Eu rebolo, tu rebolas…

Betina dos Santos Ruiz reflete sobre o rebolado.

Juliana de Albuquerque
Revista Pasmas
4 min readMar 21, 2019

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por Betina dos Santos Ruiz*

Eu rebolo, tu rebolas.

Flexões que não me saem da cabeça, de uns meses para cá.

Foi há dias.

Antes de fazer a primeira pergunta eu não pensei que esta levaria a conversa aos clichês. Nem além deles. Estava só ensaiando verbalizar em voz alta uma impressão muito pessoal sobre o corpo feminino, meu corpo.

O que eu perguntei de supetão ao meu namorado era se ele já tinha pensado em rebolar. E a pergunta saiu tão diretamente de mim até ele quanto o que você acabou de ler.

O cuidado do meu namorado para comigo implica, muitas vezes, repetir devagar o que eu lhe digo, dando mais algum tempo a ele ou a mim (eu não sei bem). O expediente tem evitado vários atritos desnecessários, é verdade. Nós ouvimos, nós encontramos um arranjo melhor para as palavras e a troca entre nós avança, amorosa.

Tensa e tímida — porque eu talvez estivesse revelando na conversa com ele um desejo não assumido — agarrei o truque da repetição e reformulei a pergunta que, então, passou a ser: “- Você já rebolou, João?”.

O João é português. Devagar com o andor! É português de Viseu — cidade que fica quase à mesma distância do Porto e de Coimbra. Gosta muito da cultura brasileira, tanto que não costuma perder uma única oportunidade de me pôr a falar sobre a língua usada no Brasil, na língua do Brasil! Naquela hora, a pé a caminho de um restaurante de ambiente formal e silencioso, vestida com discrição, eu esqueci que para um cidadão português “rebolar” é rolar no chão de um lado para o outro.

A atriz Leila Diniz em Ipanema (Foto: Evandro Teixeira)

Pois é. Ria se quiser, à vontade. Também para mim soou estranho quando eu constatei esse uso da palavra, anos atrás. Mas aqui é assim! E assim foi que ele não percebeu de onde vinha a minha curiosidade sobre a relação dele com o rebolar. Devia estar difícil visualizar o que eu perguntava.

Em frente! Não sinto pressa de contar a fantasia que um homem nada previsível tem acerca do rebolado, por isso cabe neste ponto um desvio autoexplicativo.

Eu sei que não sou a Gisele Bündchen (só ela é! Só ela precisa querer ser Gisele Bündchen). Não afirmo uma coisa dessas em nome dos padrões de beleza em que não me enquadro, ainda que eu realmente tenha outra estatura, outro peso, outra pele, outro cabelo, meus; o fa(c)to é que eu, uma pessoa bem diferente da Gisele, dei para caminhar pelas calçadas da cidade portuguesa de Guimarães com gosto por aquela gingada dela, aquela gingada tão específica! É mesmo boa a sensação! “Sabe tão bem rebolar”, diria (dirá?) o João em português europeu…

Deve ser a Kundalini! É o que me ocorre dizer agora. Ou deve ter vindo das aulas de Tai Chi… O grupo de mulheres com quem pratico ri enquanto treina a marcha do Tai Chi, a leste dos métodos tradicionais para aprender o movimento lento e harmonioso que é base de outros movimentos e outras posturas nessa arte. De tanto percorrer a sala onde treinamos aos domingos de manhã, fazendo a transferência de peso, no sobe e desce de pés e de pernas, a gingada da Gisele me ganhou e eu ganhei a rua com ela.

Porque eu passei a sentir, fluindo dentro do meu corpo, uma energia que impele para esse rebolado, quando eu caminho leve, quando eu caminho entregue, consciente de que como mulher meu corpo distribui maravilhosamente seu peso sobre um eixo vertical.

Não é samba. Não é desfile de moda. Não é propriamente marcha. Nem é ginástica pura.

É manifestação do feminino, é da natureza feminina, da modelagem feminina, de onde homens também podem beber. Ah, isso sim. Sem dúvida que é um prazer do espectro da mulher, eventualmente partilhado. Se eu vejo um homem experimentando rebolar, eu o compreendo até a raiz do cabelo e me sinto capaz de gabar a sua performance. É delicioso rebolar, caramba, sendo mulher no conjunto ou não, sendo mulher desde o nascimento ou não!

É um gozo interno que deve aflorar, vindo do trânsito fluido entre cada um dos chakras ou centros de energia. É um privilégio saber disso e exercitar esse rebolado. Até parece que o verbo “rebolar”, no uso que o falante europeu lhe dá, tem uma pista muito valiosa sobre o poder que o ato empresta ao ator: quando eu rebolo eu me relaciono com o solo, pois eu trago da base, eu trago do chão uma energia e tanto. E ela é útil sobretudo para as mulheres que se veem impelidas a aceitar críticas alheias e a racionalizar em excesso. O abandono do corpo à própria sabedoria é uma benção! Há-que desfrutar, não é mesmo? Eu me sinto cada vez mais inclinada a evitar culpas, a evitar sobrecargas, a evitar pensamentos fixos e tudo o que segura ou bloqueia o meu caminho. O rebolado, não… o rebolado é uma forma minha de seguir caminho, está em mim mais do que uma ideia “comprada”. Move de dentro para fora, me atravessa. É do que eu preciso, neste momento, é um prazer que eu compartilhei com o meu namorado, sem no entanto dar de bandeja, porque está caminhando dentro de mim.

Não é bem o mesmo que dizia Vinicius de Moraes (“… beleza é fundamental”), mas o rebolado está na ordem do fundamental, do vital, feito discreta ou escancaradamente. Espero, aliás, que você rebole ou aspire rebolar em público.

O meu namorado rebola? Afinal o meu namorado quer rebolar? I hope so. For the sake of our love. Amém.

Ele disse que ainda não tentou. Mas ficou tentado. Aguardo as cenas dos próximos capítulos!

Betina dos Santos Ruiz é doutora em literatura comparada pela Universidade de São Paulo (USP).

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