Quarência

Naia Veneranda
Revista Pasmas
Published in
3 min readJul 24, 2020

Por Naia Veneranda

Foto de Denise Jans na Unsplash

Primeiro, disseram que iria durar 14 dias. Então o jeito foi estocar chocolate, cândida e sabão.

Mas não disseram faltaria abraço. E foi lá pelo 10º dia que começou a ficar ruim. Nada de café com amigos ou sol na rua. Ainda assim, o que doía mesmo era a falta de abraço. Mal sabíamos que dentro de algum tempo, nem sorriso daria pra ver. Melhor assim, talvez.

Depois mais 14 dias. E a gente nem percebeu que já era quase um mês. No mercado, o consumo de laranja e vinho aumentou um absurdo. Se não dá pra prevenir, pelo menos a gente remedia.

Foi então que o tempo sumiu. Perdemos a conta. O pulsar do coração passou a marcar as ausências; e essas a gente conseguia contar. A carência de abraço começa a aumentar e a fumaça daquele cafezinho prometido “mais pro finzinho de março” traz um remorso amargo. Mas daí, outras faltas (sempre presentes) começam a pipocar, falta pai, faltam almoços com a família, falta passeio com a sobrinha.

É, falta corpo por perto. Os que já não existem e os que há tempos não são tão próximos. E de repente a gente se dá conta que certas proximidades pertencem ao futuro de um pretérito mais que perfeito. Um pretérito condicional, que hoje reluz num presente imperativo . Nem tudo que reluz é ouro.

Então, porque distantes de outros corpos, a gente se volta para o próprio corpo, que neste isolamento se faz ouvir. E fala a língua da carência, porque falta a língua da indecência. Não tem diálogo, tem eco. É grito, mas não é gozo. A distopia real faz do virtual a concretude possível.

É tudo e mais um pouco. De repente, os pelos cresceram, o cabelo voltou à cor, o sono se achou, a fome cresceu. Pelas fotos, vê-se que muita gente colocou a mão na massa.

Mas, e a massa? É essa que rela a mão em tudo e a ela, cada vez menos, estende-se a mão.

E enquanto aqui falta corpo, logo ali o número de corpos aumenta.

É fato que resiste a esperança desse corpo que fala, esse corpo de humores que nunca se pensaram solitários e hoje aguardam não serem mais comportados. Há a esperança do tempo que sobra, mas que “logo vai passar” e eis que tudo voltará ao…, não, não volta.

Tem essa carência própria da quarentena, que veio nua, languidamente, de quinze em quinze dias. Sem os adereços da rotina corrida, do trânsito, da vida de sempre. Veio pesada, sem bússola, por tempo indeterminado. Cala mais alto à noite, se esconde entre os canais da TV, nos espera na cama. Ela trouxe aquele filminho que afirmam passar na mente de todos antes da morte.

Mas, antes de sermos devorados por ela, vamos decifrá-la e tudo vai voltar a … Não, não vai. Ainda bem.

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