Observações sobre a Vitalidade Feminina

Betina Ruiz escreve sobre o que nós podemos aprender com o mito de Pandora e os conselhos de Bruce Lee.

Juliana de Albuquerque
Revista Pasmas
4 min readAug 7, 2019

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Por Betina dos Santos Ruiz*

Bruce Lee Foto: ©Bettmann/Getty Images

“- Be water my friend”, disse Bruce Lee a quem o entrevistava para uma série televisiva chamada Longstreet, na década de 70 do século passado.

O conselho é curto, de certa maneira é dócil e desde então está aberto a interpretações. Bruce Lee fez mais comentários para além da fórmula, durante a sua participação na série:

“Empty your mind. Be formless, shapeless, like water. Put water into a cup, it becomes the cup. Put water into a teapot, it becomes the teapot. Water can flow or creep or drip or crash(…) Like everyone else you want to learn the way to win, but never to accept the way to lose — to accept defeat. To learn to die is to be liberated from it. So when tomorrow comes you must free your ambitious mind and learn the art of dying!”

Há dias lembrei-me da fórmula encontrada por ele; enquanto lia versões do mito de Pandora, veio essa imagem da água à minha cabeça.

Pois uma das versões desse mito grego conta que Pandora, a primeira mulher, mulher de todos os dons, forjada a partir de um plano de Zeus, não conteve a curiosidade diante de uma caixa proibida e vigiada (descrita também ou como ânfora ou como vaso). A caixa de Pandora, como a conhecemos até hoje, fora criada para conservar memórias da sua proprietária, a sua mente e alguns perigos (a mentira, a inveja, a loucura etc). Ela estava aos cuidados de duas gralhas de Epimeteu, que recebera Pandora como esposa. A caixa e a própria Pandora eram armadilhas para apanhar Prometeu. Ele havia dado o fogo aos mortais e, por pensar com antecedência nas coisas, recusara Pandora como presente de Zeus. Seu irmão, que só pensava nas coisas depois de elas gerarem consequências, aceitou a esposa e a caixa. Descuidou-se e deu-se o estrago: Pandora abriu a caixa e permitiu que dela saíssem todos os males, menos a esperança, mantida lá dentro porque ela, ainda confusa, fechou a caixa. Pandora se entristeceu, chorou, acabando por se matar.

Artimanhas, escravidão, obscenidades eram elementos correntes nas histórias mitológicas gregas, embora se tenham dissolvido paulatinamente. Outras histórias tradicionais, como Clarissa Pinkola Estés nos conta no seu famoso livro sobre os arquétipos femininos, Mulheres que correm com os lobos, eram realmente mais duras e mais específicas quanto aos perigos e as soluções.

O que me intrigou nessa tentativa de aproximar mito e fórmula moderna é ver chorar uma mulher forjada, cuja identidade resvala mais facilmente, ainda, hoje, para a dissimulação e para a sedução.

Pandora se tinha rendido à água!

Realmente, alguns comentadores dos mitos falam nela como uma figura que indica também a dignidade, a força, a resiliência, e nestes aspectos está, a meu ver, a sabedoria do conselho de Bruce Lee.

Chorando, sendo ela própria, criada do barro, Pandora foi a confirmação de que “a mulher traz vida ao mundo”, conforme já comentou Joseph Campbell. Foi condutora de vida, foi quem se deixou surpreender pela força da vida, foi quem seguiu na direção da vida interior.

Torrencial ou mansa, a água flui. Produzindo espuma ou transparente, a água flui. Envasada, é o vaso. Limitada pela terra, é o leito do rio. Quando é choro, é expressão de dons, autoriza a mudança de estado, porque autoriza, antes, a ação do curso da vida.

Se Pandora foi construída no seio de uma vingança, para causar o desconforto, trouxe igualmente alternância, trouxe vitalidade, esteve em acordo com a natureza dos acontecimentos.

Assim eu me quero e assim me apetece ver outras mulheres. Somos constatação e celebração dos ciclos, somos heroínas numa jornada, somos dotadas da capacidade de trazer à luz outros seres que percorrem esse caminho, repetida mas diversamente.

Faz alguns dias estive com um pequeno grupo de dançarinas, a convite do seu diretor artístico, e falar para elas acerca de Pandora e da aplicabilidade desse mito à expressão corporal que lhes é desejada e flui até nós com mais facilidade do que fluiria de outros corpos, senti-me curiosamente mãe. Sou duas décadas mais velha do que aquelas meninas. Estava a arriscar conselhos, como fazemos depois de alguma experiência adquirida. Estava a falar mais ou menos como falo ao meu filho querido.

“As pessoas capazes de o fazer [manter o mito vivo] são os artistas, de um tipo ou de outro. A função do artista é a mitologização do meio ambiente e do mundo”, disse Campbell que, diga-se de passagem, deu aulas para cursos repletos de mulheres. Boa sorte, dançarinas! Boa sorte, mulheres! Parte do encanto de sentir a energia feminina em movimento, de sentir a vitalidade das mulheres está em vocês e na interpretação que podem dar a essa grata presença no mundo. Tenham a forma que melhor ajudar a mostrar aos olhos dos leigos e dos muito afeitos à arte do que a vida é feita. Todas temos luz e sombra, todas cedemos à curiosidade e todas devemos saber voltar para lutar pelo equilíbrio. Somos água, minhas amigas.

*Betina dos Santos Ruiz é doutora em literatura comparada pela Universidade de São Paulo (USP).

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