De Repente, Pandemia… O que fazer na quarentena?!?

Fabiana Vitta
Revista Pasmas
Published in
8 min readApr 20, 2020

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Como a Terapia Ocupacional explica nossa angústia com a falta repentina de nossas atividades regulares. E como ela pode nos ajudar a nos organizarmos nos meses de confinamento.

Março e a pandemia!!!

Inicio me desculpando pelo uso de tantos parênteses para alterar o tempo da maioria dos verbos, mas no decorrer da leitura, vocês entenderão o porquê!!!! Então, vamos ao texto…

Desenho de Natália Vitta

Sou (ou era?) uma mulher ocupada! Mãe de duas mocinhas (18 e 14 anos), professora e pesquisadora na Unesp, duas ocupações que toma(va)m boa parte do meu dia! Além disso, me cuido, faço atividade física que, tardiamente, descobri adorar! Corro, faço(zia) academia para fortalecer e manter a saúde do meu corpo, mente e espírito! Fotografo nas horas livres, que não são (eram) muitas! Acordo(va) às 6h e já começo(ava) com tudo! O mesmo acontece(ia) com toda a família. E assim os dias se consome(ia)m e a falta de tempo é(era) a desculpa principal para o que não consegui(a)mos fazer!

De repente, em meados de março, declara-se a pandemia. Um vírus extremamente contagioso, causando quadros de gripe graves — COVID 19, ocupando maciçamente as vagas nos hospitais. É preciso evitar o contágio e, para isso, é decretada a quarentena, com restrição das atividades laborais e sociais — não sair de casa para nada!

O que fazer agora? Nada! Diante da reclamação universal da falta de tempo, de repente, temos tempo de sobra para ficar em casa… sobra de tempo, mas restrição de opções, não dá para fazer o que quiser: não dá para sair de casa, a rotina se modificou, temos que reinventar o cotidiano! Eu, particularmente, tenho muito o que fazer, escrever a tese de livre-docência, orientar pesquisas, ler, atividades que posso fazer em casa! E mais, limpar e organizar armários, fazer uma triagem no monte de papel que tenho no escritório! Já está me dando saudades da desculpa da falta de tempo! Porque é isso, não é falta de tempo, é a multiplicidade de ATIVIDADES possíveis no dia a dia que sobrepõe uma a outra! Ou seja, quase um mês em casa e sequer cheguei perto dessa atividade de organização e limpeza (a rinite ajuda como desculpa, em tempos de COVID)! Estou escolhendo outras ATIVIDADES…

É sobre ATIVIDADE que quero falar. Tenho graduação em TERAPIA OCUPACIONAL (TO), uma profissão pouco conhecida que tem nessa pandemia uma oportunidade única de ser entendida!

Pandemia, atividade e Terapia Ocupacional

O que é TO? Algumas profissões, mais “usadas”, são óbvias em seu objeto de estudo: dentista — dente, cardiologista — coração, dermatologista — pele, nutricionista — alimentação. Ainda que saibamos que essas profissões não trabalham somente com esses objetos, as pessoas sabem defini-las pelo menos de forma básica. A gente conhece o que já usou, quem nunca precisou, tem que imaginar!

Sou responsável por uma disciplina sobre história da TO para os ingressantes da graduação (primeiro semestre do primeiro ano) da UNESP (Campus Marília) e faço essa pergunta: o que é TO? Qual o objeto? Aparece todo tipo de resposta ligada à saúde e ao homem, corretas, mas poderiam também definir o dentista, dermatologista, cardiologista, nutricionista, igualmente. A questão é: que objeto seria unicamente da TO? Essa é uma questão que costuma atormentar quem faz o curso e, até quem já é profissional, quando alguém, interessado, pergunta: o que é TO?

Como o próprio nome diz, a resposta é: OCUPAÇÃO, no sentido do fazer, da ATIVIDADE INTENCIONAL E SIGNIFICATIVA!!!! Esse é o objeto da TO, cuja formação é em tempo integral por no mínimo 4 anos. Estuda o homem biológico (anatomia, fisiologia, neurologia), seus processos de desenvolvimento físico, intelectual, emocional e social e as patologias que o acometem; aspectos da formação da sociedade, políticas sociais; e as diferentes ATIVIDADES, analisam o que as envolve (do biológico, do ambiente, da sociedade) e formas de adaptá-las para possibilitar a melhora da qualidade de vida e a felicidade.

