O gênero do discurso

Pensando sobre gênero a partir de interações em ambientes digitais

Renata Nagamine
Revista Pasmas
8 min readAug 7, 2019

--

O debate sobre gênero tem sido profícuo, árduo e às vezes árido no Brasil. Se hoje ele tem mais atenção do que tinha há poucos anos, as reações a quem solta “gênero” da boca não raro são desrespeitosas, ventilam acusações como a de “vitimização”, ou mesmo são agressivas. Fundamental no país em muitos aspectos, que vão desde a proteção da vida, o autodesenvolvimento, o respeito à autonomia sobre os corpos até o crescimento econômico, a questão é mais comumente associada à “política de identidades” do que a uma questão de justiça, simbólica e material, tendo em vista a paridade nas interações sociais, como propôs a teórica política norte-americana Nancy Fraser ainda nos anos 1990.

Penelope e o filho Telemaco, 440 a.C.
Chiusi, Siena — Museo Archeologico Nazionale

“Gênero” é uma categoria que aponta não só para as relações entre homens e mulheres, mas para as que se estabelecem a partir dos significados sociais da genitália, as formas sociais do feminino e masculino, e a orientação do desejo. Trata-se de uma categoria disputada, com muitas camadas de sentido, que compreende mais do que as relações entre os sexos, mas que na linguagem corrente tem se resumido a elas. Entendida como tal, “gênero” é com frequência usado para referir mulheres.

Nas mídias sociais, em que as interações tendem tanto às trocas quanto à “lacração”, o debate sobre o tema é recorrente. No caso dessas interações elas são mediadas por formas do mundo digital: a plataforma, a linguagem escrita e, no Twitter, o espaço de 280 caracteres, que nos constrange a escrever de um jeito, e não de outro. Não menos importante, nossa comunicação se dá em meio a um emaranhado de relações em que certos lugares são destinados às mulheres e modos de fala ou lhes são interditos — o que é raro —, ou lhes são facultados mas, quando elas os adotam, deparam-se com atos com pretensões disciplinadoras.

A história da precariedade da voz das mulheres no espaço público é tão longeva que ganhou um aspecto estrutural. Pretendo pensá-lo, neste espaço, com base em dois ensaios: The Public Voice of Women, da historiadora britânica Mary Beard, e As flautistas, as parteiras e as guerreiras, da filósofa suíço-brasileira Jeanne-Marie Gagnebin.

Em The Public Voice of Women, Beard retorna à Odisseia para articular o argumento de que a nossa forma de falar publicamente e, com ela, o próprio espaço público foram constituídos a partir de uma ordem dada por Telêmaco a Penélope, sua mãe. O comando é tanto mais impressionante, ao menos aos olhos de hoje, porque Telêmaco é um adolescente que se arvora a mandar numa mulher de cerca de quarenta anos proferindo na realidade duas ordens, uma de retirada e outra de silenciamento: “Para o teu quarto recolhe-te e cuida dos próprios lavores/Roca e tear, e às criadas solícitas ordens transmite/Para que tudo executem, que aos homens importa a palavra,/Mormente a mim, a quem cumpre assumir o comando da casa” (Livro I, 356–9. Tradução de Carlos Alberto Nunes). Interpretando esta passagem da Odisseia, Beard afirma que o gesto e a fala pública seriam parte da transformação do adolescente em um homem, da constituição de sua masculinidade, que aparece, assim, associada à voz pública e a um comando ordenador em dois sentidos: o que profere uma ordem e o que ordena os corpos no espaço.

A historiadora sabe que as descontinuidades entre a Antiguidade e o presente são muitas e fundamentais. Ela pondera, no entanto, que, apesar das descontinuidades em mais de dois milênios entre o passado e o presente, ordens de retirada do espaço dos discursos para o recesso do lar têm se repetido, ainda que sob outras vestes. Nas mídias sociais temos uma ideia das formas contemporâneas que eles assumem: explicações dispensáveis, mas percebidas como necessárias pela suposição de falta de entendimento da mulher (o famoso mansplaining), o uso frequente do modo imperativo em situações de desacordo, a correção do que as mulheres falam, a caricatura ou crítica das suas formas de expressão e, no caso de mulheres na ciência, uma intransigência de homens e algumas mulheres em relação a formas que abrem mão de certos rigores de certa ortodoxia das formas de exposição visando à persuasão de audiências mais largas, mesmo quando elas são simplificações não-reducionistas.

