Marcia Tiburi
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4 min readMay 30, 2017

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Foto: Midia Ninja

Guerras culturais, polarização, direita e antipetismo

Esther Solano Gallego, UNIFESP

Durante os últimos dias do mês de março tiveram lugar em São Paulo duas manifestações que levaram às ruas em menos de uma semana os grupos que durante mais de um ano têm protagonizado os protestos a favor e contra o impeachment de presidente Dilma Rousseff. A organização destes dois eventos em tão curto espaço de tempo fez com que fosse interessante a aplicação de um survey para comparar os grupos presentes em ambas as manifestações.[1] Na primeira foram realizadas 512 entrevistas, com margem de erro máxima com 95% de confiança de 4.3% e na segunda 442 entrevistas, com margem de erro máxima com 95% de confiança de 4.7%.

Com o intuito de medir o impacto das guerras culturais (centralidade das pautas morais na política) nos grupos mobilizados, construímos um questionário que incluía as principais pautas do debate brasileiro atual que definem os grupos progressista e conservador e com a formulação como são apresentadas nos dois campos em disputa.

- Campo conservador: Precisamos punir os criminosos com mais tempo de cadeia, A pena de morte deve ser aplicada para punir crimes graves, Menores de idade que cometem crimes devem ir para a cadeia, O cidadão de bem deve ter o direito de portar arma, Os direitos humanos atrapalham o combate ao crime, O lugar da mulher é em casa cuidando da família, A união de pessoas do mesmo sexo não constitui uma família, Fazer aborto é sempre errado, As escolas deveriam ensinar valores religiosos, Os valores religiosos deveriam orientar as leis, O bolsa-família estimula as pessoas a não trabalhar

- Campo progressista: Fazer aborto deve ser um direito da mulher, Não se deve condenar uma mulher que transe com muitas pessoas, Cantar uma mulher na rua é ofensivo, A mulher deve ter o direito de usar roupa curta sem ser incomodada, Os negros ainda sofrem preconceito no Brasil, A polícia é mais violenta com os negros do que com os brancos, Cotas são uma boa medida para fazer com que os negros entrem na universidade, Dois homens devem poder se beijar na rua sem serem importunados, A escola deveria ensinar a respeitar os gays, Travestis devem poder usar o banheiro feminino, Deveria ser permitido aos adultos fumar maconha

Os manifestantes de dia 31 apresentam um perfil muito coeso, tendo um grande número de entrevistados que respondeu o questionário exatamente da mesma maneira. Já os do dia 26, apresentam uma unidade menor que se constrói em base ao discurso punitivo (82.6% apoiam o aumento de pena para punir criminosos, 84.6% apoiam a redução da maioridade penal) a rejeição aos programas sociais e de redistribuição de renda caraterísticos das gestões petistas (82.2% pensam que o Bolsa Família estimula as pessoas a não trabalhar, 75.2% pensam que as cotas não são uma boa medida) e, fundamentalmente, no antipetismo.

Antipetismo e antipolítica

A dispersão nas respostas dos entrevistados presentes na manifestação pelo apoio à Operação Lava Jato quando comparada com a coesão dos manifestantes de dia 31, nos leva a levantar a ideia do antipetismo como fator de formação de identidade destes grupos.

A manifestação de dia 26 de março convocada na Avenida Paulista tinha um conteúdo altamente heterogêneo construído ao redor de vários grupos e diversas pautas. Vem para a Rua, Movimento Brasil Livre, Partido Novo, Movimento de Restauração da Monarquia no Brasil, assim como diversos grupos militaristas. As pautas ocupavam também um amplo espectro: aquelas relativas à luta contra a corrupção (apoio à Operação Lava Jato e fim do foro privilegiado) as referidas à reforma política (contra a lista eleitoral fechada, contra a ampliação do fundo partidário público) até a volta da monarquia, a retomada do poder pelos militares ou o fim do estatuto do desarmamento e pautas de corte liberal (apoio a reforma da previdência e trabalhista e privatizações) No meio a esta diversidade, um dado chama a atenção. Os vários carros de som presentes na Avenida Paulista estavam bastante esvaziados, incluindo o do Movimento Brasil Livre que focava seu discurso em apoio a pautas privatizantes e de Estado mínimo. O carro de som que mais aglutinava manifestantes, com uma grande deferência quantitativa, era o do Vem para a Rua centrado nas pautas anticorrupção e cujo lema era “faxina geral”.

Esse fato nos leva a apresentar nosso segunda resultado. Para o grupo manifestante do dia 26 de março, que se define majoritariamente de direita (31.4%), centro-direita (17.4%), e conservador (47.3% muito conservador, 34.4% pouco conservador) e que respondeu ao questionário de forma muito menos coesa que o grupo de dia 31, o discurso antipetista é o grande fator de coesão e identidade: 84.8% se definiram como muito antipetistas. Definimos aqui um populismo de direita no sentido de Laclau que utiliza o antipetismo como conceito aglutinador

Por outro lado, se nas primeiras manifestações de 2015 o antipetismo era o elemento mais evidente (embora já tivéssemos detectado entre os manifestantes uma tendência de negação da política tradicional em geral, mas que não era exposta nem evidenciada como o antipetismo) o discurso de negação da política tradicional no seu conjunto e rejeição do partido político aumenta sua visibilidade cada vez mais. Além do antipetismo, que aparece como grande fator de coerência, o discurso antipolítico, resumido no slogan “faxina geral”, do Vem para a Rua, está se transformando num importante fator de coesão para estes grupos. À pergunta “com qual partido político você se identifica”, 72.9% responderam que nenhum, seguidos por 11.7% que escolheram o PSDB e 6.8% o Partido Novo. Dados muito diferentes da manifestação do dia 31 de março na qual a maioria dos manifestantes se definiu de esquerda (83.0%) e não conservador (68.8% nada conservador, 20.4% pouco conservador) que era mais vinculada a partidos políticos onde 33.0% não se identificava com nenhum, 35.7% com o PT e 20.6 com o PSOL.

[1] Resultados completos: http://rawgit.com/pesquisaR/resultados/master/relatorio2.html (manifestação do dia 26 de março), http://rawgit.com/pesquisaR/resultados/master/relatorio3.html (manifestação do dia 31 de março)

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