Diário da Quarentena

Juliana de Albuquerque
Revista Pasmas
Published in
8 min readApr 24, 2020

A artista visual Lara Ovídio compartilha algumas passagens do seu diário pessoal sobre a passagem dos dias ao longo da quarentena.

por Lara Ovídio*

[Resumo] Durante a quarentena o tempo passa de maneira confusa. As ideias se fragmentam e mudam. Os dias passam rápido mas sem qualquer urgência. Este diário tenta entender o que isso pode querer dizer.

E aí vem o vírus, que não está interessado em nos passar nenhuma mensagem, só está mesmo cuidando da sua vida. (Eliane Brum)

17.03.2020 | dia 3

Os dias se alargaram pela quarentena. Faz alguns meses que adio a escrita. Não por falta do que escrever, mas porque sempre fui essa pessoa de adiamentos. Hoje, depois de um dia quente, o sol se foi. O fim de tarde foi tão suave que pude por alguns segundos esquecer os dramas da pandemia. Adoro a vista da minha janela. Tem uma pequena montanha ao fundo e, perto de mim, uma árvore gigante. Nesses dias de confinamento tenho passado muito tempo aqui. São minhas conexões com o mundo real: a janela, a comida e o sexo. Tenho escrito qualquer coisa nas manhãs. Durante a tarde, tenho adiado planos e planos porque ninguém sabe o que será. Eu também não. Me custa muito seguir qualquer coisa. Todos os planos que se baseiam no mundo como conheci até hoje, me parecem falsos. Enquanto tento me concentrar em qualquer coisa, não param de me chegar mensagens. São milhares de informações que parecem imprescindíveis aos que queiram sobreviver. Só hoje, aprendi quanto tempo pode viver o coronavírus em uma bolsa plástica, como o vírus reage ao calor e à umidade, como isolar um doente em casa, etc, etc. Esse tem sido um ano intenso. Agora vivo uma quarentena como jamais poderia imaginar que aconteceria na minha vida. Aprendi que muito da vida tem a ver com a ideia de viver o que nunca imaginamos que viveríamos. Estamos em março, e muito do que aconteceu nesses 78 dias que vivi em 2020, nunca se apresentou a minha imaginação.

19.03.2020 |dia 05

Decidi aprofundar meu isolamento.

21.03.2020 | dia 6

Existem cigarras na minha vizinhança, mas somente hoje elas passaram a existir para mim. Eu sempre espero pelo outono por causa dos caquis e dos abacates. O outono chegou ontem e ninguém lembrou disso. Eu também não. Já não é possível pensar em outra coisa. O meu dia se passou rapidamente entre artigos sobre o tempo de permanência do vírus em superfícies variadas e produtos de limpeza realmente eficazes para acabar com o invólucro de gordura do vírus. Invólucro é uma palavra ótima que eu quase nunca tinha motivo para falar. Conhecimentos científicos que nunca me interessaram de repente se tornam minha chance de sobrevivência. As urgências se reconfiguram e os tempos também. O melhor desses dias é poder perder-se nas horas.

22.03.2020 | dia 7

Recém me dou conta de que hoje não é ontem. Já não saberia dizer se os dias tem passado rápido ou se se tornaram tão uniformes que me confundo juntando tudo em uma coisa só. Sempre pensei que a rotina fosse a maior responsável pela uniformização dos dias, no entanto, é justo quando minha rotina se desfaz que tudo parece ainda mais igual.

23.03.2020 | dia 8

Novos gestos:

1. Abrir o portão com o pé.

2. Espremer-se contra a parede para não tocar em nada além da própria parede.

3. Abrir portas de maçaneta redonda com o antebraço.

4. Abrir portas de maçaneta de alavanca com o cotovelo.

5. Tossir na dobra do braço.

6. Abrir torneiras com o dorso da mão.

7. Ligar e desligar interruptores com o dedo mindinho.

8. Arrumar o óculos com o ombro.

9. Segurar o cartão de crédito com papel higiênico.

10. Rir de máscara.

Fotos: Lara Ovídio, 2014.

Sem data #1

Estou na janela outra vez. Os dias se acumulam e a janela é onde posso ter acesso ao ar, à luz do dia e ao mundo lá fora. Hoje o dia passou muito rápido. Me perdi inutilmente em redes sociais. Antes de começar a escrever, checo os números. A primeira morte no Brasil aconteceu há apenas dois dias. Hoje, já se somam 18 mortos. O vírus avança rápido. O presidente diz à população que o país não pode parar. O ministro da economia diz que se todas as pessoas ficarem em casa o país vai colapsar. Estou segura que o país vai colapsar e não será por nenhuma dessas razões. O capital também vai colapsar. Pela primeira vez, a terra pode ser laboratório de si mesma, vendo por todos os lados, os benefícios da redução drástica da produção industrial. Tudo que parecia impossível, de repente se fez realidade.

Vi fotos incríveis dos canais de Veneza absolutamente limpos. A terra está de férias. Algumas espécies terão tempo de se reproduzir outras só deixarão de morrer e isso não é pouca coisa. Não vejo como pode ser possível regressar ao mundo em que vivíamos. Os Estados já estão voltando a existir, e, por todos os lados, vemos sinais de que o neoliberalismo será enterrado nesta crise. Tem dias em que o fim do capitalismo me anima tão profundamente que posso esquecer o motivo pelo qual estou confinada. Mas me lembro no momento seguinte, quando o ministro da saúde promete um colapso da saúde pública nos próximos 15 dias. Se a saúde pública já está colapsada, então não consigo sequer imaginar o que será isso que ele promete. O vírus vai depressa, eram 1178 casos confirmados quando comecei a escrever, é muito possível que o número real seja seis vezes maior que esse. A primeira mulher a morrer no Brasil era uma empregada doméstica que se contaminou trabalhando para patrões infectados. Um retrato asqueroso do Brasil de hoje e de sempre. Pelo menos sempre já não serve mais para o tempo futuro.