É rico, como se vê, olhar para as reconfigurações daquela ordem de retirada ao longo do tempo e capturar as suas formas presentes; mas seguirei aqui por outro caminho, tendo a filósofa Jeanne-Marie Gagnebin por companhia. Penso que ela pode nos ajudar a compreender a persistência daquele ato.

Em um ensaio intitulado As flautistas, as parteiras e as guerreiras, Gagnebin aborda as relações entre os sexos e as formas discursivas. Interpretando o mito de Atena, Gagnebin argumenta que o discurso que reconhecemos como racional e próprio ao espaço público é masculino. Ela lembra que a deusa — uma mulher, decerto — regente da filosofia, a ciência e a guerra nasce da cabeça do pai, Zeus. Então temos, por um lado, que uma figura feminina rege a produção do discurso racional mas, por outro, procede da cabeça de um homem e mantém-se virgem, o corpo intocado por homem ou mulher. Elaborando sobre a interpretação de Gagnebin, penso que Atena, deusa da filosofia, da ciência e da guerra, representa a conhecida tensão entre a dimensão corporal e a intelectual, a necessidade de sublimar a primeira para a produção do conhecimento, o fruto da razão. Sob a regência da deusa pode-se, pois, gerar discursos verdadeiros, mas não filhos, e pode-se guerrear: aos homens são facultadas ambas as coisas, alternativamente; às mulheres apenas a última.

Na tradição filosófica ocidental foi Platão quem primeiro e decididamente reclamou a precedência da forma filosófica de falar sobre as demais no que concerne à formação dos cidadãos. Seu esforço por estabelecê-la aparece em uma série de diálogos, como o Protágoras, o Íon e a República. Platão trata de justificá-la e, para tanto, apela ao compromisso da filosofia com a verdade entendida como fruto de um proceder correto, uma ortodoxia, e não mais não-esquecimento, como os gregos já tinham conhecido. Essa mudança no interior da verdade na Antiguidade é analisada desde diferentes perspectivas por Marcel Detienne, em seu Os mestres da verdade na Grécia Arcaica, e Martin Heidegger, em um ensaio intitulado “A doutrina de Platão sobre a verdade”. Não cabe abordá-la neste ensaio, mas é pertinente mencioná-la porque, apesar de a relação da filosofia e do conhecimento com a verdade ter se alterado ao longo do tempo, a ideia de verdade que compartilhamos socialmente segue, a meu ver, associada à de correção, o que nos liga à tradição que Platão inaugura. Por isso tem sentido escavar os diálogos platônicos no intuite de descobrir de que modo o filósofo relaciona o discurso racional, para ele a forma filosófica de falar, com as mulheres.

Em um esforço desse tipo, Gagnebin assinala três passagens em que uma hierarquia da produção discursiva e a masculinidade do discurso racional estariam articuladas no pensamento platônico. Elas apareceriam, primeiro, na decisão dos convivas no Banquete e no Protágoras de retirar as flautistas da sala quando eles decidem dar prosseguimento ao simpósio trocando a bebida pelos discursos. Também estariam representadas na ideia socrática de que as mulheres parem filhos, enquanto os homens dão à luz discursos verdadeiros, como aparece no Teeteto e a própria figura de Diotima reforça no Banquete: Sócrates lhe passa a palavra justificando que o assunto é o amor, ou seja, a voz da mulher pode até ter lugar entre os convivas, mas ela é cedida e precisa ser se justificada. No livro V da República, Platão assinala, enfim, que as mulheres podem cumprir as mesmas funções que os homens na cidade, entre as quais a de guardiãs, mas afirma na sequência que elas têm igual aptidão e ao mesmo tempo uma fraqueza em relação aos homens. Esta última passagem evidenciaria um deslizamento que Gagnebin atribui à dificuldade de Platão, e toda a tradição, de pensar a diferença. Elaborando sobre a interpretação de Gagnebin, penso, enfim, que essa dificuldade resulta em dois movimentos: a construção de uma hierarquia a partir das diferenças e a atribuição de valores a elas, de modo a ordená-las em termos de positivo e negativo a elas.