Até início de março, explicar a TO aos ingressantes era um desafio! Tinha que buscar vários exemplos ligados a quadros patológicos — uma pessoa que teve acidente vascular encefálico (vulgarmente conhecido como derrame); um bebê com Síndrome de Down e sua família — e explicar como tais problemas dificultavam a realização de atividades que o indivíduo queria fazer (lazer), precisava fazer (trabalhar, compras para sobrevivência), tinha que fazer obrigatoriamente (higiene, alimentação, vestuário) para se desenvolver e ter qualidade de vida. Tais situações, principalmente no primeiro ano, ou na rua, para um sujeito comum que queria saber a definição de TO, ficavam vagas, tinham que ser imaginadas…

A pandemia do COVID 19 mudou tudo! E não estou pensando em quem está contaminado, mas sim em quem não quer se contaminar e segue as instruções dadas pelas autoridades — isolamento social! Estão restritas as ATIVIDADES (objeto da TO) das pessoas!!!

De repente, a maior queixa da população é não poder realizar ATIVIDADES sociais, econômicas, físicas! E sentem a saúde física, mental, emocional, social afetadas!!!! De repente, a ROTINA (um dos aspectos da atividade que a TO trabalha) mudou e as pessoas percebem como faz falta! Não poder realizar ATIVIDADES mudou o CONTEXTO (outro fator que é foco da TO) de cada um! As pessoas, que vivem reclamando de falta de tempo para arrumar a casa, fazer cursos online, ou ter que usar o tempo para trabalhar, ir à escolar, como num passe de mágica, descobriram que tudo isso mantinha um certo nível de saúde, davam significado à vida! Ou que a falta de tempo e a obrigatoriedade não eram desculpas, mas sim o engajamento em ATIVIDADES sem significado, que não lhe proporcionam prazer, qualidade de vida!

De repente, uma situação social mudou, alterou, atravessou o COTIDIANO (foco da TO) das pessoas, obrigando-as a olhar para cada uma das ATIVIDADES que não podem fazer mais e para aquelas que agora podem! Essa com certeza é uma dificuldade e um problema que pode adoecer muitas pessoas, fisicamente ou emocionalmente, pois as ATIVIDADES que fazemos intencionalmente dão significado à nossa existência, nos mostram que estamos vivos!

Ainda, há que se considerar que a ATIVIDADE HUMANA produz ferramentas, como a tecnologia, que muda a ATIVIDADE do homem, isso num círculo infinito, levando a sociedade a se modificar e se readaptar… e produzir novas ferramentas! Mas tem um custo! Não é tão simples assim mudar a rotina, começar a fazer outras ATIVIDADES, principalmente se elas não têm significado para a gente. É preciso construir intencionalmente essa significação, encontrar um porquê para o FAZER!

Nesse momento específico, muitos TOs estão sendo solicitados a realizar atendimento por vídeo conferência, recentemente permitido pelo Conselho, diante do quadro de pandemia. E por que? Porque famílias com pacientes em casa não sabem como dar continuidade à terapia, mas principalmente, estão perdidos na organização das rotinas, desacostumadas com um contexto no qual a família fica reunida em um espaço limitado. Estão perdidos, e apavorados!

Mas não são só eles. De repente, as pessoas começam a dar conta de que ficar o dia todo em família num espaço limitado exige criatividade, bom senso, educação e, principalmente, ATIVIDADES para se engajar! Quem tem maior poder aquisitivo tem Netflix, internet, TV, “lives” de shows, alimentos para cozinhar (e criar), computador, e nem tudo isso satisfaz, já que satisfação não é só fazer, envolve o processo e o resultado, que pode ser prazeroso ou não!!! De repente, todos esses recursos não são suficientes para aguentar a falta de ATIVIDADE! E olha que estamos falando de pessoas privilegiadas, que têm tudo isso!

