Pequena apologia das oficinas de poesia

Rubens R R Casara
Passagens
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5 min readApr 25, 2017

Rafael Zacca

[originalmente publicado na revista Arte & Contexto]

Em 2012, o cheiro de aipim amanteigado e uma amiga filósofa tentavam me convencer de que era impossível ensinar a alguém a escrever poemas. Em 2009, eu fazia parte de um grupo de Letramento Literário tendo à frente um historiador e antropólogo que nos convidou a trabalho na favela de Acari. “Onde há vida, há inacabamento” Paulo Freire é uma ars poética por vir. Só é possível alfabetizar diante do reconhecimento de um analfabetismo maior. A, bê, cê… É possível ensinar a ler? Penso no tom direto e cortante de Pound, o epifânico inventor fascista. O primeiro livro publicado de Freire foi a Pedagogia como prática da liberdade; no Chile, vinha educando e lutando, ao lado do Movimento de Reforma Agrária da Democracia Cristã. Em 2001, eu tentava aprender melhor o nome das cores. Nunca reconheci por completo meu daltonismo, por isso não aprendi, guardei um choro por quinze anos, libertado pela experiência nomeadora da artista plástica Virgínia Mota. Não sei bem ler o que ela me disse. “Na solidão de indivíduo / desaprendi a linguagem / com que homens se comunicam”. Não, não é bem isso.

Não há muitas bibliotecas ou livrarias nos principais bairros em que passei a minha infância, entre a zona norte e a zona oeste do Rio de Janeiro. Méier, Vila Valqueire, Senador Camará… O primeiro livro a que tive acesso, depois da bíblia (os livros da escola não contam, eu sempre colei nas provas de literatura), foi O Livro de Ouro da Mitologia. Por causa dos Cavaleiros do Zodíaco. Do livro, roubei meu primeiro poema; uma cópia para impressionar a namorada, também exilada das estantes. Não me lembro de sua reação ao ver seu nome figurar ao lado de epítetos greco-romanos. Alguns anos depois, li biografias que contavam sobre como poetas liam Rimbaud aos 13 anos, e filósofos participavam de grupos de estudo de Kant aos 14. Ubiratan[1], ex-aluno meu no Estado do Rio de Janeiro, em Irajá, afeito ao grotesco e à profusão dos detalhes, teria, uma vez dada a oportunidade, gostado do Inferno de Dante? Das algaravias de Waly Salomão? Teria concordado com Auerbach sobre o legado realista do cristianismo? E Geise, negra, lésbica, forte e extremamente sentimental, teria lido Sapho com entusiasmo? Teria gostado das traduções experimentais para o inglês e para a linguagem dos subterrâneos da autora grega feitas por Anne Carson? A questão não é essa, é mais grave.

Um amigo filósofo entrou em crise depois de operar como mediador em uma de nossas oficinas. Quis jogar tudo para o alto. O reconhecimento dos pares o aliviou e deu sentido para a andança. Às vezes, manda notícias das transformações em sua prática pedagógica. Um refrão dos irmãos Campos: “A flor flore…” (continua). Na proto-história das oficinas, está o estabelecimento das guildas, na Baixa Idade Média. Funcionavam como uma espécie de espaço de convivência, aprendizado, com maior ou menor rede de proteção mútua. Com as oficinas, após a Revolução Industrial, a vivência entre artesãos, mestres e aprendizes se tornou, a um só tempo, necessária e obsoleta — mas nunca desapareceram por completo, é claro. Onde quer que haja ameaça, aí haverá oficinas. Quando crianças de uma mesma família se reúnem para discutir qual a melhor maneira de burlar as regras contra pais e mães, elas estão participando de uma oficina.

Sergei Tretiakov acreditava que existem dois tipos de escritores: o operativo e o informativo. O primeiro não apenas relata, como participa, não apenas engendra espectadores, mas combatentes. Precisamos falar de política porque o sistema das artes, já se disse, é uma espécie de Cidade-Estado, pólis infelizmente tomada por um sistema patriarcal e escravocrata. Na década de 1930, Walter Benjamin sugeriu que: “Um escritor que não ensina outros escritores não ensina ninguém.”

