Pedalando Noite Adentro

Fabiana Gampel Grinberg
Revista Pasmas
Published in
6 min readJul 17, 2020

Isadora Sinay escreve sobre lembranças que emergem no cenário de isolamento e conta como pedalar em sua bicicleta remete à liberdade, ainda que revele limitações.

Isadora pedalando e sua bicileta vermelha em São Paulo. Fotos: arquivo pessoal.

Por Isadora Sinay*

Em outubro de 2018 eu me mudei para Los Angeles para um intercâmbio. Não era minha cidade dos sonhos, não era um lugar que minha imaginação pudesse dar conta ou que já ocupasse um lugar em mim. É enorme, me disseram, é horrível, ninguém anda, é hostil. Eu sabia, esperava ao menos, que seria solitário. Eu estava lá para o sanduíche do doutorado e se a atividade acadêmica já é uma experiência de isolamento na melhor das hipóteses, em um país estrangeiro, em uma cidade tão estranha, eu não poderia me dar ao luxo de esperar diferente.

A cidade é realmente enorme, mas é também feita de várias pequenas cidades; e é horrível, mas é violentamente linda; e algumas pessoas andam sim, mas eu pedalava. Após dias enfiada na biblioteca da universidade, subindo e descendo atrás de um ou outro livro, almoçando em cima do meu computador e batendo de leve minha cabeça na mesa na frustração das ideias que não querem se comportar como eu gostaria que se comportassem, eu montava a bicicleta creme que apelidei de Joni (sim, Mitchell) e pedalava.

Los Angeles é imensa e relativamente plana, imensa e cheia de caminhos que te levam para o mar, para livrarias, para museus, para a quantidade infinita de cinemas, nos quais enquanto espera na fila você ouve histórias de alguém que trabalhou com a Sofia Coppola. Imensa e cheias e montanhas rosadas que se refletem no céu em um por-do-sol completamente impossível.

Logo meus domingos se tornaram sinônimos de pedalar ao menos 30km e eu entendi o mapa da cidade embaixo das freeways, o mapa da cidade em que as pessoas vivem. Enquanto eu pedalava em uma bicicleta comprada em uma loja de departamentos qualquer, eu sentia o vento no meu cabelo, o cheiro peculiar do ar, sua mistura de maresia e pinheiros, e eu conquistei uma cidade que me disseram ser inconquistável. Eu pedalei para me sentir em casa.

A história de mulheres e bicicletas é longa e conflituosa, uma busca por “mulheres” e “bicicletas” no Google te mostra uma página inteira de artigos e pesquisas sobre por que as mulheres não pedalam tanto quanto os homens (pressões estéticas, segurança, aparentemente) antes de um artigo da revista online Bustle chamado “A História Feminista das Bicicletas”. O artigo me conta que bicicletas, como quase tudo que existe de divertido nesse mundo, inicialmente eram consideradas coisas de homem. O principal motivo era algo que eu poderia ter chutado: o selim no meio das pernas. A opressão das mulheres nunca deixa de ser um pouco óbvia. Mas a história da resistência feminina também: logo mulheres rebeldes reivindicaram esse novo meio de transporte que lhes conferia coisas valiosas e proibidas, velocidade, privacidade e liberdade. A bicicleta permitia que sentissem o prazer da velocidade e fossem mais longe do que poderiam a pé, além de lhes permitir fazer isso sozinhas, algo impossível em uma carruagem. O que eu achei mais curioso nesse artigo é a ideia de que muitos conservadores foram contra o uso de bicicletas por mulheres porque a constante movimentação com a coisa no meio das pernas lhes causaria orgasmos. O que, claro, era bastante indesejável.

Eu não conheço mulheres que saem tendo orgasmos enquanto pedalam em parques ao domingo, mas consigo entender o caráter sexual e libidinoso de uma bicicleta. A adrenalina de se equilibrar em uma estrutura precária de metal, o existencialismo de precisar seguir se movendo para se manter de pé, a extrema consciência de si que andar de bicicleta exigem te transformam em um Corpo. Um Corpo no espaço que sente o vento, o calor, o frio, o medo, a liberdade profunda de ser um Corpo que movimenta a si mesmo.

