Blitzkrieg neoliberal — mais um ataque

Rubens R R Casara
Passagens
Published in
7 min readMar 29, 2017

Por Augusto Jobim do Amaral[1]

O desmantelamento neoliberal iniciado a partir dos anos 1970 e que, no Brasil, teve seu primeiro impulso, nos anos 1990, pós-redemocratização, hoje se apresenta ostensivamente com todo seu ardil e cinismo. Aprovada a EC 241 que congelou os investimentos sociais em 20 anos (talvez a maior condenação social atribuída ao Estado Brasileiro em sua história), desmantelado o Fundo Social do Pré-Sal, bem como o seu controle pela Petrobrás, o Blitzkrieg neoliberal avança com a redução de programas sociais consagrados internacionalmente e a reconfiguração do modelo educacional que não cessará de produzir funcionalmente mais “capital humano” para as peças do mercado. É o momento de executar a previdência e os direitos dos trabalhadores.

A dominação e ataque políticos a um arremedo de Estado de Bem-Estar parcamente conquistado claramente estão dispostos. Aquilo que genericamente poderíamos chamar de um processo de acumulação econômica desenfreada pela expropriação da mais-valia absoluta, noutros termos, ganha capítulo fundamental atualmente, através do instante da intensificação dos regimes de trabalho e de redução de salários. Chamemos eufemisticamente de “reforma trabalhista”.

No Brasil, as táticas políticas se adéquam ao contexto, mas não dispensam a falácia de enfrentamento do desemprego e do impulso à economia, sem acenar jamais em reduzir a margem de lucro de quem realmente é responsável pela quebradeira atual: os gastos do governo com os juros da dívida pública, quer dizer, dinheiro extorquido pelo sistema especulativo financeiro. Mas alguém deve pagar a conta e sabemos sobre o lombo de quem recai a fatura. Todavia, a coragem de algum Nosferatu jamais se dará às claras. Antes mesmo de se conjugar aos seus cúmplices parlamentares, não deixará de buscar coragem em representantes bem conhecidos do seu quadro representativo judicial: as figuras, no STF, do Ministro Gilmar Mendes e, no presidente do TST, de Ives Gandra Martins Filho, saberão dizer o quanto.

Assim, de forma objetiva, o quadro geral apresenta-se através de duas estratégias muito claras em termos trabalhistas: quanto à negociação coletiva, os acordos devem valer mais que os termos da CLT (admita-se que já é tendência de recentes decisões do STF e do TST pelos atores políticos já referidos) e, principalmente, a terceirização, com a permissão de fazê-la em quaisquer atividades de uma empresa.

Desengaveta-se o PL 4.302/98, apoiado pela FIESP e CNI, aprovado na Câmara em 2000 e pelo Senado em 2002 (como aí sofreu alterações, precisa agora apenas ser votado mais uma na Câmara para ir direto à sanção presidencial), prevendo a subcontratação de empregados em caráter permanente para qualquer atividade (urbana ou rural, pública ou privada), inclusive para a área fim da empresa, como notável forma de eximir as empresas de encargos sociais com seus trabalhadores e, por óbvio, desintegrar a estrutura sindical. Nem precisamos ir a outros países para dizer que, com iguais práticas, houve um rebaixamento sistêmico nos salários (com impacto na arrecadação de impostos) e uma enorme elevação de subempregos. Por aqui já se sabe que ¾ dos trabalhadores acidentados são terceirizados e que possuem vencimentos quase 25% menor que os efetivos.

Ademais, quanto ao trabalho temporário, o projeto amplia de 3 para 9 meses o limite desse tipo de contrato, anuindo no seu prolongamento mediante acordo ou convenção coletiva. Ainda, a jornada de trabalho, que hoje é de 8 horas diárias sendo remuneradas as horas extras, sofrerá profunda alteração: sem parâmetros claros definidos do que seria horário regular ou trabalho extraordinário, será permitido que horas antes tidas como extras sejam incorporadas à jornada normal sem pagamento de adicional. Não esqueçamos a previsão sobre as remunerações por produtividade que, por acordo, mascarariam a desobrigação dos empregadores a pagar o piso de categorias e até mesmo o salário mínimo. Em suma, jornadas maiores e menos tempo em suas ocupações.

Não obstante, o escracho chega ao limite ao aduzir que os contratos em vigência, sob acordo (sempre presente a abstração tacanha de paridade de condições de negociação num país em que nem mesmo o direito de greve é solidamente assegurado), poderão ser adequados aos termos da lei. Em bom português: o negociado acima do legislado.

Por sua vez, a retórica a alimentar a necessidade de se revisarem direitos trabalhistas não deixa de apontar falaciosamente a defasagem legislativa brasileira que frearia a dinâmica empresarial e as contratações no país. Não é o que o comportamento do mercado de trabalho neste século aponta: de 2001 a 2014, 22 milhões de pessoas arrumaram ocupação, a renda mensal subiu 28% em termos reais, o número de empregados com carteira assinada passou de 45% para 57%, entre 2004 e 2014, e a desigualdade caiu.

Não será necessária muita percepção para se atentar que tais reformas nada têm a ver com preocupações éticas, tampouco a crise econômica. São os atávicos movimentos de concentração de renda no Brasil é que anunciam o novo choque neoliberal, de uma elite que historicamente se apropriou dos recursos do Estado alheia à miséria de quem realmente produz a riqueza nacional.

