Clarice Lispector e o Devir de Heráclito

Juliana de Albuquerque
Revista Pasmas
Published in
5 min readJun 19, 2020

A escritora brasileira transforma o fogo de Heráclito em material literário.

por Celina Alcantara Brod*

Como não trair Clarice ao escrever sobre a escrita de Clarice? Essa pergunta esconde, junto com certo tom de desculpas, um pedido de permissão. Isto porque a linguagem de Clarice é voo sem pouso, sem pausa e sem destino. É tarefa inatingível querer definir a melodia que habita as palavras da escrita inimitável de Clarice. Nos seus contos não são os fatos que bolam a trama, mas o sentir e o pensar que desafiam os próprios fatos. Suas frases, que reconfiguram sentidos com uma combinação inusitada de palavras, conseguem deter a linearidade do tempo para externar uma realidade que não se esgota, tampouco se argumenta, apenas vive-se. “Não se preocupe em entender, viver ultrapassa todo o entendimento”, nos aconselha Clarice.

Diante de tanta arte, como ser fiel a singularidade de sua escrita? É provável que ela mesma dispensasse qualquer ideia de fidelidade. Avessa aos rótulos e seus efeitos estreitos, creio que Clarice não se oporia à esta minha digressão criativa. Agarro-me a isto como única possibilidade de não cometer qualquer prejuízo a sua originalidade. Só assim é possível continuar nesta tentativa de exprimir seus poderes impalpáveis. Que isto sirva em minha defesa.

A escritora Clarice Lispector

Os apaixonados por Clarice Lispector sabem que para adentrar em seu mundo alguns requisitos requintados são necessários. Para ler Clarice, não apenas lê-la, mas sentir sua escrita, exige-se uma relação de sinceridade destemida. Falo de uma vontade de coragem de vida. Coragem, neste sentido que trago aqui, nada tem a ver com superação ou conquista, estou falando de escancarar o olhar para dentro sem esperar qualquer afago. Sua escrita não está preocupada em adoçar o mundo ou decorar os nossos pequenos infernos. Clarice mesmo admitiu que não fez quaisquer concessões.

Seu universo é fluído demais para ater-se a explicações confortantes e sentidos perfeitos. Perfeição é sempre coisa de quem espera algo. Clarice nada esperava, exceto pela sua próxima morte seguida de um renascimento. Hiato e esvaziamento, foi assim que ela, em uma entrevista concedida em 1977, denominou o momento entre o final e o início de uma nova escrita. Uma percepção já registrada em Joana, a personagem de seu livro inaugural Perto do Coração Selvagem: “continuo sempre me inaugurando, abrindo e fechando círculos de vida, jogando-os de lado, murchos cheios de passado”. Atrever-se a entrar em contato com Clarice é ter a coragem e a resiliência de permanecer sem respostas, na verdade, é ter o movimento como permanente resposta. É não saber nada, mas conseguir entender tudo. Segundo ela, compreender suas obras não é uma questão de inteligência, “mas de saber sentir, entrar em contato”.

Clarice nos entrega uma escrita cuja pretensão é esvaziar-se de pretensões. Ela desnuda o leitor ao desnudar-se, expondo-o ao movimento em ondas da vida interna, em que sentimento e pensamento ensaiam sentidos para o mundo. Sempre um ensaio. A vida interna é um palco do inacabado, em que o protagonista do espetáculo é um ser despido em seu próprio confessionário, um sujeito sempre à beira de tornar-se, que jamais se realiza e por isso mesmo já é. Sua escrita produz sensações, imagens e tons carregados de atávicas revelações, as vezes são frases curtas e simples que geram cascatas de catarses sobrepostas.

Clarice não disfarça, nem alivia aquilo que intimamente já sabemos: o nosso sentir e os nossos pensamentos se impõem sem que haja uma escolha. Esse nosso “eu” é fluído, dinâmico e inconstante. Então percebemos que somos como as personagens de Clarice, experianciadores de nós mesmos. Ela possui o poder de renovar qualquer hábito e fato já envelhecido, devolvendo-nos o olhar de recém-nascidos: o olhar do espanto, em que há uma estranheza pairando sob cada próximo instante e encontro, seja com o mundo de dentro ou o de fora. Com ela aprendemos a viver com o eterno estranhamento.

Feita minha defesa, peço licença para ousar um tanto mais e propor uma pergunta audaz: Qual é a filosofia que nasce de Clarice? Seria traição querer que ela satisfaça algum sistema fechado, doutrina ou resultado. Me atrevo ao máximo aproximar Clarice de um pensamento, uma certa paisagem filosófica que seja tão veloz, tão instável quanto sua escrita escorregadia. Portanto, ofereço aqui um tímido veredito: a filosofia que nasce de Clarice é uma literatura do pensamento de Heráclito de Éfeso.

Se podemos dizer alguma coisa, dessa escritora brasileira de raízes ucranianas, é que ela despretensiosamente tornou o fogo de Heráclito material literário. Para esse filósofo pré-socrático, o movimento e a constante transformação constituem o princípio que orienta o todo, são as forças originárias de tudo que se segue. É a incessante mutabilidade que governa e atua ininterruptamente sob nossos corpos e realidade.

Mas, por que o fogo seria o elemento capaz de explicar o princípio que rege a vida? Porque o fogo simboliza o dinamismo nunca ausente: uma combustão que altera o estado das coisas. O fogo heraclitiano é uma metáfora do real. Se há algo de permanente no mundo, para Heráclito, esse algo é a mudança. É neste sentido que o pré-socrático afirmou que “não é possível entrar duas vezes no mesmo rio”, nem o rio, nem nós permanecemos os mesmos.

Heráclito em detalhe da obra “A Escola de Atenas” de Raffaello Sanzio da Urbino.

Para Heráclito, o real se dá no confronto dos contrários, no embate entre opostos, “da luta dos contrários nasce a mais bela harmonia”. Sofrimento e alegria, dor e prazer, angústia e alívio, frio e calor, a vida consiste e efetua-se em tal embate. Não há vida com o aniquilamento dos contrários. Assim, Heráclito produz uma filosofia da imanência; Clarice uma escrita imanente.

A realidade, tanto para o filósofo como para a escritora, são instantes se sobrepondo sem que um seja igual ao outro, iguais apenas na inevitável transformação e imanência. Clarice Lispector, mais do que qualquer outra escritora, consegue com as palavras — sua matéria prima singela- transcrever a impossibilidade da permanência. Ela vai ainda mais longe: transcreve o sentir e o pensar mais íntimo dentro dessa incontestável realidade dinâmica. Nada nela conclui e termina feito um ponto final. Não à toa suas frases são repletas de reticências. Por isso a escrita de Clarice nada determina, ela escoa, consome e é consumida, como fogo que queima. O mundo de Lispector é devir constante.

Para finalizar esse encontro entre Clarice e Heráclito, quero explorar mais uma aproximação. O filósofo de Éfeso era conhecido como o “Obscuro”, Clarice era conhecida como “Enigmática”, no entanto, discordo fortemente de tais predicados. Não há nada de abstrato, obscuro ou enigmático no que ambos dizem, como afirmou a própria Clarice, são pensamentos que apenas exibem “o figurativo de uma realidade mais delicada”.

*Celina Alcantara Brod é mestre e doutoranda em Filosofia Política pelo Curso de Pós-Graduação da Universidade Federal de Pelotas (UFPel).

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