Romina Yurenko

Revista Pasmas
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5 min readApr 26, 2021

A incrível aventura do mineiro Berêncio junto à espionagem soviética

Por Ubirajara Rancan

Russo-italiana, quatro línguas na bagagem, Romina Yurenko era para uns o símbolo de um revival, e, para outros, o emblema de um passado em extinção.

Tempos de glasnost e perestroika, os que trabalhavam naquele exemplo de arquitetura neostalinista do Boulevard Lannes — havia doze anos sede da Embaixada soviética em Paris — faziam das tripas coração para manter as aparências, inclusive no que se referia à rubrica “espionagem”. Assim, se a estonteante camarada Yurenko passava por espiã, tanto melhor!, embora ela fosse, de fato, somente a filha mais nova de um velho burocrata moscovita, que, recém-viúvo, queimara os últimos cartuchos da sua influência política, enviando a caçula para uma temporada como assistente do adido cultural soviético na França. Diante do futuro temeroso, o cioso genitor desejava era um vantajoso matrimônio para sua querida Anya [nome que, recusado pela mãe, sempre lhe dera] — e, por extensão, para si mesmo.

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Na própria Embaixada, não eram poucos os que a tomavam pelo que, não o sendo, ela parecia, mais do que só lembrar, efetivamente ser; já no território da contraespionagem — local e de países da Aliança Atlântica — , eram muitos os que, aguardando um movimento seu, vigiavam-na com a esperança de, além de a surpreender com a boca na botija, reunir ofício e prazer, numa autêntica confirmação de que “a vida imita a arte”, ou pelo menos o cinema.

Vítima da avaliação precipitada de tantos candidatos a “Bond. James Bond”, Romina, sem o querer, insuflava as perspectivas com que era regularmente monitorada. Fosse por não fazer contato com os alvos de praxe — o que levava à suspeita de a sua mira visar os figurões — , fosse por seus passeios regulares no Bois de Boulogne, a dois passos da Embaixada [quando às vezes conversava com um ou outro], ela tornara-se, havia mais de ano, o centro das atenções de alguns dos principais serviços de espionagem e contraespionagem em Paris.

Ignorando completamente as elucubrações profissionais de toda essa gente, mas atento à beleza que flanava no Bois pela hora do almoço, Berêncio Lampréia, mesmo não tendo porque estar ali três ou quatro vezes à semana, fizera daquele parque o recanto preferencial do seu modesto déjeuner. Em meio à baguette, à cerveja, ao cigarro, o encanto de Anya não lhe passara despercebido.

Numa linda tarde de fim de verão de 88, agastado com tanta notícia ruim do Brasil — hiperinflação, escassez de alimentos, o conterrâneo governador a dizer que em Minas não faltaria carne bovina, nem “porquina” — , Berêncio, sem a perceber que se aproximava, lança abruptamente o Monde, o Pariscope, o resto da sua baguete no cesto ao lado do banco do qual já se levantava. Vendo-o assim irritado, a moça — que nunca lhe dirigira a palavra — indagou-lhe, entre receosa e solidária: “Des mauvaises nouvelles?…

Sem estar à cata de interação social, Anya tencionava aperfeiçoar o seu francês, sobretudo o sotaque; dando-se conta do engano que acabara de cometer, despediu-se polidamente daquele estrangeiro, sem nem mesmo saber de onde procedia ele. Na verdade, não tendo se apresentado entre si, eles trocaram algumas poucas frases durante a ligeira convivência que os dispôs naquela zona de falsa intimidade regida pelas règles de politesse.

Mas tudo de que precisava Berêncio era de um simplório acaso. Sem nenhuma afobação, deu tempo ao tempo. Passando a cumprimentá-la, sorria-lhe às vezes. Da sua parte, pouco exitosas as tentativas de aproximação linguística com os nativos, Anya registrou cumprimentos e sorrisos. Não indo ao Bois por conta deles, sabia que ao menos isso encontraria por lá.

