Quero ser livre como um homem.

Juliana de Albuquerque
Revista Pasmas
Published in
5 min readMar 12, 2019

A escritora Nara Vidal escreve sobre o nosso direito de flanar e estar.

por Nara Vidal *

Anésia Pinheiro Machado (1904–1999): pioneira da aviação brasileira.

Há pouco tempo eu estive em Nice, sul da França. Tenho me ocupado de editar uma revista de viagens e cultura, algo leve e feliz que me ajuda, por exemplo, a lidar com a ansiedade e os horrores da indústria do livro, também chamada de literatura.

O meio literário é, muito frequentemente, como escolher andar sozinha às duas da manhã, dentro da névoa a ouvir passos. Corra e os passos avançam com o medo. Pare e você morre.

É irônico o nome da revista de viagens: Walk the Talk Magazine. Uma expressão que significa, vulgarmente, pratique o que você prega, há mais camadas do que que aparenta. Ela se refere aos filósofos gregos Platão e Aristóteles que, segundo algumas fontes disponíveis por toda a rede, costumavam fazer longas caminhadas com amigos e seguidores enquanto discutiam tópicos e testemunhavam culturas. A ideia de andar, pensar, discutir e ver o novo está ligada, por exemplo, à pintura de Rafael “A escola de Atenas”, onde os dois filósofos gregos são representados em companhia de seguidores. Um conceito que abrange, inclusive, a liberdade humanista permeada pela potência intelectual, característica principal do Renascimento.

A ironia do nome se dá em razão do desejo por trás da sua escolha. O meu desejo de viajar e explorar o mundo como um homem. Ao leitor e à leitora, peço que ponderem em relação a essa colocação que esconde, propositalmente, nuances que sugerem um possível desserviço da minha parte, irresponsabilidade, até, ao afirmar que um dos meus desejos é caminhar, flanar pelo mundo, explorar paisagens e cidades como se eu fosse um homem, aparentemente ignorando o vigor feminista que vivemos. Há nessa provocação uma proposta de debate. Virginia Woolf percorre o tema com a qualidade característica na sua narrativa. Tanto em “Um quarto todo seu” e em “Cenas Londrinas”, a autora examina e propõe a reflexão sobre o potencial feminino e sua constante ameaça de limites e convenções sociais. Falamos aqui da década de trinta, século vinte. Difícil reconhecer que essa agenda feminista e feminina mudou tão pouco. Gostaria de ter em comum com Virginia sua qualidade de escrita. Perdoem-me pelos meus delírios. O que temos mesmo em comum é o amor a e o fascínio por Londres. A autora chega a dizer numa carta à amiga Ethel Smyth da sua absoluta paixão por esta grande cidade e esclarece a profundidade do sentimento afirmando que Londres é seu único patriotismo. Claro, não é complexo entender o apelo que Londres tem a escritores, artistas, historiadores. Um passeio por Covent Garden, Bloomsbury, Shoreditch, Kensington e os sentidos se aguçam, a vida melhora, os olhos saltam, a vida se alarga. Londres é, para mim, um mundo inteiro. Menos pelo óbvio abraço cultural que, indistintamente, dá a tantos povos, raças, tradições. Mas, unicamente, Londres me deixa andar sozinha e em paz. Quase como se eu fosse um homem. Volto a essa reflexão através do belo conto de Susan Irvine, “Fearlessness” da magnífica revista Gentlewoman, edição 17.

No seu texto, Irvine aborda um meio termo que não é uma concessão. É uma completa frustração. É uma quase liberdade, uma quase independência, um quase todo. Numa lógica, o quase é o mesmo que o nada. Não há, na Matemática uma resposta quase certa, um cálculo cujo resultado é quase o que se espera. O quase é o mesmo que o fracasso, a resposta errada. Não há segundo lugar. O que existe é o primeiro e o último colocados. Enquanto planejamos flanar e explorar o mundo à noite, em florestas, em becos, em praias desertas, ainda observamos, mesmo que atônitas e em choque, os homens vestidos em sua tranquilidade ganharem sem qualquer esforço, o primeiro lugar. Nós, mulheres, ficamos em última colocação. Enquanto tivermos um pouco de receio, um pouco de parcimônia, um pouco de cuidado para sair, andar pelo escuro sem olhar para trás, estamos em clara desvantagem. Afinal, corremos de quê? Que medo é esse que nos impõe companhia, preferencialmente masculina, para adentrar territórios mais densos, menos explorados, mais escuros e, portanto, com mais possibilidade de rico reconto e testemunho? Andar, flanar como fez Woolf em companhia de homens é nos proteger, nos guardar. A quem interessa a perpetuação da nossa suposta pequenez e incapacidade física, psicológica, intelectual e emocional? Interessa ao sistema que foi estabelecido e serve como referência e exemplo. Tudo que o chacoalhe é ameaça. Se soubessem que aqui, neste texto, quero apenas o direito de andar sozinha no escuro sem olhar para os lados… Ou talvez saibam que quando reclamamos de direitos básicos como o de estar sozinha, reclamamos metaforicamente e queremos mesmo é o mar inteiro, sem exceções ou cotas.

Com toda a sua sensibilidade e capacidade artística, Virginia Woolf foi praticamente forçada a deixar Londres para ir respirar ar puro. A petulância dos homens que nos querem bem não tem limites.

A má notícia é que se ainda flanar e andar sozinhas no escuro são ideias insensatas, quando poderemos estar no escuro? Quando, feito estátuas, ouvindo nossa própria respiração ao fazer nada dentro de uma rua perigosa (para quem?), uma praia sem esquinas para se esconder (de quem?) poderemos apenas estar? Estar. Paradas, sem andar, sem flanar, sem movimento, sem destino.

Sinto uma urgência em auxiliar a propagação do debate sobre o nosso direito de flanar e estar. Flâneur, palavra masculina feita de independência, flair, privilégio intelectual de explorar mundos. Não há necessariamente uma versão feminina da palavra. Flâneuse, muitas vezes, está associada à mulher de rua, sem casa, pobre e sem abrigo. Um vagabond não é o mesmo que uma vagabunda.

Talvez a boa notícia, já que não gosto de espalhar pessimismo apenas, seja a possibilidade escrever e pensar sobre o assunto. Talvez seja o espaço que não existe, mas que criamos para escrever, criar, pesquisar e divulgar nossos cenários, pontos de vista quando é dia ou noite funda.

Enquanto aprecio e desejo a oportunidade de debater em companhias estimulantes enquanto caminho e penso em filósofos gregos, desejo mais profundamente poder viajar, explorar cidades, estar sozinha como se fosse um homem.

Nara Vidal é mineira e escritora. Vive na Inglaterra desde 2001.

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