Imaginem quem mora em apartamento, com crianças pequenas, adolescentes, que não podem ir para uma área de lazer, quem não tem TV paga, internet, alimentos! Ainda, cada pessoa, dependendo da fase em que se encontra, da sua história de vida, tem necessidades diferentes, engaja-se em ATIVIDADES distintas!

A restrição da ATIVIDADE pode causar um desarranjo enorme nas pessoas e na sociedade! Mas também pode auxiliar no desenvolvimento social, na mudança de postura, na revisão do cotidiano. Precisamos entender que ao realizar ATIVIDADES o homem se constrói, se modifica, aprende e altera sua realidade, seu ambiente, e se adapta. Após uma situação tão drástica como essa causada pela pandemia e consequente quarentena, como as ATIVIDADES, ou falta delas, se manifestam e se manifestarão na sociedade? São mudanças a longo prazo, tão maior quanto maior o período da quarentena!

E agora????

©FABIANAVITTA

Como estou me saindo diante de tudo isso? Comecei a quarentena tentando manter a rotina. Estudando, trabalhando via internet, lendo, organizando a casa. Desde ano passado tenho usado recursos tecnológicos para me comunicar com os alunos, para dinamizar as aulas e, nesse momento, são eles que nos permitem uma reunião semanal. A suspensão das aulas (sem discussão entre todos os membros da comunidade) e uso de recursos tecnológicos para manter o vínculo entre universidade e alunos, mostrou como a sociedade tem dificuldade em adaptar-se às mudanças e usá-las para manter a qualidade de vida. É compreensível frente às diferentes condições de acesso à tecnologia pelos alunos. Como professora e terapeuta ocupacional, coloquei-me em atividade virtual para os que podem e querem, com o objetivo de proporcionar aos ingressantes do curso a manutenção da atividade formativa, o vínculo com a universidade, o prazer em conversar sobre a profissão que escolheram. Nessas reuniões, ex-alunos que estão comigo em Pós-Graduação, colegas, se apresentam, contam suas histórias, respondem dúvidas e, com isso, passamos uma agradável manhã, em ATIVIDADE!!!

Mas nem tudo é flores… Passadas três semanas, já estou com muita saudade das outras atividades, fora de casa, contato social! Para minha completa sorte, estou em casa, com minha família, quintal, dois cães, TV a cabo, internet, computador, netflix, livros e mais… Vou descobrindo conforme o tempo passa outras possibilidades, piano, cozinha, material de artesanato, um mundo possível dentro de minha casa, sem passar necessidade. Sou uma pessoa de muita sorte, privilegiada! Costurei máscaras e aproveitei para consertar roupas e terminar alguns trabalhos em tecido! Corro, cedo em frente à minha casa para manter o isolamento social e, em família, fazemos atividades físicas enviadas pelo instrutor da academia — mantidas usando a tecnologia!!!

Cozinhar não é meu forte, mas minhas filhas estão se divertindo com meu marido e até eu participo. Voltei a tocar piano depois de 30 anos (só um pouquinho, afastando a ansiedade), para ajudar uma das minhas filhas que resolveu reaprender músicas selecionadas! Estamos tentando começar jogos de tabuleiro à noite, revezando com séries da netflix! Para elas, que têm outra “vibe” por conta da idade, também não está fácil! De repente ficaram sem atividade social! Estão tendo que se adaptar, readequar suas atividades fechadas em família! Aos poucos, vamos construindo uma atividade conjunta, social, ainda que restrita a esse espaço. Vamos nos redescobrindo, nos reconhecendo! Afinal, essa quarentena está proporcionando alternativas criativas e felizes!!

Espero, sinceramente, que em algum grau, essa parada auxilie a sociedade a se redescobrir, se reinventar, se superar e, no final, se descobrir melhor, entendendo que as suas ATIVIDADES devem sempre considerar o coletivo, a vida, a paz, o respeito!

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Fabiana Vitta
Revista Pasmas

Mãe, terapeuta ocupacional, educadora, professora da UNESP, pesquisadora na área de educação de bebês. Mais, fotógrafa e corredora por amor - amadora!