Como ter sua voz ouvida?

Heloisa Pait
Revista Pasmas
Published in
5 min readJun 21, 2020

13 dicas de uma professora.

por Heloisa Pait*

Uma aluna me perguntou como se tornar uma intelectual negra. E explicou que muitas vezes dar a própria opinião numa arena pública é visto como uma espécie de afronta, de quebra de algum código que ela não assimila bem. Em conversas posteriores, concordamos que não basta entrar na faculdade, ir lendo os textos e formando opiniões: é preciso um esforço adicional para se colocar enquanto dona de sua própria voz. Apesar de honrada com a pergunta, sei que posso apenas dar recomendações gerais, a partir de meus estudos, reflexões e experiência, para quem busca encontrar a própria voz num ambiente onde ela é reiteradamente silenciada. Aqui vão minhas dicas:

Alunos da Unesp em aula prática.
  1. Prepare seus argumentos. Só com muita leitura e muita pesquisa a gente adquire confiança para fazer uma apresentação boa e defender com clareza as próprias teses, ou mesmo elaborar perguntas boas numa aula. Nada como um bom argumento para sentirmos que o que dizemos tem valor. Então a base de nossa participação é o trabalho, o estudo, a dedicação.
  2. Participe de grupos acolhedores. Comece em pequenos grupos amistosos a treinar a fala, a argumentação, a escrita. Nesses grupos de apoio, ouse, abra-se, escute críticas, reformule seus argumentos. Apoie quem talvez também se sinta inseguro, com elogios apropriados e críticas construtivas.
  3. Examine sua experiência. Em grupos maiores onde pode haver cerceamento a sua fala, examine com distanciamento as interações. Há sim preconceitos a certos grupos e há também ambientes pouco afeitos ao debate em geral, independentemente de quem fala, e é preciso observar e compreender o fato social em questão. Depois dos eventos, seja uma aula, um debate, uma crítica escrita, converse com amigos, colegas, mentores, para trocar experiências e ganhar perspectiva. Estude, examine outras experiências, lembre que não é apenas você que vivenciou esse cerceamento, hoje ou através da história.
  4. Mantenha o diálogo aberto. Mantenha abertura ao diálogo, pois mesmo num ambiente inóspito podem surgir críticas e aprendizados valiosos. É difícil fazer isso se sua voz é silenciada, mas abrir mão completamente das interações com o grupo maior também tem desvantagens. Ao mesmo tempo, busque construir espaços alternativos mais acolhedores e produtivos, pois insistir em terrenos muito áridos também não vale a pena. Esse é um dilema real e cabe a você, a cada passo, fazer sua escolha sobre o que priorizar.
  5. Alargue seus horizontes. Muitas vezes, ao ter a voz silenciada nosso instinto é nos recolhermos. Mas considere também se abrir a um público maior, seja através dos meios de comunicação, lançando suas idéias em um blog ou publicação, seja aprendendo uma língua estrangeira, para alargar de verdade seu campo de atuação. Pois o que é visto como estigma num ambiente provinciano pode significar status num ambiente mais cosmopolita. Então, com calma, veja se esse cerceamento já não é um sinal para você dar vôos mais altos.
  6. Reconheça com serenidade suas raízes. Não tente ser outra coisa porque os outros lhe dizem para ser, pois no fundo essas pessoas não querem que você seja nem você nem essa outra coisa imaginária. E não tente fazer com que gostem de você, pois quem gosta de você pessoalmente e respeita seu trabalho vai fazê-lo pelo que você é e por seu mérito. Grandes contribuições nas artes e na ciência surgiram exatamente quando pessoas corajosas souberam olhar para a sua condição e tirar dela lições valiosas.
  7. Contribua para a inclusão de outras vozes. Reconheça os outros também, com suas idiossincrasias e pontos de vista. Não rejeite pontos de vista só por preconceitos adquiridos, ou seja, que nem seus são; rejeite apenas posições que lhe são inadmissíveis no plano ético, o que é outra coisa. Muitas vezes num debate o apoio pode vir de um lugar insuspeito; esteja também atenta a outras vozes silenciadas. Em geral, ambientes plurais são menos preconceituosos, então tudo o que você puder fazer para tornar o seu ambiente mais amigável a outras pessoas que tenham vozes silenciadas vai tornar mais fácil você se colocar também.
  8. Insira-se numa rede ampla. Busque conectar sua experiência à de outras pessoas que o precederam e com quem você se identifica, lendo suas biografias, vendo filmes que contam essa história, ou estudando suas vidas para a monografia ou trabalhos de faculdade. É importante criar laços com as pessoas do passado, simbolicamente, para nos sentirmos parte de um todo maior, e do presente também. Além disso, os laços também são importante para a reflexão coletiva e a atuação pública, seja internos ao seu grupo ou com pessoas de outras origens e condições.
  9. Esteja atenta a suas emoções. É bom ter em mente que muitas das sensações que você tem em ambientes inóspitos — insegurança, exclusão, inadequação — são projeções de gente despreparada intelectualmente e sem coragem para lidar com isso. Busque identificar suas emoções e veja se são suas mesmo. A dúvida do intelectual, por exemplo, é algo positivo, é o motor de seu pensamento, é o que fará você se aprimorar como estudiosa. Abrace-a. Agora, se sua sensação for de constrangimento e você nem souber de onde vem, respire fundo e fale para si: essa insegurança não é minha.
  10. Prepare-se para o longo prazo. Você não vai ganhar todas as batalhas, pois essa guerra é realmente dura. Mas também não vai perder todas elas, pois a inclusão social avançou enormemente desde o Iluminismo e há espaço para novas conquistas. Inspire-se na história, seja no Brasil ou em outros países, da conquista de direitos, seja de mulheres, negros, homossexuais e outros grupos. A busca da inclusão social é longa e seus obstáculos vão mudando conforme o tempo. Prepare-se para ela com determinação, aprendendo a cada passo.
  11. Busque transformar estruturas. Nunca demonize outro grupo humano, nem como cidadão nem como pesquisador. Preconceitos e cerceamentos são decisões de indivíduos, alicerçados por estruturas sociais. Devemos entender e transformar estas estruturas e buscar convencer ou responsabilizar os indivíduos. Já culpar grupos por esse cerceamento já foi feito na história e as tragédias que decorreram são manchas na humanidade. Não abra mão de tentar entender os processos sociais nem abrace explicações simplistas.
  12. Trace seus objetivos com liberdade. Ao mesmo tempo em que você não deve deixar de ser você mesmo, também não deve se aprisionar em sua condição. Conheço um negro americano que é uma sumidade em poesia chinesa antiga, por exemplo. Há inúmeras mulheres que são grandes cientistas, e talvez nunca tenham estudado questões de gênero. A partir de quem você é, busque o que você quer fazer, que talvez tenha uma relação com sua identidade apenas indireta.
  13. Confiança e otimismo! Trabalhando com afinco, respeitando-se, buscando apoio entre colegas solidários e também arriscando-se em universos mais amplos, aos poucos você vai encontrar sua voz autônoma e confiante, que vai se engajar em diálogos produtivos com outros. A luta sempre vai existir, mas no longo prazo ela vai valer a pena e você vai se tornar parte desta teia de solidariedade e inclusão!

*Heloisa Pait é professora da UNESP.

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Heloisa Pait
Revista Pasmas

Professora de sociologia, pesquisa o papel dos meios de comunicação na construção da esfera pública. Publicou contos em revistas brasileiras e americanas.