Uma Associação de Mulheres Indígenas em Meio à Pandemia

Margarida Maia e Mariam Daychoum falam da Associação de Mulheres Indígenas da região de Iarauetê, no Amazonas.

Heloisa Pait
Revista Pasmas
5 min readJun 21, 2020

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De Margarida Maia* e Mariam Daychoum**

São Gabriel da Cachoeira, noroeste do Amazonas, início de abril de 2020. Margarida Maia, mulher do povo tukano, nascida na comunidade de Patos localizada no Rio Papurí e atual residente do distrito de Iarauetê, não consegue voltar para casa.

Mulheres indígenas trabalhando com tucum na Associação das Mulheres Indígenas do Distrito de Iarauetê, 2019. (Foto: Acervo AMIDI)

Por conta da pandemia de Covid-19, as autoridades de São Gabriel da Cachoeira, o município mais indígena do país, optaram por controlar a circulação de pessoas, também com o propósito de evitar que o vírus chegasse às comunidades indígenas localizadas nas cabeceiras dos rios da região do Alto Rio Negro. As lideranças comunitárias em Iarauetê igualmente adotaram procedimentos de controle e a Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (FOIRN) suspendeu a entrada de não indígenas nas terras indígenas da região, onde vivem cerca de vinte e três diferentes povos. O controle, entretanto, não impediu que o vírus se espalhasse. (1)

Uma das autoras (Maia), que atualmente preside a Associação das Mulheres Indígenas do Distrito de Iarauetê — AMIDI, estava em São Gabriel da Cachoeira a serviço da Associação, quando teve notícia da chegada do novo coronavírus e da necessidade de medidas de isolamento social. A AMIDI é o principal meio de representação e geração de renda para mulheres indígenas de treze diferentes povos indígenas que vivem sob a abrangência da Coordenadoria das Organizações Indígenas do Distrito de Iauaretê — COIDI. (2) Enquanto representante das mulheres em Iarauetê, a autora ficou ainda mais preocupada com a ameaça da doença e optou por não retornar à sua casa.

Margarida Maia, do povo tukano, em fala durante o XI Encontro das Mulheres Indígenas do Rio Negro, em São Gabriel da Cachoeira (AM), 2018. (Foto: Acervo AMIDI)

Em São Gabriel da Cachoeira, ela esperava o recebimento de recursos que a AMIDI ganhara junto à Fundação Casa e que serviriam para a execução de um projeto sobre territorialidades e conscientização das mulheres acerca dos processos de invasão das terras indígenas por garimpeiros — uma ameaça constante na região do Alto Rio Negro. O objetivo era dar voz e debater o pensamento das mulheres sobre esse tema, que é normalmente discutido em assembleias realizadas pelas lideranças masculinas, onde raramente as mulheres participam.

A importância da participação feminina em esferas de decisão como a gestão territorial e ambiental das terras indígenas já havia sido objeto de debate no XI Encontro das Mulheres Indígenas do Rio Negro, que ocorreu em São Gabriel da Cachoeira no ano de 2018. Neste encontro também foi debatida a participação feminina no movimento indígena e na vida comunitária, tendo por resultado a redação do Manifesto das Mulheres Indígenas do Rio Negro. (3)

Claudia Maria Camargo Moreira, do povo tariano, durante a oficina de cerâmica que ocorreu na Associação das Mulheres Indígenas do Distrito de Iarauetê, 2019. (Foto: Acervo AMIDI)

Assim, os recursos disponibilizados pela Fundação Casa seriam empregados justamente para dar seguimento a essas demandas. Mas o projeto por ora está suspenso, em que pese a pandemia estar servindo de grande oportunidade para a invasão de terras indígenas, trazendo a reboque o aumento do risco de contaminação dessas populações.

Além da realização de projetos que visem conscientizar as mulheres e dar espaço às demandas femininas na região, a AMIDI ocupa-se da produção de peças artesanais a partir da fibra extraída das folhas da palmeira de tucum. Todavia, um dos objetivos da Associação é, aos poucos, produzir também artefatos de cerâmica, tendo como ponto de partida o já iniciado processo de resgate desse conhecimento junto às anciãs. Tanto o trabalho com o tucum, quanto com a cerâmica, depende do conhecimento de mulheres mais velhas passados às gerações mais novas.

