Mães, Jovens e filmografia comentada de Rachel McAdams

Neste ensaio a autora discute o que é ser jovem e envelhecer em um ambiente que preza pela atualização permanente e coloca diferentes gerações para conviver e, às vezes, disputar espaços.

thais k. lancman
Revista Pasmas
19 min readDec 25, 2020

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por Thais Lancman

Nos últimos meses, gastei mais de uma hora por dia — uma parcela das muitas horas diárias desperdiçadas na Internet — buscando a idade com que diferentes mulheres tiveram seu primeiro filho. A paranoia com uma gravidez que sequer está nos planos me leva a buscar e decorar a idade com que Sabrina Sato teve Zoe, Giovanna Battaglia pariu Thalitha, Cindy Crawford, Judy Garland e por aí sigo com todas as mulheres e mães que consigo me lembrar. No meio de um filme, eu faço uma pesquisa rápida. Alternando com o Instagram, também, se alguém que eu sigo posta um aniversário de criança, uma fotografia da gravidez. Quando lembro do nada de alguma atriz, celebridade, e sigo pelas recomendações do Google, traço uma rede de mães e suas proles.

Enquanto subtraio as idades dessas mulheres pela de seus primogênitos, tento conter meus impulsos em ficar nessa pesquisa quase irracional, que de tão repetitiva já chega a algumas respostas que sei de cor, caso de todas aquelas que mencionei no primeiro parágrafo. A ideia, no começo, tinha algo de calcular uma média e saber como me situo nela, mas afirmo isso agora, justificando em retrospectiva, porque a mania começou e ganhou corpo sem que eu racionalizasse. A prova disso é que não fiz anotações, e sei que se meu objetivo fossem dados robustos, o melhor seria utilizar a idade média com que as mulheres se tornam mães e não meia dúzia de famosas. É óbvio, também, que essas informações não influenciam mais o meu corpo que o fato de que, a cada 28 dias, inauguro uma nova cartela de pílula anticoncepcional.

Levou um tempo para entender que, neste levantamento de dados, era fundamental a correlação entre a biografia dessas mulheres e a respectiva idade gestacional. Nunca se tratou de uma média aritimética, mas do fato de encontrar exemplos. Fui percebendo que buscava identificação nesta fase da vida em que me situo com aquelas que considero minimamente interessantes. Conquistas primeiro, filhos depois. Não desejo ser como Sato, Crawford, ou Battaglia em nada, o refinamento do estilo de vida delas, como exposto no Instagram, é tão distante para mim que a tentativa de imitá-las seria ridícula e incompatível com a minha preguiça e, sendo prática, com a falta de um staff para administrar minha casa, minhas compras e, claro, editar minhar fotos antes de postar. Talvez seja isso: não podendo ser como elas em nenhum aspecto, me agarro a este, a idade com que gostaria de engravidar.

Continuando na auto-análise, lembro que a investigação etária é um hábito que adquiri há mais ou menos uma década, desde que comecei a pensar em ser escritora e publicar um livro. Sei de cor quando diversos autores estrearam na literatura. Serve de consolo que Bernardo Kucinski tenha começado tão brilhantemente tarde? Claro que não! Prefiro ficar agarrada aos prodígios precoces, ou nem tão prodígios e nem tão precoces, para aplacar a curiosidade em saber se estou atrasada ou adiantada em algo que, racionalmente, sei que não existem classificações etárias rígidas. É um mecanismo tosco de flagelação, a prova disso é que, em um momento especialmente frágil da minha saúde mental, em 2 de dezembro de 2009, postei na minha conta do Twitter: “astronauta, nessa vida, não dá mais #frustração”. A fantástica comediante Marcia Belsky, em uma de suas músicas, expressa melhor que eu mesma a minha agonia, cantando: “todo mundo devia ter a minha idade, nem mais jovens, nem mais velhos.”

