Um pouco de Lenio Streck

Rubens R R Casara
Passagens
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44 min readApr 22, 2017

PARTE DO LIVRO COMPREENDER DIREITO II — COMO O SENSO COMUM TEÓRICO PODE NOS ENGANAR — (6º. LUGAR PREMIO JABUTI — EDITORA REVISTA DOS TRIBUNAIS)

PEQUENOS EXCERTOS –

INTRODUÇÃO

O “azul resplendor” do Direito e os sentidos perdidos ou Porque no Direito faltam autocríticas e metalinguagens

O “achamento” dos argumentos

Cena 1. Streck e a literatura gauche-regional

Dias desses, meu livro O Que é isto — Decido Conforme minha Consciência? foi objeto de uma pergunta na prova escrita para o concurso da magistratura de Santa Catarina. Mais ou menos assim: o que se entende por pamprincipiologismo e solipsismo, segundo a obra do Prof. Lenio Streck? A questão provocou reações das mais iradas. Senti-me como um médico cubano chegando no aeroporto de Fortaleza. Sem dinheiro e… vaiado (pelos concurseiros). O pior ainda estava por vir. Nos recursos, consta que alguns candidatos argumentaram — parece que até junto ao CNJ — que “isso” de pamprincipiologismo e solipsismo era só coisa de um autor (no caso eu) e que, como eu era do RS, havia precedentes do CNJ no sentido de que não se podia utilizar literatura jurídica regional. Bingo. E é esse tipo de gente quer ser juiz… Está certo que o RS já esteve envolvido com a República Farroupilha e que queria separar do Brasil, como a própria querida Santa Catarina, então denominada, em parte, de República Juliana. Minha literatura seria regional… Fantástico, não? Estocar comida me parece ser a única saída. E vou lançar um manual para construção de bunkers. Mas um manual simplificado, porque se não a “casa cai”, se me entendem…

Cena 2, 3 e 4. O cão do Eike (que fala alemão), o Metrô de SP, os fiscais de SP etc

Deu na Folha de S.Paulo que desde o ano passado os executivos de Eike Batista já sabiam que as reservas de petróleo de seus poços poderiam ser 80% menores… Mas não informaram aos seus acionistas. Falando em Eike, ele tinha no seu conselho diretivo uma ex-ministra do STF (do Brasil e não do Togo) e um ex-ministro da Fazenda (do Brasil e não do Sri Lanka). Fora outros menos votados. Eike era “o cara”. Os grandes veículos de comunicação o celebravam. Seu cachorro falava alemão. Veio de avião da Europa para cá (o cachorro). Os colunistas sociais adora(va)m isso. Piolhos de ricos… Eike dizia que suas ações eram à prova de idiotas. Ele se referia, por certo, ao BNDES e às gentes do governo…

Já em São Paulo roubaram R$ 400 milhões do metrô e mais de R$ 500 milhões da prefeitura. Anos e anos. Como ninguém descobriu isso? Agora, além dos fiscais presos, estão investigando 42 auditores. Estariam faltando predadores “do bem” que combatam os “predadores do mal”? No ecossistema do crime, pode estar dando confusão… Afinal, por vezes os predadores já não sabem de que lado estão…Tudo parece tão confuso nessa pós-modernidade, pois não?

Cena 5. Uma questão epistemológica: o que é um especialista em crise?

Roberto Carlos é(ra?) contra que se escrevam biografias não autorizadas. Consta que contratou Mario Rosa, autor do livro A Era do Escândalo e que trabalhou para o grande filósofo contemporâneo Ricardo Teixeira, ganhador da Ordem-Grã-Cruz-Por-Serviços-Prestados-à-Pindorama. Rosa é consultor especializado em crises. Tudo bem, mas o que me intriga é uma questão “epistemológica”: o que é ser “especializado em crises”? O sujeito cria crises ou “apaga crises”? Que curso fez um sujeito para ser especialista em crises? Essas coisas me deixam cabreiro. Seria algo como o personagem cleaner, do filme PulpFiction? Ele chega ao local do crime e “limpa tudo”? (lembram da cena do personagem interpretado por Harvey Keitel, que interpreta o personagem “The Wolf”). Deixa tudo clean? Divirto-me com essas coisas. A propósito: com a crise provocada pelos black blocks, onde estariam os especialistas que deitam cátedra na Globo, chamados de “experts em gestão de crises”? A solução é estocar panos kleenex, para limpar resíduos de crise…

Cena 6. A “neuroeconomia no direito”: viva a ocitocina!

