Mundo minúsculo

thais k. lancman
Revista Pasmas
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4 min readApr 24, 2020

Por Thais K. Lancman*

Klari Reis, Hypochondria, 2013, Petri Dishes, Tee Nuts and Steel Rods. Photo: Cynthia Corbett Gallery.

Renascerão as cidades submersas?
Os homens submersos — — voltarão?

Uma vez, um dos meus melhores amigos me chamou de cínica.

Uma vez, um conhecido me chamou de generosa.

Meu coração não sabe.
Estúpido, ridículo e frágil é meu coração.

Lembro de um Ano-Novo que minhas resoluções foram: beber menos, ter uma rotina espartana.

Estou bebendo menos? Tem dias que sim.

Na primeira semana, eu fiz as unhas.

Só agora descubro
como é triste ignorar certas coisas.

Minha rotina nunca foi tão espartana. Nunca segui tão rigidamente um cardápio semanal, acordo, migro para a pequena cozinha da quitinete, lendo Sebald. Estou há dias lendo Sebald. Tomo café. Sento aqui na minha mesa de trabalho e trabalho. Almoço, volto para a mesa de trabalho, faço exercícios na varanda, trabalho, tomo banho, janto, vejo um filme e um episódio de Community, para pegar no sono. Acordo no meio da madrugada, vejo mais um episódio de Community, para pegar no sono.

(Na solidão de invidíduo
desaprendi a linguagem
com que homens se comunicam.)

Na verdade, minha rotina nunca foi tão espartana. Busco na Internet dados e gráficos e faço suposições esotéricas. Reclamo do presidente e reclamo dos catastróficos de plantão. Rascunho respostas a eles e apago antes de enviar. Penso em fazer um curso online de desenho. Busco filmes completos no Youtube. Faço alguma chamada de vídeo com um amigo mais ou menos próximo e lidamos um com a cara do outro, silêncio e falta de tato da hora de desligar. Tento ler Didi-Huberman, corro os olhos por um PDF e logo estou de volta aos gráficos. Pausa para ver o cidadão carioca cantando seu funk, aquele que começa assim: Bactéria!

*

Ainda é cedo para dizer o que estamos vivendo, no entanto todo mundo está dizendo, o tempo todo.

Eu trabalho de casa há seis anos, no entanto preciso aprender a trabalhar quando todos estão em casa, de quarentena. E me vi lendo de novo as mesmas dicas revolucionárias. Arrume sua cama, tire o pijama, tenha horário. Eu que levei anos para aderir a essas sugestões para aumentar a minha produtividade, e quase o mesmo tempo para me libertar delas. Bactéria! Se eu posso trabalhar de pijama, com a cama desarrumada, ou até mesmo da cama, com o cobertor da cintura para baixo, às duas da manhã, por que não? Nesse momento, 17 de abril de 2020, 11 e 35 da manhã, estou de calça jeans, camiseta, sapatos e um colar para dar uma bossa, a cama está arrumada e estou na minha mesa de trabalho.

Seja produtivo mas você não precisa ser produtivo.

Hoje aguardo uma entrega de máscaras purificantes para o rosto e hidratantes, para o cabelo.

“Descubra seu estilo pessoal”.

Os correios me avisam que tudo vai chegar no domingo.

Como é bom viver em um tempo de autocuidado, em que tanta saliva virtual foi gasta para me convencer que pensar no meu guarda-roupa é um serviço que eu presto à humanidade, é uma metonímia do autoconhecimento.

Dentro de casa sem poder sair eu penso em quanto não sei se as pessoas me veem como espontânea, relaxada, ou qualquer um desses adjetivos que pretende me esclarecer se devo investir mais em camisas de linho ou camisetas de banda.

Estou cética em relação a uma ideia de mudança profunda, que nunca mais seremos os mesmos. Quanto tempo irão durar as máscaras, o álcool gel? Podem esses hábitos mudar quem somos, como nos relacionamos?

Renascerão as cidades submersas?
Os homens submersos — — voltarão?

Vamos mesmo valorizar mais estar ao ar livre, conviver com nossos familiares e amigos. Bactéria! Vamos, mas por quanto tempo? Resoluções para fim de quarentena. Penso em Austerlitz descrevendo maravilhas arquitetônicas com referências que me faltam e mesmo assim fazendo com que eu prometa a mim mesma que vou para a Antuérpia quando o mundo voltar a ser um só. Bactéria! Ou o mundo nunca foi tão um só do que agora, sob a redoma da doença. Então, irei à Bélgica quando o mundo for de novo muitos. Bactéria! Penso em Austerlitz e na sua biografia, na história da Europa, sem saber qual é a metonímia, e na nossa capacidade reduzida de nos enxergarmos quando não transitamos, quando nossa corporeidade é amputada pela impossibilidade de estarmos em diferentes lugares ao longo do dia. Um neoplatonismo absurdo, que nos engana ao nos fazer crer que, sem os estímulos de lá e cá poderemos mergulhar profundo em nós mesmos, mas na verdade deixamos de saber quem somos. Olhando para baixo, para as superfícies ao nosso redor e nos perguntando o que vive ali, o que nós transportamos, que seres de peso desprezível carregamos e como eles entram nas nossas casas, de onde não podemos sair. Observamos o nada, o infinitamente menor, até nos perdermos no horizonte do microscópico, e esperamos extrair algo, esperamos ser algo, o que é impossível quando não estamos em relação a. Ou melhor — Bactéria! — não somos nadas além de máquinas falhas de processamento de gráficos. Estamos o mais distante possível de Austerlitz. Estamos qualquer coisa artificial, sem ser inteligência.

Meu coração não sabe.
Estúpido, ridículo e frágil é meu coração.

Pausa para contemplação de gráficos.

Só agora descubro
como é triste ignorar certas coisas.

Pelo correio chegam quatro rolos de filme ASA 200, coloco um deles na câmera, focalizo o parque do outro lado da rua, mas não disparo.

(Na solidão de invidíduo
desaprendi a linguagem
com que homens se comunicam.)

*Thais K. Lancman é doutoranda em Letras pela Universidade Presbiteriana Mackenzie.

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thais k. lancman
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eu quero uma vida lazer, com muito sucrilhos, kiwi e mate