Quando a Internet começou a se popularizar, impulsionada pelos primeiros provedores e seus CDs de instalação, a promessa era de nos abrirmos para o mundo, principalmente conhecendo pessoas. Existia o alerta constante para o momento em que as amizades e namoros virtuais se tornassem realidade: marque encontros em locais públicos e avise um conhecido onde está indo eram dicas de segurança para aquele passo, o qual parecia que todos os internautas — era assim que nos chamávamos na época — iriam dar. Cá estamos, namoros virtuais começaram e acabaram, alguns resultaram em casamentos, filhos, amizades duradouras. Eu frequentei as salas de bate-papo na pré- adolescência, sempre aumentando minha idade em alguns anos e, imagino eu, falando com pessoas da minha idade que faziam o mesmo. Minha última experiência do tipo foi ao receber uma fotografia de um homem australiano de meia-idade, nu. A partir daí, parei com a busca por desconhecidos, me restringi aos contatos corriqueiros no ICQ, e conhecidos de conhecidos (eu e minhas amigas enviávamos todos os nossos contatos umas para as outras, formando assim uma rede segura, não que esta tivesse sido a intenção).

O Twitter me avisa diariamente que estou lá, com o meu perfil ativo e tagarela, desde o fim de 2008, quando inaugurei a minha conta com o verso “feelin’ good, it’s Hanukkah”, da música de uma banda norte-america que sequer existe mais. Desde aquela época, mais ou menos, existe na MTV o programa Catfish, baseado em promover encontros reais entre pessoas que se relacionam virtualmente. A força-motriz da série é que sempre há algo de suspeito no relacionamento entre essas pessoas. Desconfiada, uma delas aciona Nev Schulman e Max Joseph (posteriormente substituído por Ariel Schulman). Os apresentadores se colocam no papel de detetives e conselheiros, esclarecendo fatos e promovendo encontros entre aqueles que são, na maioria das vezes, enganador e enganado.

O sucesso do programa Catfish e, ao mesmo tempo, a garantia de tantas plataformas de relacionamentos na Internet, de aplicativos com o Tinder e o Happn — passando pelos mais tradicionais, como o OkCupid, e chegando aos segmentados, como o J-Date, dedicado a unir casais entre judeus — se dá não pela promessa da sinceridade total em relacionamentos online, mas pelo fato que a mentira é, até certo ponto, controlável e esperada. Eles são um pouco como as novelas e as comédias românticas das últimas décadas, em que não era raro escalarem atores de vinte e poucos anos interpretando colegiais. Rachel McAdams (mãe aos 39), por exemplo, interpretou a mocinha Allie, em Diário de uma paixão, quando tinha 24 anos de idade. Embora a personagem envelheça ao longo da história, ela passa boa parte tentando convencer como uma menina na transição da escola para a faculdade, ao mesmo tempo que descobre o amor e a pressão da alta sociedade. O programa da MTV parece dizer que tudo bem mentir um pouquinho, mas algo sai dos eixos quando a enganação chega a um ponto absurdo, além das mentiras com as quais somos todos familiarizados, não apenas em namoros, mas também em relação a vagas de emprego, ofertas de apartamentos no AirBnb, avaliações de restaurantes. A Internet é o terreno das personas, de garotas de vinte e tantos anos interpretando colegiais, mas não as de quarenta e muitos, pois aí já seria demais.

Isabel Samaras, Dejeuner (after manet / le déjeuner sur l’herbe)

Quanto mais formas temos de nos expor na Internet, mais desenvolvemos nossa imagem como um produto a ser comercializado na moeda dos seguidores, dos comentários, da repercussão ou para ter o conforto no ego proporcionado por meros emojis de mãozinhas batendo palmas, mais nos envolvemos com a fantasia narrativa da persona que criamos de maneira mais ou menos intencional. Muitas vezes como mero eco de outras personas, aquelas que enxergamos como bem-sucedidas nesse acúmulo de plataformas. A contínua afirmação da identidade nas redes sociais, em que cada um de nós se transforma voluntariamente em um irradiador de conteúdo transmídia, alimentando ora o Twitter, ora o Instagram, os feeds e os stories, e por aí vai. Tem um pouco de afirmação de identidade, um tanto de adequação a uma versão de si “likealizável” e muito do apagamento de algumas características. Entre elas, a idade.

Não se trata de ignorar aniversários, pelo contrário, comemorações de datas redondas (o mêsversário de bebês entra nesse critério) se tornaram marcos quase obrigatórios na linha do tempo que corro com os dedos sobre a tela. Mas essas datas são pontos de referência pouco enfáticos em um discurso que preza pela uniformização de palavras, hashtags e piadas, que andam lado a lado com o tipo de roupa, maquiagem e referências imagéticas de uma maneira mais ampla.