Nem que seja por decência ou por sopesar alguma vergonha que nos reste, é preciso ir às raízes. Diga-se diretamente, sob pena se não aduzir o que realmente importa. A ode ao “ideal empreendedor se si” que ancora a racionalidade neoliberal, após ser internalizado e apropriado também como lógica pulsional — não esqueçamos que o neoliberalismo é, além de um regime de gestão das trocas econômicas, fundamentalmente forma de produção de vida — e que agora aparece estampada nas “reformas” não apenas no Brasil, investe literalmente não mais numa moralidade repressiva do trabalho nos moldes de uma ética protestante, mas num modelo calcado claramente em “identidades flexíveis”.

De alguma forma, a inteligência está em perceber o quanto este estado de coisas neoliberal assimilou a crítica de algumas forças anticapitalistas contra a disciplina do trabalho enquanto parâmetros de uniformização disciplinar. Quer dizer, a crítica ao espaço de rigidez controlado de alienação “taylorista” deu lugar aos auspícios da “maior flexibilidade nos horários e ritmos” de “seres autônomos, livres, não submetidos à autoridade de um chefe”. Eis o canto da sereia que permeia os discursos das reformas hoje e que chegam reforçados atualmente ao Brasil. Segurança e estabilidade são vistas, neste novo ethos do trabalho, sobretudo, como covardia moral do indivíduo, afinal você “S.A.” estará sempre em dívida, insuficientemente esforçado por não se entregar ao trabalho como deveria: o fracasso recorrentemente presente na incitação vertiginosa à autoexpressão de si. A moldura legislativa que tenta se implementar e fazer funcionar a “precarização”, para além de todo o resto, apenas é a cristalização de afetos refletidos em tais “identidades flexíveis”.

Ao “homem-máquina”, por óbvio, não eliminado neste contexto — a exploração profunda em moldes clássicos continuará (com o aumento do PIB, redução do valor da hora de trabalho paga e o aumento das jornadas de trabalho) — a ele se associam novos dispositivos disciplinares de engajamento mais profundos (auxiliados é claro legislativamente) que sofisticam a obediência mecânica e trazem a forma da motivação e da “flexibilidade” como o desenho do “empreendedor”. Se a nova liturgia da gestão toma conta de todos os escaninhos da vida, ela não abrirá mão de se lançar sobre regras legislativas, vistas como representação de um discurso social que impele à eliminação de tudo que não possa ser absorvido pela forma-mercadoria, ou seja, conduzido pelo fluxo mercantil sintetizador de toda qualidade humana em quantidades intercambiáveis e aniquiláveis.

Ler os atuais movimentos de reformas, tanto trabalhista quanto previdenciária, deve imperativamente passar por esta análise, retratos bem definidos que são do “ideal empresarial de si”, ou seja, da formalização da sociedade sob a base do modelo empresarial. Portanto, numa “sociedade do desempenho”, um poder público apenas poderá se tornar viável por instrumentos legais que assegurem a “precarização” das relações de exploração do valor do trabalho, solapando os parcos cantos de resistência de direitos e garantias consagrados na CLT e na CRFB. Exercício que a gramática da eficiência e da competitividade facilmente se inscreverá avalizada por qualquer tribunal econômico (nada metafórico) que tome conta. Novidade alguma: assumem-se os valores do mercado a colonizar a política e suas instituições.

Vê-se hoje, em contornos bem nítidos, que os múltiplos modos de governabilidade dispostos entre indivíduos e governo, aparentes no atual espetáculo do desmantelamento implementado pelo governo golpista no Brasil, são apenas tradução da “nova razão do mundo” tão enraizada como nunca em nosso cenário psicopolítico. Campeiam os arautos da “otimização da produtividade” e da “maximização das performances”, com o mínimo de atrito, ao menos sob o aspecto de uma suposta liberdade contratual. Neste contexto de empuxo à intensificação da produção de coisas fungíveis e, por suposto, de destruição de qualquer objeto (inclusive humano) que atrapalhe este fluxo, o trabalhador nada mais é que mero suporte do processo de produção do valor. Trabalhador coisificado e mensurável financeiramente como custo na engrenagem. Muito mais que uma regulamentação legal, estamos testemunhando a própria normatividade interna do capitalismo atual, em mais um capítulo no seu esforço contínuo de acumulação e desempenho.

Enfim, a “flexibilização” das relações trabalhistas e previdenciárias vão demandar uma rígida adequação legal que garanta não mais qualquer resquício de alguma rede de seguridade social, mas a ampliação do espaço econômico. Clareira aberta dentro da qual caberá apenas aos trabalhadores assumir e enfrentar riscos. Com este quadro, em que o sujeito neoliberal apenas se apresenta como um agente de cálculo e enxerga a vida como imenso campo de caça (chama isso de concorrência), natural que requeira do Estado apenas as condições para desdobrar sua violência, ou seja, tradução da radical violência de sua razão em “flexibilidade normativa”. Que a luta responsável não dispense jamais a atenção, na biopolítica das sociedades capitalistas contemporâneas, das estratégias de regulamentação deste modo empresarial da experiência.

[1] Augusto Jobim é professor do Programa de Pós-Graduação em Ciências Criminais da PUCRS e professor convidado da Passagens — Escola de Filosofia.

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