O Preto Fosco

Heloisa Pait
Revista Pasmas
Published in
3 min readOct 26, 2020

Por Heloisa Pait

Não eram brigas de arquiteto e cliente.

Não eram disputas de marido e mulher.

As brigas da casa de Ubatuba eram brigas de vidas. Os dois sonhavam com a mesma casa, no mesmo lugar, com os mesmos materiais. O mesmo custo, o mesmo ambiente. Mas brigavam com a raiva que só quem quer a mesma coisa tem, duas pessoas atadas uma a outra no deserto em busca da mesma fonte.

Minha mãe pagava os fornecedores pois meu pai estava sem dinheiro. Ela escondia dos amigos mas no meu pai doía ainda mais.

Ele era o arquiteto e queria tudo aberto. Ela era a dona de casa, a dona da casa e queria pelo menos a coifa na cozinha. Ele era o arquiteto e pelo menos o vão superior das divisórias em vidro, as luzes acesas extravasando pelo teto largo da casa toda.

Ele lidava com o Deive, o empreiteiro, que pensava em fazer o piso todo inclinado para a água escorrer. Ela pagava o churrasco dos pedreiros pelo levantamento do telhado caso contrário dava azar.

A casa era o ápice, o máximo que chegariam. Os filhos eram aquilo. Os parentes, aquilo. Os amigos eram esses, suas carreiras eram o que eram. Não era pouco. Os filhos tinham saúde e eram comportados, apesar de um tanto idiotas. Os parentes tinham lhes roubado, somando tudo, pouco dinheiro. As conversas dos amigos eram toleráveis, mesmo antes da bebida. O que mais doía nela era ter que pagar a casa. Não pelo quanto suava no trabalho, nem porque tivesse coisa melhor pra fazer com dinheiro. Mas pela “sensação de insegurança”, como dizia, por ter que contar consigo mesma.

Em 1963 tocavam “The End of the Word” e não avisavam que as mulheres iriam pagar contas com os fornecedores. Por isso ela brigava com a casa que tinha sido feita absolutamente ao seu gosto, gosto dele também, casa sem frescura, lajota barata, varandão, vidraria. Um dia ela chegou na casa com os filhos e as vigas estavam pintadas de preto fosco. Ela desandou a gritar “Preto fosco não! Preto fosco, não!” E de repente surgiram pincéis e tintas marrom brilhante e começamos a pintar as persianas. A tinta não pegava, pintávamos e pintávamos e o preto fosco impregnado na madeira.

Depois eles se encontraram para o embate final, ela alegando que já haviam decidido pelo marrom brilhante, ele exasperado pois preto fosco seria fenomenal. Em algum momento, esqueceu quem era, pra quem era a casa. Ele havia voltado a 1963, tocava “I will follow him” e a mulher dele adoraria preto fosco, contrastante, sua casa na praia, seu projeto, filhos sorridentes que não o olhavam perscrutadores por trás de óculos grossos.

Não sei dizer o que era melhor. O preto fosco seria mais classudo, mas o marrom brilhante era mais alegre. A cozinha aberta era bonita, os quartos fechados acolhedores. O quarto da Teresinha do mesmo tamanho que todos. Um dia trouxe uma raia, que matou no tanque. Meu pai trouxe sua mãe para ver a casa. Jogávamos poker com fichas antiquíssimas. Aproveitamos.

O Deive, o preto fosco, os cheques, tudo ficou pra trás. “Se estou viva, é por causa desse homem”, ela nos disse depois, como nas canções de 1963. “Não me lembro por que separei da Rosa,” disse meu pai, depois ainda. Eu poderia ter respondido: O preto fosco, os cheques aos fornecedores, a boneca que ela não for. Mas tudo havia ficado para trás.

As brigas não tinham sido fúteis. Não. Eram brigas de verdade, de gente grande. Brigas de gritos e raiva. De exasperação pela vida não ser como toca nas rádios, por um contrato mal redigido ou mal lido. Briga de gigantes.

E o que me dói mais é viver essas brigas poucas, as escaramuças da internet, a aterradora mediocridade dos conflitos do trabalho. Nem sei o que daria para viver uma briga que valesse a pena, que valesse o nome, com um homem de verdade.

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Heloisa Pait
Revista Pasmas

Professora de sociologia, pesquisa o papel dos meios de comunicação na construção da esfera pública. Publicou contos em revistas brasileiras e americanas.