De forma completamente oposta, uma pandemia também nos transforma num Corpo. De repente me pego monitorando cada espirro, cada tosse alérgica, dolorosamente consciente de cada vez que afasto meu cabelo do rosto, eu esfrego meus olhos cansados de tanto trabalhar. Passo a questionar cada arrepio, será que é doença, será que é só outono? Me torno também um Corpo que escaneia o tempo todo seu espaço, que mede e analisa o espaço entre ele e os outros. Sempre fui muito apegada ao meu espaço pessoal e sinto que a desconfiança imediata que sempre senti com a proximidade de corpos desconhecidos me preparou para exatamente esse momento.

Viver em pandemia é o mesmo e o oposto de descer uma ladeira de bicicleta. Em ambos os casos eu deixo de ser tudo que sou intelectualmente para me tornar apenas Corpo. Mas em um eu vivo o êxtase da liberdade e no outro sou essa forma claustrofóbica que não aguenta mais ser tão consciente da própria materialidade marcada pelas cutículas rachadas de quem agora lava as mãos vinte vezes por dia.

Cansada de me sentir tão Corpo e tão presa, uma noite, tarde, muito tarde, eu olho pela janela do meu apartamento em uma grande avenida de São Paulo enquanto cutuco minhas cutículas feridas. Não há mais carros na avenida e se eu olho na direção do Centro eu sei que a mistura que eu amava de sujeira, arquitetura parisiense e pessoas bebendo cerveja barata é agora apenas uma paisagem distópica. Eu penso cada vez mais nos meus meses em Los Angeles, naquele isolamento peculiar, naquela cidade esquisita. Eu penso em anos do passado, em que minha pele parecia apertada demais e minha vida a mesma deriva de incerteza. De todas as sensações curiosas dessa pandemia, a mais curiosa é essa de quase poder pegar 2012 com a mão.

E então eu decido colocar minha bicicleta no elevador. É tarde, tarde suficiente para que minha fuga respeite as regras do isolamento social. Não há mais rebeldes em tempos de pandemia. É o início do outono e as noites têm aquele gelado úmido peculiar dessa época, a luz do fim da tarde é daquele dourado que todo ano lembra os paulistanos de que existe uma natureza. Eu costumo odiar o clima de início de outono, o calor de dia, o frio de noite, ninguém nunca sabe o que vestir para sair na rua, mas é claro que não saímos mais na rua. Eu monto na bicicleta e pedalo.

Pedalo ladeira acima e sinto o cansaço físico que não sentia há semanas. Lembro da sensação de esforço muscular, lembro o que é ficar ofegante. Lembro que não muito tempo atrás meu corpo não era essa coisa lenta e preguiçosa que ele se tornou agora, lembro de outro mundo em que eu atravessava viadutos correndo e equilibrava todo meu peso sobre a cabeça. E então alcanço a reta. O ar queima meu rosto, a parte de dentro do meu nariz, congela minhas mãos e por alguns segundos, a cidade é minha cidade de novo.

Vazia, é claro, tão vazia que eu sinto medo de ser assaltada ou assassinada o que tem um certo conforto, os medos que a gente sempre teve. Mas eu já pedalei essa rua outras vezes, nessa mesma bicicleta, talvez um pouco bêbada, talvez vendo a luz baixar em um fim de domingo e fazendo a lista das coisas que precisavam ser feitas antes do início da semana. Eu não faço isso agora, eu tento não pensar porque enquanto eu não pensar nada é fora do normal. A avenida, o ar da noite, São Paulo, minha bicicleta vermelha. Quando eu era adolescente, pedalar por aí me conquistou alguma liberdade; morando muito longe daqui, me conquistou uma cidade. Agora, transforma meu corpo de um alvo de infecções que deve ser constantemente vigiado e higienizado em algo capaz de me impulsionar noite adentro em uma velocidade vertiginosa, que é capaz de construir liberdade e normalidade apenas com o movimento repetitivo dos meus pés no pedal.

O silêncio não parece mais o silêncio da morte, apenas o da madrugada. É muito tarde, o ar é muito frio e eu estou indo muito rápido. São só alguns minutos e eu volto para casa, mas nesses minutos eu me sinto feliz, livre e em paz com a minha materialidade em um momento em que todas essas coisas me parecem escandalosas.

*Isadora Sinay é tradutora e doutoranda em literatura na Universidade de São Paulo.

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