Nossos Estudos e Eventos Dramáticos: um guia para acompanhar com inteligência a guerra na Ucrânia

Heloisa Pait
Revista Pasmas
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7 min readMar 6, 2022

No meio de informações desencontradas e bizarras polêmicas do Twitter, temperadas pelas certezas dos profetas, como compreender o que está se passando hoje na Ucrânia e nos posicionarmos de modo sensato e autônomo?

Como usar o aprendizado de um curso na compreensão e interpretação de um acontecimento corrente? Nesse texto, que escrevi tendo em mente meus alunos de sociologia da comunicação, sugiro como compreender a invasão russa na Ucrânia em doze passos. Espero que ao final vocês possam participar do debate público sobre a guerra de modo inteligente, autônomo e respeitoso, valorizando o conhecimento acadêmico e ao mesmo tempo estando abertos às experiências das pessoas que vivenciam toda a sua tragédia.

Contos de Odessa, de Isaac Babel, traz histórias divertidas e também violentas do cotidiano de uma cidade rica e multicultural à margem do Mar Negro.
  1. Princípios
    Parta de seus princípios, e não de avaliações taxativas a priori. Quais são seus princípios? Examine-os. Você acredita na liberdade individual, na determinação dos povos, no papel da comunidade internacional em prevenir atrocidades, no direito à livre movimentação das pessoas, na responsabilidade das várias instâncias de governo em buscar a paz? No que você acredita, como princípios éticos que organizam as suas ações e reflexões e que valeriam para outras situações igualmente? Esse primeiro momento não é para as conclusões, é para organizar o começo de suas reflexões.
  2. Contexto
    Entenda o contexto do fenômeno, buscando fontes de qualidade. Relembre o que já sabe sobre a história, a cultura, a economia e sociedade dos países em questão. Leia ou releia a literatura dos povos envolvidos, que é vastíssima nesse caso, e familiarize-se com suas artes e arquitetura, o que hoje em dia é muito fácil pela internet. Sobre a Rússia, sugiro o cinema de Andrei Tarkovski e o divertidíssimo “O Inspetor”, de Nicolai Gogol, que vai ajudar vocês a se identificarem com essa cultura espetacular. Há séries bacanas na TV, sobre a vida de Dostoeivski ou inspiradas na obra de Tolstoi. Da Ucrânia, eu leria “Contos de Odessa”, de Isaac Babel, divertidíssimos! Leia ou relembre a história dos dois países, a partir de livros clássicos. Sobre a Rússia, eu sugiro “A Tragédia de Um Povo”, de Orlando Figes. O clássico “Ascensão e Queda do Terceiro Reich” de William Shirer é sempre uma boa pedida para compreender a Segunda Guerra Mundial, que trouxe um sofrimento incalculável à Europa Oriental, com ressonâncias até os dias de hoje. A Wikipedia também é uma boa fonte inicial, e você pode adicionar novas informações à Wikipédia em português.
  3. Fatos
    Entenda os fatos atuais. Busque jornais internacionais confiáveis, que mantêm um bom time de jornalistas internacionais, tais como The Guardian ou The New York Times. A BBC tem uma grande tradição de objetividade, e está sendo muito procurada inclusive pelos atores locais. Para questões especializadas, leia em revistas como Foreign Affairs. The Atlantic tem ensaios muito interessantes também. Siga autores e pesquisadores que você admira nas redes sociais, por exemplo Anne Applebaum e Timothy Snyder. Para assuntos específicos, como questões militares ou comunicativas, busque analistas especializados, como Kamil Galeev. Acompanhe as organizações internacionais e as organizações não-governamentais relevantes, como o Comitê para a Proteção dos Jornalistas. Busque também a visão de governos. O Ministério da Defesa britânico está soltando informes periódicos bem objetivos. No Brasil, estou seguindo o jornalista Caio Quero. Evite propaganda política, autores sem conhecimento do assunto e cínicos sem princípios claros. Você não está buscando um oráculo, apenas gente que pode lhe dizer o que está acontecendo numa situação complicada. Esse é um bom momento para testar e aprimorar o seu conhecimento de línguas. Se você ainda não está craque, junte-se aos amigos nesse esforço de leitura.
  4. Leitura
    Avaliem o que leram com serenidade: as idéias fazem sentido? O autor mostra respeito pelas populações envolvidas? Os fatos são críveis ou podem ser confirmados? Evitem os dois extremos da leitura: acreditar em tudo o que lêem ou descartar tudo como se fosse um video-game: há pessoas reais cujas vidas estão em jogo. Lembre sempre disso. Se você escolheu bons autores, instituições e veículos para seguir, lembre que quem está produzindo essas informações são pessoas como você, que estão tentando fazer uma ponte entre a realidade e o leitor do melhor modo possível, como você fez nos seus trabalhos de curso. Engaje-se com o texto, indagando, buscando mais informações, até questionando, como fizemos ao longo do curso, mas não desmerecendo. Estamos todos tentando compreender uma situação complexa e dinâmica: faça parte do esforço, sem miná-lo.
  5. Conceitos
    Nosso curso tratou da sociologia da comunicação, de onde trago os exemplos a seguir. Recupere os conceitos aprendidos no curso: esfera pública, materialidade dos meios de comunicação, influência pessoal, interações sociais, história dos meios de comunicação, construção democrática, e assim por diante. Reveja suas anotações e pense sobre cada conceito, perguntando-se se ele pode iluminar alguma questão. Pode Habermas ajudar a pensar sobre o que está acontecendo na Rússia hoje? Como Elihu Katz pode ajudar a compreender o que se passa na Ucrânia? Como McLuhan pode ajudar a entender as sanções internacionais à Rússia? Os conceitos servem para isso, para nos dar instrumentos para pensar. Se esses não forem suficientes, busquem outros autores, ou imaginem novos conceitos. Se seu foco não são os meios de comunicação, faça o mesmo com outras áreas, sempre buscando os melhores conceitos da área, sem se prender a dogmas e prescrições. Agora, como separar conceito e dogma? Conceito é uma ferramenta que lhe permite enxergar melhor diversas situações, cada uma delas com suas cores próprias, e dogma é um caminho que sempre vai lhe levar ao mesmo lugar, independentemente de seu ponto de partida.
