensorial. O Soma do romance pode ser usado para “férias” delirantes, mas isso constitui uma exceção, seu uso mais corrente é em porções de meio grama, o suficiente para afastar a tristeza e a decepção, sentimentos absolutamente intoleráveis. Nesse sentido, o Soma de Huxley talvez seja mais Prozac do que peyote.

Em seu prefácio, Hitchens chama Huxley de um amontoado de contradições, mas não tenta resolve-las ou afastá-las e sim considera que as questões levantas por ele se tornam mais ricas por isso. A atitude do autor em relação as drogas é um exemplo dessas múltiplas facetas: pessoalmente um entusiasta da experiência transcendente proporcionada pelos psicodélicos, Huxley considera os extremos dessa experiência incompatíveis com uma droga ideal. De forma mais intensa as contradições de Huxley se mostram em seu simultâneo desprezo e apego às armadilhas do mundo desenvolvido.

O quão estéril é a paisagem interior desses personagens fica claro para o leitor, e em certa medida até para eles mesmos, quando entra em cena o personagem do Selvagem. Filho de uma mulher civilizada que se perdeu em um passeio, John é criado entre os índios do Novo México e alfabetizado com uma antiga edição das obras completas de Shakespeare, o que lhe confere um mundo feito apenas do sublime e do transcendente, desprovido do vocabulário para o ordinário. Ele é tão incapaz de imaginar o sexo casual quanto Lenina de entender de que se trata um grande amor. Huxley, consciente ou inconscientemente — difícil dizer –, nos mostra assim as desvantagens da existência idealizada por ele.

Em certo momento, Lenina, a principal personagem feminina do romance, tenta transar com John após compreender que eles se sentem atraídos um pelo outro. Contudo, ele rejeita seus avanços com gritos de “puta” e se lança imediatamente em uma sessão de autoflagelo e culpa cristã em sua pior faceta. Até aqui o leitor se sente repelido pela pobreza erótica e espiritual dos habitantes do mundo civilizado, mas a relação que John tem com o sexo nos lembra que o mundo dos tabus e da moral religiosa tampouco oferece uma experiência frutífera, especialmente para as mulheres. E embora, como Bataille e Freud, nós possamos considerar que algum grau de privação é necessário para um prazer real e que o preço a se pagar por uma vida interior rica é o desconforto em algum grau, a automutilação de John é tão excessiva que o leitor se vê, súbita e incomodamente, alinhado aos personagens do romance que lhe considerariam, em síntese, primitivo.

Outro ponto de ambivalência e contradições é o lugar da morte no mundo civilizado de Huxley e entre os nativos americanos. É claro que nessa distopia em que o maior pecado é justamente a constituição egóica a morte é naturalizada, tanto porque seus habitantes não possuem uma individualidade a qual se apegarem quanto porque os laços afetivos foram eliminados, contudo, não existe algo de positivo na possibilidade de se encarar com naturalidade algo que acontece a todos os seres humanos? Aqui também oposição estabelecida por Huxley parece estranha e artificial: os civilizados naturalizam a morte enquanto John a encara como uma grande tragédia. Contudo, é apenas em nossa sociedade ocidental que o medo da morte se opõe com força devastadora, as comunidades tradicionais tendem a compreende-la muito mais como a continuidade de um ciclo. É a separação entre homem e natureza que introduz o pavor da morte como finitude, mas Huxley parece desconsiderar essa relação.

Me parece estranho que essa sociedade imaginária tão obcecada com juventude e onipotência, mais um ponto de incrível semelhança com a nossa, aceite tão facilmente esse último e maior marco da precariedade humana. Isso porque talvez o maior ponto de distanciamento entre a distopia de Huxley e nosso mundo real seja que nessa civilização imaginária uma vez que a juventude em sua plenitude não pode mais ser esticada, a velhice é eliminada por uma morte imediata. Por outro lado, nós investimos no que talvez seja uma ilusão maior: a ideia de que a velhice pode ser prolongada indefinidamente, sua eternidade um símbolo da vitória final do homem sobre uma natureza incontrolável.

Entretanto, ainda que nossa prática seja oposta àquela imaginada pelo romance, Huxley acerta em um nervo fundamental ao diagnosticar que uma sociedade profundamente estável não pode aceitar o medo da morte, uma verdade que os últimos meses revelaram com ferocidade. À semelhança do descrito em Admirável Mundo Novo, nossa civilização eliminou de vista quase todas as doenças infecciosas e cada vez mais subjuga, no discurso público, as poucas enfermidades letais que ainda existem a escolhas pessoais. Vivemos em um mundo em que existem vacinas e antibióticos para todos os germes existentes e o câncer não é mais um problema genético, e sim uma consequência do tabagismo, da poluição do ar, dos agrotóxicos na comida, prova de que a vitória do homem sobre a natureza é total e completa. Mas se isso é verdade então nosso medo da morte ultrapassa as fronteiras da aniquilação individual e reverbera porque expõe a falha crucial desse mundo: a vida humana segue frágil e precária, a morte permanece sendo uma tragédia.

Não à toa, no mundo criado por Huxley a humanidade emerge na forma de Shakespeare e suas tragédias: a tragédia, desde sua forma clássica, é a arte da vulnerabilidade e da contingência, do ser humano à mercê de forças maiores e mais poderosas que ele, sejam essas os deuses gregos ou seus próprios impulsos. Freud, ao buscar um modelo com o qual expressar a estrutura psíquica primordial acessou justamente essa consciência: é através do Édipo grego que ele compreende a subjetividade humana. A formação do Eu é um defeito trágico, uma ferida por definição, uma incompletude.

Ser um ser humano é, segundo Freud e segundo as tragédias, uma incompletude. O medo da morte advém do fato de que o tempo nunca é suficiente, o mundo nunca é suficiente, algo sempre falta porque a falta é nossa condição de existência. Nesse sentido, Bataille é talvez mais otimista ao postular que essa incompletude estrutural nos move em direção ao prazer, a uma fusão de Eus que é construtiva e a base da transgressão em que consiste o prazer erótico. Huxley, por sua vez, mantém o sexo enquanto mecânica, mas retira as mães, afasta a morte e, supostamente, cura a ferida ao eliminá-la: nada falta a esses personagens porque seus Eus não se constituem e eles não temem a morte porque foram privados do desejo eterno de mais.

Em Admirável Mundo Novo, um dos principais mantras hipnopédicos (platitudes repetidas durante o sono de crianças para condicioná-la) é que civilização é esterilização. Em um ano em que milhares de pessoas desinfetaram religiosamente caixas de leite, tal ditado soa ao mesmo tempo irônico e pungente, mas o que Huxley no fim quer dizer é que a esterilização vai além da limpeza, além de vírus e bactérias e além até mesmo da morte. Para que exista a civilização total é preciso esterilizar o homem, tudo que nele é “smut”, sujo, bagunçado, corrompido, precário. Tudo que Bataille identifica como transgressor e erótico. Tudo que é prazeroso.

Referências

HUXLEY, Aldous, Brave New World, Harper Perennial, Londres, 2010

BATAILLE, Georges, Eroticism, Penguin Modern Classics, Londres, 2001

FREUD, Sigmund, Obras Completas Volume 14, Companhia das Letras, São Paulo, 2010

[1] Na sociedade de Admirável Mundo Novo, pneumático é o adjetivo adotado para elogiar mulheres voluptuosas e tudo aquilo que desperta o desejo.

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