Artes visuais e feminismos: gerações e geografias

Marcia Tiburi
Passagens
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4 min readMay 21, 2017

Roberta Barros

Performance de Roberta Barros

O conceito de central-core-imagery, delineado em 1973 pelas artistas da costa oeste norte-americana Judy Chicago e Miriam Schapiro, nasceu da pressuposição de que era chegada a hora de o objeto passivo de representações cunhadas por mãos masculinas durante séculos na cultura Ocidental — a mulher — reivindicar o poder de representar, expor e sexualizar seu próprio corpo. Também em consonância com o processo de empoderamento feminista por meio da politização da vida privada, tão caro às práticas militantes do final da década de sessenta e início da década de setenta, as mulheres da body-art experimentaram a tática da auto-exposição da nudez sensualizada, colocando ênfase extrema nessa exposição da intimidade na esfera pública para marcar os aspectos políticos do corpo. Seja por meio desta ou daquela estratégia, para a maioria das artistas feministas do referido período, para as quais o ativismo era o foco de suas agendas, foi crucial encarnar o sujeito feminino publicamente, movendo-se sob a bandeira “o pessoal é político”.
Logo, logo, tais investidas supostamente subversivas foram ligadas à tradição histórica do culto do eu na arte por meio da leitura taxativa fixada pelas críticas feministas pós-modernistas (o chamado feminismo antiessencialista) e, então, condenadas como estratégias reacionárias. As artistas Laura Mulvey e Mary Kelly se uniram à teórica Griselda Pollock para elaborar uma árdua crítica à body art e às performances das décadas de sessenta e de setenta. De forma generalizada, essas linguagens artísticas foram acusadas de, paradoxalmente, ratificarem os estereótipos que colocam a mulher como objeto de prazer para o olhar masculino.

Assim, na década de 1980, as práticas feministas dominantes passaram a empregar instrumentos mais explicitamente teóricos para colocar a feminilidade como um construto cultural que deveria ser desconstruído mais do que reiteradamente encenado. Como se amigava à crítica ao modernismo greenberguiano e como tratou de se “vestir” de modo “adequado”, com um “viés abstrato e elaborado” que garantia o devido distanciamento do sujeito encarnado e desejante, tal discurso feminista pós-modernista acabou por alcançar o respeito da academia e da instituição de arte, ambas instâncias consideradas de domínio dos homens. Consequentemente, essa linha teórica
fortaleceu-se na Inglaterra, primeiramente, e nos Estados Unidos cada vez mais a partir da década em questão.
Por outro lado, perversamente, tanto a academia quanto a instituição de arte tomaram, por exemplo, as quatro mulheres artistas mais celebradas da década de oitenta e logo reduziram seus “rótulos” de feministas pós-modernistas. Então, por efeito do argumento silenciosamente penetrante de que seus trabalhos “transcenderiam” a suposta estreiteza da moldura “feminismo”, Sherrie Levine, Barbara Kruger, Jenny Holzer e Cindy Sherman tornaram-se apenas pós-modernistas. Quanto à produção dos anos de 1970, não se suprimiu a característica de terem declarado explicitamente seu engajamento às pautas feministas de seu tempo. Pelo contrário, ganhou projeção, inclusive no Brasil, uma interpretação reducionista dessas obras que tratava de supor e, ao mesmo tempo, propor uma espécie de semiologia na qual determinados signos — a vagina, na maior parte dos casos — já estariam automaticamente codificados e engessados como “agressivos” e, portanto, como “arte feminista”.
Consequentemente, se até o início dos anos 2000 era bastante raro artistas brasileiras apresentarem imagens orientadas pelo conceito de central-core-imager you pela tática da auto-exposição da nudez sensualizada em seus trabalhos, sedimentou-se um entendimento de que não haveria arte feminista em nosso país.Aparentemente, tornou-se comum justificar tal entendimento com a ideia de que o campo das artes plásticas brasileiras não foi acometido pelo mal da discriminação sexual, diferentemente, por exemplo, do que ocorrera nos Estados Unidos: enquanto os norte-americanos construíram seu Expressionismo Abstrato com nomes masculinos, aqui, diferentemente, Lygia Clark e Lygia Pape estão entre as figuras mais marcantes do Neoconcretismo; e, para voltar ainda mais na história, Tarsila do Amaral e Anita Malfatti, do Movimento Antropofágico.
Criou-se, portanto um mito que parece ter provocado grande desconforto no que diz respeito à aproximação das palavras arte e feminismo no nosso campo das artes visuais,de modo que as produtoras de arte no Brasil, mesmo na década de 1990, bem como na contemporaneidade, continuam recusando a sustentação pública e aberta deseuengajamento nas lutas feministas.Por que não há a mesma sensibilização a respeito da temática feminista nas artes plásticas no Brasil, ainda que qualquer sobrevoo aleatório
sobre coleções privadas e acervos públicos de arte brasileira revelem a desproporção numérica aguda entre homens e mulheres que se inseriram e se consolidaram historicamente em nosso circuito de arte? O que é arte feminista, afinal? Quem tem medo de ser feminista?Quem tem medo de feminista?

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