  6. Humanidade
    Evitem conceitos que desumanizam as pessoas, e busquem reflexões teóricas que ajudem a compreender ações humanas e decisões coletivas. Nas ciências sociais, não queremos julgar pessoas ou condenar grupos, e sim compreender as condições nas quais certas ações individuais e decisões coletivas ocorrem. Complementando a sua pesquisa, fale com pessoas locais, ou com membros de suas diásporas pelo mundo. Há inúmeros russos e ucranianos escrevendo em várias línguas, em especial em inglês, como Garry Kasparov. Busque estudantes como você na Rússia e na Ucrânia e pergunte como estão. Busque saber se a Unesp ou outras universidades têm alunos da região, ou com antepassados da região, e entre em contato, assim como vocês fizeram entrevistas para suas pesquisas no nosso curso. Uma conversa apenas pode valer muito! No momento em que você vê as populações envolvidas como gente de verdade, como você, as coisas realmente importantes ganham relevo.
  7. Debate
    Esse é um bom momento para dialogar com seus pares, com pessoas que talvez não sejam especialistas, mas que fizeram um esforço de atualização para compreender o que está acontecendo. Debata nas redes sociais, entre amigos, colegas ou professores, que é o que fizemos ao longo do curso, debatendo textos e trabalhos com pessoas interessadas. Compartilhe o que descobriu e alimente-se das informações de seus pares.
  8. Questões
    Agora sim, elabore suas perguntas: Qual o impacto dessa guerra em nossas democracias? Quais os resultados das sanções? Como as ONGs podem auxiliar os refugiados ucranianos (e russos)? Qual o papel dos meios de comunicação na guerra em si e nas organizações civis? O que organizações como o CPJ podem fazer para proteger a livre-expressão, na Rússia ou no mundo todo? Qual o impacto ambiental dessa guerra? E assim por diante. Enfim, como numa pesquisa, agora é a hora de pensar no assunto com profundidade. Talvez hoje você não seja um especialista, mas uma pergunta vinda de um conflito dramático pode acabar se tornando um assunto de pesquisa ou uma atividade profissional.
  9. Pesquisa
    Agora que você já determinou sua questão, pode buscar palestras na internet, artigos sobre o assunto, talvez algum curso online, falar com mais pessoas, buscar dados mais robustos, enfim, pode buscar saber mais sobre aquilo que o intriga ou que o preocupa. O resultado dessa sua investigação pode virar a sua monografia, com estudos aprofundados, ou simplesmente um assunto a mais que você conhece, parte do seu hábito de se informar sobre questões importantes. Use os recursos que você aprendeu no curso para sua pesquisa, incorporando-os em seu cotidiano.
  10. Perspectiva
    Você tem direito a ter sua opinião e a compartilhar sua perspectiva de um fato ou idéia. Muitos alunos se desculpam por dar a opinião em aula, o que sempre me intriga. Se você se informou e refletiu sobre algo, sua opinião pode ser importante. Sua contribuição pode vir na forma de uma mera opinião, ao qual você tem direito como cidadão, ou como uma análise que você compartilha num blog, ou como resultado de uma pesquisa acadêmica de mais fôlego.
  11. Divulgação
    Compartilhe o produto de suas reflexões, seja nas redes sociais, em revistas acadêmicas ou para o grande público, e prepare-se para as críticas, que você deve responder com serenidade, ignorando comentários desrespeitosos, que acontecem tanto fora como dentro da universidade. Cite as fontes que usou e também agradeça a quem o ajudou a pensar e estruturar o seu texto. Compartilhe também textos que você julgou interessantes, ajudando outros a terem suas vozes ouvidas e inserindo-se numa trama de diálogo, interpretações e ações global e respeitosa aos que estão vivenciando um momento traumático e doloroso de suas vidas.
  12. Ação
    Agora que você tem sua opinião sobre os acontecimentos, pode se engajar nele, assinando uma petição, escrevendo para seu deputado, ou se oferecendo para ajudar alguma associação de apoio a refugiados, ou de algum outro modo. Claro que você pode atuar sem toda essa reflexão, e muitas vezes somos instados, pela urgência dos fatos, a fazer isso. Mas sua reflexão pode ajudar você a calibrar sua atuação mais instintiva, dando-lhe rumo e solidez.

Mesmo que suas leituras e investigações não resultem numa pesquisa nem numa atuação pública imediata, você terá aprendido sobre as ações e os dramas humanos e estará mais preparado para lidar com novos eventos dramáticos. Seus estudos, passados e futuros, farão mais sentido na medida em que você os usa e integra de modo pragmático à sua realidade e ao seu tempo, e você estará mais apto a ter uma atuação ética e autônoma como cidadão. Isso vale particularmente para os estudos de línguas estrangeiras, na medida em que você perceber que eles não são questão de status, e sim uma ferramenta para entender a vida das pessoas, abrindo acesso à sua vasta cultura e principalmente permitindo que falemos com elas diretamente.

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Heloisa Pait
Revista Pasmas

Professora de sociologia, pesquisa o papel dos meios de comunicação na construção da esfera pública. Publicou contos em revistas brasileiras e americanas.