Por isso, não é estranho que algo juvenil como a estética fashwave da extrema direita tenha servido para unificar os avatares de quarentões e cinquentões da política, autoridades como a deputada federal Carla Zambelli e o ex-Ministro da Educação Abraham Weintraub. Frases em latim misturadas a imagens destorcidas em tons de rosa e roxo, uma estética de videogame apocalíptica que atravessou gerações, popularizando entre brasileiros a tendência de alguns cantos da Internet. Se, por um lado, a ideia parece uma forçação de barra para ideias medievais ganharem o público jovem das redes e e demarcarem o cercadinho das tropas bolsonaristas online, pro outro, o código transcende o etarismo, rejuvenescendo alguns, tornando um discurso arcaico palatável e com ares de adolescente.

O ambiente sem idade das redes sociais não deixa as pessoas mais jovens, mas deixa a todos sem qualquer idade, como uma pessoa que perdeu a mão nas cirurgias plásticas, nas aplicações de botox e no preenchimento facial. Tudo mais ou menos certo quando são pessoas conversando com pessoas em cantinhos privados, mas nos diálogos travados publicamente, em redes sociais como o Twitter, e que, frequentemente, pautam outras redes e a imprensa, a situação fica esquisita. Em 2016, Viih Tube, então com 15 anos de idade, postou em suas redes um vídeo em que mostrava um jeito peculiar de alimentar seu gato: mastigando a comida e cuspindo na boca dele. A mesma garota já era conhecida de muitos por ter mostrado, também em vídeo, seu material escolar para o ano letivo que se iniciava e, entre as comprinhas, exibia um caderno com “um quadro de Picasso”. O problema é que não se tratava de um dos quadros do pintor cubista, e sim uma imagem inconfundível do Miami-recifente Romero Britto, rei do licenciamento de tudo o quanto é produto. Em ambas as situações, Viih Tube foi execrada por comentaristas de toda e qualqer pauta no Twitter, levando uma ala do jornalismo movida a explicar as movimentações da rede a repercutir o assunto em portais como o G1, na editoria voltada à região em que a garota vivia.

Na dinâmica doida com a qual nos acostumamos, e que naquela época ainda não era chamada pelo termo guarda-chuva de cancelamento, pessoas adultas, formadas, pós-graduadas, donas de si, achincalham as ações infelizes e o desconhecimento de uma menina em pé de igualdade. Por um lado, Viih Tube era então uma webcelebridade — o termo ficou velho enquanto o processo de amadurecimento nunca chegou para ela, condenada a já vir pronta –, lógica que autoriza a cobrança de alguma postura enquanto personalidade pública, por outro, é de assustar que a conjuntura não fomente um comportamento exemplar desses jovens, mas torne a humilhação diante de ações erradas algo tão costumaz quanto prazeroso.

O caso da Viih Tube — que, aliás, continua na Internet, fazendo novelinhas juvenis que ecoam o imaginário adolescente das escolas norte-americanas, ou seja, continua bastante jovem — ilustra o fenômeno recorrente do achatamento das personalidades e, especialmente, das idades nas redes sociais. Para execrar uma menina de quinze anos de idade, é preciso que se desconsidere a (parca) bagagem de vida, o direito de um jovem de fazer besteira, além, é claro, da conveniência de adultizar uma menina que, apesar de jovem e menor de idade, é alvo de desejo. É claro que para isso contribui um imaginário calcado em atrizes como Rachel McAdams, já adulta, interpretando uma colegial. Não é coincidência, portanto, que ela tenha sido massacrada por sua ignorância e falta de noção, sendo uma garota, ou mulher. Somos todos iguais na hora de rebaixar e ofender. No livro O amor dos homens avulsos, Victor Heringer fala da “ditatura silenciosa da infância”, aqueles ambientes em que só se conquista o direito de fala e de compreensão integral dos assuntos conforme se cresce. Aos menores em estatura, cabe o papel de acatar, base da pirâmide que são. Conforme crescem, vão entendendo, até que, quem sabe, possam opinar e, por último, discutir de igual para igual.