Com base na reconstrução das relações entre os sexos e as formas discursivas nos diálogos platônicos, os ensaios de Beard e Gagnebin nos permitem pensar que o silenciamento manifesto é uma forma da recusa do público e do discurso às mulheres. Outra, muito mais sutil e difícil de capturar, é aquela em que os homens e a masculinidade se mantêm como lugares de enunciação, autoridades garantidoras do correto, enquanto o erro e o engano são atribuído a elas, em um espaço discursivo abrangente de homens e mulheres, porém, instituído pela voz dos homens. O masculino e o espaço público seriam, nessa linha de pensamento, constitutivamente positivos e formalmente neutros. No que se refere à segunda forma de recusa do público e do discurso às mulheres, Gagnebin a ilustra apelando às tensões entre poesia e filosofia na própria Grécia Antiga. Lembra que Platão busca estabelecer a filosofia e, como Hannah Arendt o interpreta, resguardar para o filósofo um lugar seguro na cidade em relação aos cidadãos depois da condenação de Sócrates: para tanto, empenha-se em deslocar a poesia e a sofística, artes da palavra sedutora, do cerne da pedagogia e em bem estabelecer o primado do discurso filosófico. Daí Platão também afirmar que as mulheres podiam tomar parte na vida pública da cidade, como iguais, mas, geradoras de filhos e mestres nas artes de sedução, não seriam aptas à produção de discursos racionais.

Na linha de pensamento de Beard e Gagnebin, a precariedade do lugar da voz das mulheres no espaço público teria relação, então, com a recusa da presença de outras formas discursivas, associadas ao feminino em um espaço discursivo que positiva o masculino. Um argumento adicional de Gagnebin é, na minha leitura, que Platão teria associado essas formas ao feminino por sua dificuldade de lidar com a diferença, aí incluída a sexual, e por considerar que elas se dedicam primordialmente a ludibriar a audiência. Na tradição filosófica ocidental seria feminina, em suma, uma forma de falar lúdica e sedutora, que apela aos sentidos e pende a enganar. O feminino seria, ainda em outras palavras, tudo aquilo de que se quer depurar, ao mesmo tempo, o espaço público e a masculinidade. Pensando com Gagnebin especialmente, o elemento fugidio do que às vezes percebemos como machismo ou misoginia em debates públicos pode estar na positividade do discurso masculino quando ela se restabelece em ato e torna presente, por conseguinte, a negatividade do feminino. Para ilustrar, é esse o caso quando um homem corrige uma mulher pelo que julga ser uma incorreção de seu enunciado, o qual, no entanto, assumiu uma forma e não outra em função da audiência: em casos como esse, a correção do homem não decorre necessariamente de disposições e visões pessoais do interlocutor, mas restabelece a voz masculina como positividade, garantidora do correto, à revelia de seu machismo ou sua misoginia. Daí também a nossa dificuldade de esclarecer a um eventual interlocutor onde repousa o incômodo.

Há, pois, ganhos em deslocar a atenção do enunciado para a enunciação. Beard e Gagnebin abrem a possibilidade de falarmos de hierarquia ou precedência entre a voz pública dos homens e a das mulheres de modo não-acusatório, de problematizar a positividade do masculino, o que requer poder dizê-la. Essa é uma tarefa importante no tempo presente, em que assimetrias, inclusive sexuais, tendem a se reproduzir até por algoritmos. A leitura de A voz pública das mulheres e As flautistas, as parteiras e as guerreiras nos permite olhar, então, para caminhos que podem nos ajudar a identificar a recusa da voz das mulheres e a pensá-la criticamente, em sua articulação com a recusa do discurso lúdico e da diferença, em um momento em que é premente encontrarmos formas de falar e falar das diferenças que têm nos separado.

--

--

Renata Nagamine
Revista Pasmas

Direitos na vida social. Pesquisadora @Cebrap no projeto "Pluralismo religioso e diversidades no Brasil pós-Constituinte". Antes, @de_usp, @ufba e @lpil.