26.03.2020 | dia 11

Minhas anotações se acumulam sem lógica. Ou se inspiram na mesma falta de lógica com que passam os dias. Minha pilha de escritos cresce. A quarentena lhe agregou 1cm. Como tenho todo tempo do mundo, posso medir coisas sem importância como quanto cresceu minha pilha de escritos. O caderno avança. O sol também. O sol avança para dentro de casa e me convida. Deito no chão. Para fingir qualquer coisa sou capaz de colocar biquíni. O tempo está para fingir e infringir. Os planos de planos se recolheram nas frestas do taco e agora brigam por espaço com as purpurinas. A carta do confinamento é o louco, mas ainda não é possível saber se ele gira em torno do bastão ou se abre caminho e vai em frente. É difícil pensar em qualquer depois. Por isso, eu queria um plano escalafobético, para todos os dias lembrar que o futuro ainda está passível de existir. Quando vejo todas essas pessoas produtivas, penso como deve ser triste não poder se deixar afetar pelos dias. Não tenho tempo de ler quase nada, sin embargo no paro de comprarme libros. Ficarão empilhados, perto da pilha de papéis que cresce. Depois farei tempo para eles. Me perco primeiro nas horas, depois nos dias. Hoje uma amiga me avisou: é quinta-feira. E essa informação já não quer dizer mais nada. Atividades simples podem levar quase uma vida inteira. Consigo passar horas limpando as teclas do computador, as mesmas que não limpei nos últimos 7 anos. Olho a sujeira, imagino sua origem, tudo parece gordurento e eu nunca me dei conta. Varrer a casa, passar o pano, cozinhar minha própria comida, lavar a louça, lavar roupa, varrer a casa, são atividades que se alternam em ciclos, se embaralham. Os dias estão mais mundanos, e assim vou me dando conta que viver a vida nunca foi pouca coisa.

28.03.2020 | dia 13

Você tá com medo? Tou. Eu também. Esse diálogo me permite falar coisas que já não falo. Estar junto agora talvez se trate disso: poder sentir medo em paz. É sexta-feira outra vez. Sinto medo, até então eu sentia férias.

30.03.2020 | dia 15

Nenhuma pressa é capaz de me apressar nesse momento.

Sem data #2

Tenho tempo suficiente para ter ideias que nunca irei concretizar.

01.04.2020 | dia 17

Não sinto vontade de começar nada novo, nem nada de útil, nem nada de nada. Quem eu serei já existe ou está sendo gestada entre o frango rançoso, a eterna lavagem das compras e o banheiro que adio limpar?

05.04.2020 | dia 21

A maioria dos planos de 20 dias atrás se esvaziou de sentido. Gostaria de ver alguns filmes que não conseguia tempo para ver no meu antigo cotidiano. Parece, no entanto, que sou muito cooptável por qualquer cotidiano. Nem vejo filmes, nem desenvolvo nada de novo, nem arrumo a casa. Meus livros continuam sem lugar, como tantas outras coisas. Sinto dor no estômago e não consigo dormir. Esse ano, quando fizer a minha endoscopia anual, ainda estarei com gastrite. O fator inercial da vida é a vida mesma.

06.04.2020 | dia 22

Escrevo ainda que não tenha nada a dizer.

15.04.2020 | dia 31

Enquanto todo mundo tenta se conectar mais e mais, eu tento me desconectar. Cansei das telas. A lista de textos que preciso ler cresce. Textos imperdíveis de autores incríveis brotam em forma de links, links e mais links. Fico ansiosa. As atividades mundanas me consomem. Então, antes mesmo de começar, já sei que sempre estarei atrasada com relação à produção intelectual pandêmica. Em alguma medida, admiro muito essas pessoas que conseguem pensar pese a todo. Mas mantenho certa desconfiança com relação a uma quarentena que permite pensar. Não sou capaz de produzir mais que pensamentos fragmentados. Que no futuro podem servir a construção de um texto, ou não. É mais provável que depois do confinamento esses fragmentos já não sirvam de nada. A quarentena se constitui de uma falta de sentido de urgência: na primeira semana, adiaram os prazos, na segunda, explodiram. A verdade é que não existem prazos, não existem datas, não existem nem mesmo dias da semana. Se foram as segundas e as sextas-feiras e ainda assim, insistimos em tomar cerveja no sábado à noite. Temos, em alguma medida, todo o tempo do mundo para o que quer que seja. Mas não temos. Os conteúdos se multiplicam em uma velocidade tão absurda que uma quarentena sem fim já não dá para nada. Nunca deu. Comecei meu confinamento muito emocionada com a ideia de que o capitalismo seria implodido pelo vírus. Agora, tomo essa ideia como um exercício necessário de imaginação, mas sem o entusiasmo de antes. Sei também que se essa imaginação deixa de existir, perco tudo. Mas a verdade é que temos todo o tempo do mundo, e isso não nos serve de nada, porque nunca conseguimos sair da lógica do excesso. Assim, seguimos neoliberais.

Lara Ovídio é artista visual e professora de fotografia do IFRJ/Campus Belford Roxo.

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