Nos ambientes em que circulamos, fisicos e digitais, o achatamento das idades privilegiou que todos fossem jovens, como nos tempos em que perguntar a idade era falta de educação e senhoras escondiam a data de nascimento até que ela fosse grafada no túmulo, com a dita-cuja já no além. Vamos combinar que ninguém tem esse negócio de idade, o que, de certa forma, é o que Marcia Belsky propõe: todo mundo tem a mesma idade que eu. Hoje os números aparecem aqui e ali, mas o discurso é de que todos são tão jovens o quanto conseguem, ou falam daquela maneira repuxada, sem os pés de galinha do “na minha época” ou o bigode chinês do bordão “um dia você vai entender”.

Existe um medo generalizado de parecer como o Steve Buscemi, em sua participação especial no seriado 30 Rock, criado por Tina Fey (50 anos, com uma filha de 14 e outra de 8, faça as contas). Na cena, um meme sobre querer forçadamente parecer jovem, Buscemi, já com uma idade avançada, somada à sua fisionomia particularmente cansada desde sempre, interage com jovens no corredor de uma típica escola pública norte-americana, usando um boné para trás, camiseta, moletom aberto e apoiando um skate nos ombros. Ele pergunta: “How do you do, fellow kids?” e sem que se veja a continuação do diálogo, interpelado por uma adolescente, sabemos que ele fracassa em sua tentativa de parecer jovem.

O meme, não por acaso, é compartilhado muito mais por Buscemis das redes sociais do que efetivamente pelos jovens, como se reafirmassem que são outra coisa, e não uma paródia de jovem. Um bom exemplo é a Folha de S. Paulo, que recentemente utilizou a imagem no Twitter para oferecer aos jovens seu serviço de assinatura de uma newsletter voltada a vestibulandos. A juventude perseguida por adultos, inconformados com o amadurecimento inevitável, é análoga à apologia a roupas e brinquedos sem gênero: sermos todos jovens em uma idealização da juventude que não remete a si mesma para não expor o esforço de alguns em se encaixar. Marcia Belsky canta que não existe idade boa nem ruim, mas todo mundo deveria ter a mesma idade, a dela, porque gente mais nova é má. Vamos ser todos então jovens sem idade. Um pouco como Rachel McAdams no recém-lançado Eurovision, uma comédia em que ela e um igualmente aetário Will Ferrell são cantores finlandeses em busca de fama no concurso internacional de canção que serve e título ao filme. Sua personagem certamente é jovem, mas quão jovem, em termos numéricos ou de fase de vida, é difícil dizer.

Talvez pelo uso contínuo e naturalizado desse mecanismo, foi com susto que essa geração — millennial — recebeu a notícia de que pessoas mais jovens, e que já adentram a vida adulta ou estão às portas dela, não idealizam essa cultura. Até mesmo se surpreenderam quando se deram conta de que são um nicho, e bastante passível de ser ridicularizado. Logo eles, que acharam que, ao terem conquistado certa maturidade e nível de conhecimento, e simultaneamente acreditaram permanecer donos únicos do melting pot da cultura juvenil, se julgavam imunes a críticas e exemplares do padrão a ser alcançado. Surgiram piadas sobre perfil até então tidos como intocável, por exemplo, o do adulto sem dinheiro, viciado em Internet, fã de Harry Potter. Tratar a idade como segredo de Estado virou um costume cafona, mas ventilar que algumas pessoas “passaram da idade” para agirem de determinada forma se tornou igualmente indelicado. “Até aos trinta anos tens a cara que Deus te deu, depois tens a cara que mereces”, diz o cineasta Miguel Gomes em seu filme de estreia, de 2002, que trata justamente dessa pós-juventude entre a negação e a flutuação fora do tempo, parecendo refletir um sentimento geral dos nossos tempos, de que a democratização da juventude é meritocracia.

Ao ridicularizarem essas figuras construídas ao longo de postagens que se desenvolveram por anos em uma forma própria de comunicação, indivíduos de vinte e poucos anos desnudaram uma geração de produtores de conteúdo definida desde 2012, quando compartilharam ad nauseam — por se identificarem ou por supostamente não se identificarem em nada (um sinal de que se identificaram e muito) — os resultados da pesquisa da agência Box 1824 reunidos em um vídeo chamado We all want to be young, que procurava definir os millennials. Em uma colagem de imagens que misturam memes, filmes como Quase famosos e O clube dos cinco e a ex-VJ e fotologger Mari Moon, os jovens do início do século 21, hoje às portas dos trinta ou com um pouco mais, são apresentados como detentores de uma cultura em que tudo é remixado, vivendo, aprendendo e compartilhando de forma não-linear.