Para os povos indígenas que vivem no Alto Rio Negro, o trabalho de ceramista é exclusivamente feminino. Trata-se de um trabalho que demanda paciência: a produção é demorada e exige muita habilidade da artesã. Além disso, parte da atividade exige movimentar-se pela região, visto que nem toda a matéria-prima necessária para a produção é encontrada em Iarauetê, como é o caso da casca da árvore de caraipé, que é adicionada à argila para dar maior resistência às peças. Em virtude dessa movimentação territorial e porque grande parte das conhecedoras das técnicas de produção de cerâmica mora em localidades diversas, a Associação tem a ambição de levar a confecção de cerâmica para outras comunidades além de Iarauetê. Mas esse também é um projeto que está em suspenso em virtude dos riscos envolvidos na circulação de pessoas durante a pandemia.

As atividades realizadas pela AMIDI integram-se a uma rede dinâmica de circulação da produção e dos conhecimentos femininos relacionados, assim como do debate entre mulheres sobre a vida comunitária. Essas atividades estão paralisadas, enquanto o vírus circula. A consequência mais imediata desta paralisação é da ordem da sobrevivência, visto que a interrupção dessas atividades impacta a renda dessa parcela feminina da população indígena, de modo que a segurança alimentar é a preocupação mais urgente neste momento.

Foi com essa preocupação que as mulheres indígenas que compõem o Departamento de Mulheres da FOIRN realizaram a campanha, ainda em andamento, Rio Negro, Nós Cuidamos!, que visa fornecer ajuda emergencial à população da região, com o objetivo de garantir segurança alimentar, acesso à informação e à saúde. Neste momento, a FOIRN é a principal articuladora das medidas emergenciais para atender às demandas dos povos indígenas da região.

Além disso, a pandemia traz também questões acerca dos impactos futuros que este episódio catastrófico terá sobre a cultura desses povos, visto colocar em risco sobretudo a vida de indivíduos mais velhos. A partir das atividades realizadas pela AMIDI, fica clara a importância dessas pessoas para as comunidades, especialmente por serem as maiores detentoras de conhecimento. Não há como medir a perda humana e cultural neste contexto: junto de anciãos, o vírus leva também o conhecimento e a memória que serviriam às futuras gerações. A pandemia é aqui uma ameaça real de aniquilamento da vida e da cultura. A interrupção da palavra falada é também uma interrupção do futuro.

* Margarida Maia é presidente da Associação das Mulheres Indígenas do Distrito de Iarauetê — AMIDI.

** Mariam Daychoum é doutoranda em Antropologia Social no Museu Nacional, vinculada ao Laboratório de Arte, Ritual e Memória (LARMe). Realiza pesquisa sobre saberes femininos e memória no Alto Rio Negro.

(1) Até o dia 09.06.2020, segundo dados da Secretaria Municipal de Saúde de São Gabriel da Cachoeira, o município contava um total de 2.342 casos confirmados e 27 óbitos. O sistema de saúde do município de 45.564 habitantes está com a capacidade saturada e algumas internações são transferidas para Manaus, onde o sistema de saúde também beira o colapso.

(2) Os povos que vivem na circunscrição da COIDI são: arapaso, barasana, baré, carapanã, desana, hupda, kubeo, miriti tapuia, piratapuia, tariano, tukano, tuyuca e wanano.

(3) O Manifesto das Mulheres Indígenas do Rio Negro está disponível em https://foirn.org.br/wp-content/uploads/2019/05/manifesto-das-mulheres-indigenas-do-rio-negro.pdf Acesso em junho de 2020.

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Heloisa Pait
Revista Pasmas

Professora de sociologia, pesquisa o papel dos meios de comunicação na construção da esfera pública. Publicou contos em revistas brasileiras e americanas.