Parapeitos

Heloisa Pait
Revista Pasmas
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4 min readMay 15, 2020

Mariam Day reflete sobre as contradições da quarentena: juntos em nossas janelas, tendo que aprender como agir em conjunto. Sua crônica, dando sentido a esses opostos, nos tira de nossa ambivalência paralisante.

De Mariam Day

Foto de Mariam Day

Que dia é hoje? Eu não sei que dia é hoje. É como se estivesse presa no mesmo dia há dias. Talvez hoje seja começo de outono, mas ainda não aprendi a saber do outono sem sair de casa. É certo que o fiapo de brisa que passa pela janela não é suficiente. Como se sabe do outono sem ir à rua, sem pisar em folhas e ver caquis majestosos que se exibem pelas feiras? Nesse levar, o computador é o único que pode me dizer em qual estação estamos: estação do fim de um mundo. E ele me diz que o outono chegou há alguns dias. Mas eu não o esperava, estava muito ocupada tentando resolver tudo às pressas, contra o andar dos ponteiros do relógio que só sabem ir para frente, para enfim trancar-me em casa; voluntariamente, solidariamente, por medo, e por não ter aonde ir.

Neste isolamento, o computador é minha principal companhia. Por ele chegam notícias de um mundo que se acaba e que não o vejo. Por sua tela, assisto aos rostos preocupados de pessoas que não toco. Por ele, chegam notícias das pessoas que me fazem feliz e seguir em confinamento. O confinamento é uma busca de si e uma celebração do outro. A gente cuida de si, e cuida do outro porque o outro existe e importa. Só por isso!

Eu escrevo do parapeito da janela, onde tomo meu primeiro café do dia. Onde pego sol. Onde às 20h30min tenho meu único compromisso inadiável nesses dias. Quando olho para frente, a única coisa que vejo são apartamentos. Nesses apartamentos há pessoas, são meus vizinhos, uma comunidade da qual começo a fazer parte. Eu os olho e fico feliz por estarem ali. Às 20h30min temos um encontro marcado.

René Magritte, L’État de Veille (veja o catálogo da Sotheby’s)

Quando pela janela estico um pouco meu tronco e olho para os lados, posso ver um pedacinho de mar, de um lado, e um pedacinho de mato, de outro, que parece dar seguimento à cabeleira verde que cobre a rua. A rua mesmo eu não enxergo, mas quase escuto os passos dos poucos que caminham pelas calçadas. Pela janela também vejo aquele solitário senhor que por vezes se permite bravear palavras de apoio ao presidente, enquanto finge falar ao telefone. Este senhor não me parece estar bem. Mas eu, e o restante da vizinhança formamos uma comunidade, e temos um encontro às 20h30min.

Às 20h40min, quando os instrumentos, panelas e vozes começam a se aquietar, alguém coloca a música do dia. Esta vizinha, que não consigo ver porque estamos do mesmo lado da rua, nos presenteia com uma serenata cotidiana nos lembrando de que “é preciso estar atento e forte”. Resgatamos poesia de ontem para criar o futuro. E esse futuro que tentamos tecer dentro de casa há de cedo ou tarde encontrar as ruas, porque “lugar de poesia é na calçada”.

Mas os pensamentos não dão conta de terminar. Começo a ouvir uma música, a ver um filme, a ler um livro, a escrever. Será que tem como fazer um respirador com o ventilador aqui de casa? Começo a ouvir outra música. Como nos apoderamos das possibilidades de ação que se abrem? Assisto metade de um filme. Como agir de casa? Onde estão os hackers? Abro um livro. Como a gente volta a discutir o conflito da terra? Como paramos o desmatamento em quarentena? Como eu faço essa maldita poesia chegar na calçada? Escrevo.

O limite de minha ação parece estar neste parapeito de onde escrevo e eu ainda não sei como ultrapassá-lo sem pular. Pular, no entanto, não é uma opção, seria miseravelmente miserável. Mas como ultrapasso este parapeito? Um beija-flor revoa em minha frente, em seguida passa por mim uma borboleta e desfilam alguns pardais. Talvez estejam querendo me dizer algo, mas eu não consigo entender. Ou talvez só estejam celebrando a diminuição das emissões. O mundo parece respirar aliviado enquanto estamos em casa com medo de não poder mais respirar.

Aqui, deste parapeito, sinto-me como se estivesse de castigo. E sei bem do motivo. Mas quanto tempo durará esta pena? Um mês, dois meses? Anos? Tudo o que mais quero é sair, mas como? Como abro caminhos entre o meu parapeito e os de meus vizinhos? Eu ainda não sei responder a esta questão. E quando penso nela a primeira certeza que tenho é a de que vou enlouquecer; depois a de que não vou enlouquecer; e depois não tenho certeza. E não estou certa da ordem dos acontecimentos, mas sei que escrevendo posso pensar em ultrapassar parapeitos, sem pular.

Mariam Day é escritora e doutoranda em Antropologia Social. Escreve rascunhos desde o início dos anos 2010. Artesã intelectual. Fonte primária de lorotas.

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Heloisa Pait
Revista Pasmas

Professora de sociologia, pesquisa o papel dos meios de comunicação na construção da esfera pública. Publicou contos em revistas brasileiras e americanas.