O que explicaria o meu comportamento compulsivo, digitando o nome de famosas no Google, seguido de “filhos”, ou “gravidez”, para o pessoal da agência, seria a ansiedade provocada pelo excesso de informação e de observação alheia, dada a explosão da Internet e das redes sociais. E eu me responderia me expressando de maneira histriônica, o que não acontece (desculpa, pessoal da Box 1824!). Fico no silêncio do meu celular, do streaming ligado sem que eu preste atenção. Poderia discutir possíveis erros e acertos do vídeo sobre os millennials, agora que oito anos se passaram e uma nova geração já clama o posto de jovens do momento, mas o maior mérito da análise da Box 1824 seja a frase de encerramento do vídeo, proferida por uma voz masculina de maneira triunfante e como se revelasse um segredo valioso:

— Entender a evolução do mundo é uma busca que pode nos manter jovens para sempre.

Quando senhores e senhoras vão ao parque temático do Harry Potter ou atazanam uma adolescente pelo que ela diz e faz, esses millennials permanecem presos no loop eterno desse vídeo. O que a agência Box 1824 não disse é que entender essa evolução não era um procedimento muito profundo, e sim algo no campo da performance. O desejo de estar a par de todos os acontecimentos, e com papel ativo neles, garantindo por meio do discurso nas redes sociais, foa confirmação de que entendem os processos, e, assim, todos são igualmente jovens.

Ao ridicualizarem esses millennials, sem querer, os mais novos revelam esses mecanismos, e eu acabo me juntando a eles, em partes, porque não gosto de Harry Potter, não me identifico com o tom ufanista — gosto de pensar nos millennials como defensores de um país independente — de enaltecimento dessa geração. Ao mesmo tempo, olho com desprezo para os millenials, as piadas e referências que irremediavelmente entendo, alternando as atualizações com um jogo besta de gatinhos no meu celular, o Neko atsume, uma reedição suavizada dos Tamagotchis dos anos 90, em que os felinos visitam seu quintal, mas não morrem pela falta de cuidados como acontecia com os meus bichinhos virtuais da infância. Mas talvez eles sejam jovens demais para que sua crítica seja mais que uma piada, um meme remixado e de vida útil curta. Acabam soando como uma lista qualquer no Buzzfeed ou um teste proposto pelo site, que garante que se você gosta de milkshakes coloridos e sorvete de iogurte você tem menos de 30 anos. E viva a ditadura silenciosa da infância.

A juventude descolada de um número escarlate que cada um exibe no peito reflete o comportamento de marcas, além de personalidades famosas que, como todos, tentam lucrar na Internet e garantir uma presença online. Discursos fofos de marcas, conversando com clientes como amigos, ou mascotes, figuras infantilizadas que um dia estrelaram campanhas de cerveja — siris com o bumbum de fora, tartarugas fazendo embaixadinhas –, agora prestam seus serviços nas redes sociais. É o caso, por exemplo, do pinguim do Ponto Frio e, um tempo atrás, da Capivara da Prefeitura de Curitiba. As propagandas de bebidas alcoólicas com bichos engraçadinhos, depois de muito debate, foram proibidas, com o entendimento de que se tratava de publicidade voltada às crianças, com um produto de consumo vedado a elas. Já no caso atual, a situação é outra: gosto de ser “pinauta”, não porque o Pinguim subestima a minha inteligência, mas porque a superestima, deixando implícito que embarcou na minha fantasia, a de que, com a força do pensamento e do discurso, somos todos jovens.

Quando eu era pequena, visitava com frequência a casa de uma amiga que, como eu, é filha única. Diferente da minha casa, lá havia a sala de estar, um espaço com televisão e um sofá molenga. Também era lá que ficava o videogame, um Mega Drive. Apesar de frequentar muito aquela casa, devo ter jogado o videogame uma ou duas vezes. O motivo é que ele não pertencia à minha amiga, e sim ao pai dela. Em muitos momentos, passávamos por aquela sala, trajeto obrigatório entre o quarto da menina e a cozinha, com seu depósito infinito de bisnaguinhas com requeijão, e lá estava aquele homem rechonchudo, gritando com a televisão enquanto manipulava o controle. Se estávamos ali quando ele queria jogar, éramos expulsas aos berros, a autoridade paterna se erguia. Ditadura silenciosa da infância. O pai da minha amiga já sabia que somos tão jovens quanto queremos e quando interessa, a mesma lógica que adotamos ao não atualizarmos as fotos de perfil, ou deixarmos ali uma imagem da infância, de um personagem adorado, o que for. Tudo sugere o pacto coletivo da não-jovem.