“…o colibri colibrisa…” (continua). Pensar o lugar do “intelectual” no processo produtivo. Penso que a amiga filósofa e que aquele aipim amanteigado falavam alguma bobagem pequeno-burguesa. Mas isso seria uma rima, não seria uma solução. Por que oficinas? Pode-se ensinar a alguém a escrever poemas, ou melhor, a ser poeta? O objetivo, a frieza, o cálculo e o saber são antipedagógicos. Foi preciso um poeta de mãos trêmulas e muito ódio à dominação (uma escola injustamente recriminada) para me ensinar a verdadeira calma na sala de aula. Um cuidado de artesão. As oficinas, desde então, têm ensinado algo sobre as relações sociais em geral. Penso também nos pagodes românticos. É a trilha sonora de minha proto-história com os livros, com os poemas. Em 2015, em um debate sobre Hannah Arendt, uma senhora torceu o nariz quando vinculei o sentimento em “Pequena Eva” ao prefácio de A condição humana. Quando contei da origem da canção, na Itália da Guerra Fria, um sorriso. Não, assim não se pode ensinar a escrever poemas. Ensinamos o medo; e, em um país colonizado, ensinamos o nojo, o spray de bom ar, a camuflagem do sotaque. Não, assim não se pode ensinar a escrever poemas. “…a poesia poesia”.

Menos do que perguntar se todos farão arte de qualidade e se o sistema das artes sobreviverá, é preciso perguntar o que significará tornar todas as pessoas colaboradoras em potencial.

Haroldo de Campos sonhava com um laboratório de textos. Penso meios de produção e na sua socialização. Vamos falar em relações literárias de produção. Uma amiga, em uma das oficinas que ministrei no Centro Municipal de Artes Hélio Oiticica, travou a mão, parecia não querer ou poder tentar o poema. De tudo, guardou a sentença: “não me faltam ideias, me faltam palavras”. Desde então temos pensado muito na presença do material. Falta o material a muita gente. Certa vez me impressionei com alguém que assistiu Paulo de Oliveira (vivido por Tiefenthaler, em Larica Total, no Canal Brasil) dizendo que, se não aprendeu a cozinhar, venceu o medo da cozinha. Uma pedagogia da autonomia, como em Paulo Freire. Não por acaso, Paulo O. ensinava uma cozinha de guerrilha. Que quer quem cultua o gênio antipedagógico?

Oficinas precisam engendrar autonomia. Oficineiros e participantes podem, aos poucos, ter as fronteiras apagadas — se não as funções, ao menos a constância de quem as encarna. Isso não se dá imediatamente; mas a tarefa se impõe de maneira imediata. “Ninguém é sujeito da autonomia de ninguém” — de novo, Paulo Freire. Uma poética por vir. Sócrates (penso naquele do Banquete, que aprendeu com a mediadora Diotima) foi um dos primeiros oficineiros. O espanto e a assunção da própria ignorância são fundamentais. É sobre o solo da falta de ar e da incapacidade de ensinar o outro que pode surgir uma pedagogia da escrita. Trata-se da explicitação de um processo do sistema das artes cujo ocultamento serviu para que determinadas classes se preservassem no poder do modo de produção literário. Os grupos que se sintam “sem uma cena”, na qual atuar, podem procurar seus pares e criá-la. Cultivar a palavra franca sobre seus processos e produtos, organizar debates, convidar outras pessoas para falar de seus trabalhos. O cuidado de si fomentado pela manutenção do coletivo poderá se mostrar valioso até mesmo para artistas ingênuos da arte pela arte. Por aqui, na oficina experimental de poesia, temos gostado da expressão “borracharia e lanternagem”. Achamos bem acertada.

[1] Os nomes foram trocados e são fictícios.

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