Se ela registrara esse avizinhamento à distância, o mesmo fizeram os que a seguiam, ou que já os observavam. Contudo, sem presença nos registros documentais da contraespionagem, o contato de Romina Yurenko não pôde ser identificado. Ninguém o conhecendo, não se sabia a serviço de que país, ou países, ele estivesse. Feita a descoberta, a identidade de Berêncio causou inda mais perplexidade do que a surpresa inicial sobre quem fosse aquele novo agente: por que diabos um brasileiro e uma agente soviética interagindo um com outro em Paris?

Alheios a essas representações, Anya e Berêncio já se sentavam juntos no mesmo banco, reconheciam-se mutuamente como estranhos um ao outro, e, com o passar das semanas, cada vez mais como menos estranhos entre si. Embora um já soubesse o nome do outro, de que país provinha e o que o trouxera a Paris, tratavam-se formalmente, cumprimentando-se com um leve, discreto aperto de mãos. Certa vez, Romina comentou sobre uma soirée musical na Embaixada soviética. Mostrando-se sinceramente interessado [fora um bom violoncelista amador], Berêncio ganhou dela um convite para a apresentação. Pensando que a encontraria, somente a viu, de longe. Acenando-lhe, não foi correspondido.

Acabado o concerto, foi-se embora macambúzio. Mas o experiente quarentão precipitava-se ao avaliar negativamente aquele suposto desencontro. O que lhe soara como confirmação incontestável de polidez exagerada, até humilhante, revelou-se uma estratégia que, parecendo levar a pique as artimanhas de um só, terminaria por fazer convergir duas vontades condizentes.

Anya queria observá-lo, à distância e em terreno próprio, dando a si a oportunidade de tê-lo como presa sua, a ele a ocasião de, pelo encantamento da circunstância, pelo fausto ambiente, pela arte que emanava de músicas e músicos russos, aprender a conhecer algo do seu mundo, valorizá-lo e valorizá-la na proporção devida.

Passada uma semana, nada de se encontrarem. Romina mantinha horário, banco, postura. Ensimesmado num inverno pessoal, Berêncio negava-se a retomar o lugar cativo. Na metade da semana seguinte, cedeu. Passados 20 minutos da hora em que habitualmente se encontravam, deu-se por definitivamente derrotado. Sem nem sequer um mísero jornal que atirar abruptamente no cesto de lixo mais próximo, murmurou alguma coisa que só um outro mineiro para decifrar, e prosseguiu.

Chegado à rua, Anya vem ao seu encontro. Sorrindo-lhe como se o conhecesse havia exatos 73 dias — e, de fato, eles se conheciam havia exatos 73 dias — , abre-lhe os braços como se, íntimos, não se vissem havia muito tempo — e, de fato, eles não se viam havia exatos 11 dias — , e, em vez de um cerimonioso: “Comment allez-vous?”, abraça-o e beija-o. Só depois de findo o longo cumprimento, diz-lhe: “Tu vas bien?” — ao que ele, num perfeito mineirês apaixonado, redarguiu: “Uai sô…”

Tendo acompanhado o desenrolar do duplo descompasso — a ausência de um e a presença de outro; a aparente frieza do comportamento de Anya diante da falta de Berêncio por mais de uma semana, o desespero dele pela falta dela num único dia — , a contraespionagem de plantão — já agora uma verdadeira junta internacional — , vendo-os que se abraçavam e se beijavam, não teve dúvida: ela conseguira não só o seduzir, mas o subjugar completamente!

Até a inteira dissolução da União Soviética, três anos depois, aqueles contraespiões — não sem despeito pelo mineirinho de Arraial do Tejuco — ainda se reuniam no Bois [já não mais frequentado por Anya e Berêncio, que mergulhavam no quarto inverno comum] para discutir sobre qual o objeto da inusitada relação que um dia juntou uma “agente” soviética e um “agente” brasileiro.

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