O pai da minha amiga não era mais ou menos pai de acordo com sua postura mais ou menos autoritária, em oposição à infantilidade do brinquedo próprio e impossível de compartilhar. Assim como na Internet, em que as contradições, de certa forma, são etapas do estabelecimento de uma persona sem idade. Não é como se a Internet fosse povoada por fantasmas, pois somos figuras autênticas, reforçando nossa identidade a cada nova mensagem postada, ainda que nos comunicando por memes, e o desejo geral é de se fazer mais presente, não a invisibilidade fantasmagórica. É uma presença-sobre-presença, mas sempre na juventude homogeneizante e ao mesmo tempo fluida e, paradoxalmente, não dona de si. Autonomia, mas com um adulto por trás, vigiando e punindo, ou sendo nós mesmos tanto os adultos quanto os jovens rebeldes. Vivemos um grande filme adolescente americano, com suas normas, papeis sociais, e aspirações que não escapam àquele universo, e os nossos desvios, nosso poder transformador, também relegado ao pequeno, ou, como o We all want to be young interpreta, os herois comuns, pessoas banais em suas pequenas vitórias. Coinciência ou não, no mesmo ano do vídeo da agência Box 1824, a banda Fun fez um enorme sucesso com a música Tonight we are young, cujo refrão é justamente sobre isso, ser jovem por uma noite, ter algumas horas para tocar fogo no mundo, Cinderella da jovialidade conscientemente adotada.

Em 2015, durante um período de seis semanas fazendo um curso em Berlim, consegui entrar em uma dessas baladas que duram um fim de semana e uma pessoa fica na porta encarregada de selecionar quem pode entrar. Não entendi o critério, apenas que por quinze euros eu pude ter o meu pulso carimbado e meu celular adornado com um adesivo que cobria a câmera fotográfia. Entre meninas japonesas muito descoladas, fetiches sadomasoquistas e outras pessoas que pareciam ter acabado de sair da cama para beber em uma fábrica abandonada, havia um senhor de suspensórios, dançando animado, agitando sua bengala envernizada. Ao longo daquele verão berlinense, encontraria aquele senhor mais duas ou três vezes, sempre elegantemente extravagante e em ambientes jovens, fossem eles baladas ou cafés do Mitte. Gunther Krabbenhöft, de 75 anos, é uma dessas figuras pitorescas que compõem um ambiente cosmopolita, do tipo que você não quer entrevistar para uma matéria, mas fazer um documentário ou um livro-reportagem inteiro. Ele não tentar parecer jovem, pelo contrário, está sempre como que fantasiado da sua idade, com coletes feitos sob medida e chapéus de palha. Um senhor distinto, que transita em ambientes dominados por pessoas bem mais novas, compartilha com elas seus gostos sem parecer estar pedindo autorização para se integrar, beneficiado por uma onda de tolerância e afetos e pela persona agradável que criou. Todo mundo gosta desse vovô do techno, mas ninguém gostaria de encontrar com o avô na balada. Sem nunca ter conversado com ele, como a maioria dos seus 66 mil seguidores no Instagram, suponho, ele é uma espécie de símbolo de uma juventude descolada de números, muito mais uma capacidade de estar sempre integrado a quem chega. Não deixa de ser um pouco como a própria cidade em que vive, há decadas uma ode ao poder transformador do jovem.

Mesmo a rebeldia juvenil é apropriada pelo discurso aetário da juventude por adesão. As ocupações nas reitorias e nas escolas públicas, movimentos marcados pela jovialidade de seus ativistas, espelhadas no Occupy Wall Street e, em menor escala, nas ocupações dos movimentos de moradia, se tornaram agora o sinônimo da terceirização voluntária de contas em redes sociais. Recentemente, com o Black Lives Matter ecoando para o mundo, brasileiros influentes nas redes sociais, cientes de seus privilégios — branquitude, número alto de seguidores — cederam espaço para que alguém conscientize o público dessa celebridade a respeito de sua luta, chamando isso de ocupação. Dar visibilidade, é o que eles falam, e talvez não seja o tipo de coisa cujos resultados se medem imediatamente e, no futuro, vejamos como essa atitude foi positiva. Mas o termo ocupação me sugere algo rebelde, ativista, revolucionário. É espirituoso e enérgico, a cara da revolta juvenil, como um par de tênis All-Star. Porém, aqui, em sua versão comportada, firmada em um acordo entre partes, é um All-Star limpinho, combinado com blazer. Como pode ser ocupação, em termos tão gentis, com um convite feito ao ocupante? A ocupação real é a do não-tão-jovem, tomando para si uma forma de mobilização sem pedir permissão e, de forma inconsciente, domando-a, fingindo que entende o que é uma ocupação, como a evolução do mundo, para se manter jovem para sempre, ou, se isso for muito dificil, pelo menos não-velho, desde que ninguém aparente ser mais jovem.

Um dos meus filmes favoritos é Meninas malvadas, escrito por Tina Fey e estrelado por Rachel McAdams — outro filme de 2004 em que a atriz interpreta uma colegial. Nele, Amy Poehler (primeiro filho aos 37) interpreta a mãe de McAdams, uma mulher cheia de cirurgias plásticas e que rejeita a idade que tem, mais interessada naquela que julga merecer. “Não sou uma mãe normal, sou uma mãe descolada”, ela diz, enquanto tenta se infiltrar na conversa das meninas, oferece drinques e outros absurdos. Penso constantemente nessa cena, quando lembro, além das duas, de uma menininha, a irmã mais nova da belíssima e malvada Regina George, que rebola e faz topless imitando o que assiste na televisão. Aquela cena é, para mim, uma caricatura de todas as personalidades que batem boca umas com as outras no Twitter, que se cancelam e se aplaudem. Meninas fingindo que estão em um clipe de hiphop, adolescentes aparecidas, todas, inclusive eu mesma, que prioriza assistir a esse filme a qualquer outra atividade quando dou a sorte de cruzar com ele zapeando os canais da TV, garantindo nosso direito de ser jovem, nem criança, nem adulta, mas jovem. É importante ser jovem, mas não tão jovem.

Quando eu penso na minha paranoia com idade, e na de Marcia Belsky, bem parecida com a minha, não sei se é o sinal de uma estafa com a zona difusa da juventude por adesão, um cansaço que me faz não querer mais escolher nada, apenas ser (e quem me obriga a estar nessas redes, interagir com essas pessoas, fora meu comportamento compulsivo e irracional?). Se a piada de Belsky fez tanto sucesso, talvez seja porque todos estão, em alguma medida, não falando sobre idades para fingir que estão entre aqueles que podem não se importar com isso, os verdadeiramente jovens. É um pouco como fazer em voz alta planos de gastar a fortuna do prêmio da loteria. Ninguém vai estragar a brincadeira falando o óbvio, a chance mínima de se acertar os seis números, isso sem mencionar todas as elucubrações a respeito do prêmio sem que ninguém tenha apostado. Mas a diferença entre ser jovem e ganhar na loteria é que, um dia, todos nós fomos jovens, e os jovens de hoje nos fazem questionar se aproveitamos o quanto pudemos, se somos alguma caricatura ridícula do passado ou se é uma honra, para os jovens atuais de verdade, estarmos entre eles. Regina George achava sua mãe ridícula. Quando eu busco a idade com que celebridades engravidaram, no final, quero tirar a prova se sou jovem ou se estou andando com a turma errada, falando “How do you do fellow kids” no corredor imaginário Internet. Quem sabe, quando eu conseguir me livrar da matemática obstetrícia, por cansaço ou esgotamento, vou ser como Gunther, vestida com as roupas e as armas da idade que tenho para, devidamente paramentada, adotar métodos mais precisos de renovação da minha carteirinha de jovem: os testes do Buzzfeed que acertam a sua idade com base nas comidas de café da manhã preferidas.

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thais k. lancman
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eu quero uma vida lazer, com muito sucrilhos, kiwi e mate