Esteve no Brasil o professor Paul Zak, conhecido como Dr. Love. Ele é um dos inventores da “neuroeconomia” (só esse nome já me dá “nos nervos”). O cerne dessa disciplina seria discutir as motivações de gastos e investimentos. E isto teria a ver com uma substância identificada com o amor e a moral, a ocitocina, que nos diz quando confiar e quando desconfiar, quando gastar e quando poupar — afirma o pesquisador. Seria uma espécie de “molécula moral” (sic). Por que os grandes filósofos da ética e da moral não pensaram nisso até hoje? O problema moral é… químico. Isso vai desempregar filósofos, psicanalistas e até… juristas.

Não coloco em dúvida a existência da tal ocitocina. Mas, por que ele não vende a ideia para os governos, que, em vez de gastarem em Copa do Mundo, poderiam gastar na construção de hospitais, pois não? Os governantes devem estar com uma baixa dose de ocitocina. Sugiro que os governos contratem o Dr. Love. Pronto: Zak para Ministro da Fazenda. Ou para o cargo de encarregado de compras. Junto, grandes doses de ocitocina. Já estou imaginando na campanha eleitoral: “Vote no candidato que tem mais ocitocina”. Logo, saberá poupar e gastar bem! E quem sabe boas doses de ocitocina para a equipe econômica do governo e os diretores da Petrobras? Como diz Paulo Kliass, “a única explicação que resta para se tentar compreender a aceitação do leilão do Campo de Libra é a visão estreita do curto prazo, a lógica pequena de fechar as contas no final do mês”. Faltou, pois, ocitocina.

Também poderíamos levar o Dr. Zak para o ramo da Justiça. Dr. Zak como magistrado, quem sabe? Como uma boa dose de ocitocina, poderíamos ter menos decisões solipsistas. As decisões não mais dependeriam do (bom ou mau) humor do julgador. Um magistrado, em decisão de colegiado, não mais diria em três decisões seguidas que para ele “dar” dano moral, necessita ver provada a intenção de causar dano e, na quarta decisão, trocar de tese, sob o argumento de que “cada caso é um caso” (ou seja, dependendo de quem é a parte, muda a “régua da lei”).

Cena 7. O que seria isto — a virada linguística?

Em recente artigo publicado na ConJur, foi dito que “desde a virada linguística o sujeito (e os juízes) não tem mais acesso direto às essências transmitidas pela linguagem, sendo cognitivamente limitado” (sic). Neste sentido, segue o artigo, não podendo conhecer a prioritodos os significados das regras, o ato de julgar teria sido transformado em um jogo argumentativo, enfim, em “uma guerra de palavras”, em que as partes disputam o convencimento do juiz pela qualidade de sua argumentação. Bonito, não? Só que tudo isso foi feito com uma leitura equivocada da história da filosofia. E o que a virada (viragem) linguística teria a ver com o recebimento de honorários advocatícios, pano de fundo da matéria? Lendo o artigo, fica a dúvida e a perplexidade: afinal, com a viragem linguística “o essencialismo” (sic) se transformou em retórica? Seria isso? Se isso é verdadeiro, a viragem linguística é responsável pelo subjetivismo? Como assim? Mas, não seria exatamente a viragem linguística (a segunda, porque a primeira foi meramente analítica, a do neopositivismo lógico) que encerra (ou enterra) a filosofia da consciência (e as suas vulgatas voluntaristas)? De todo modo, insisto, quero frisar que não entendi a relação da viragem linguística com os honorários. Enfim… Deus morreu, Marx se foi e eu já não estou me sentindo muito bem com isso tudo (uma paródia de uma frase de W. Allen).

Cena 8. E o Maluf? Inelegível. O que será de nossa democracia sem ele?

Após doze anos (o processo é 2001!), Maluf foi condenado pelo TJ-SP e se tornou inelegível por cinco anos, em razão da Lei da Ficha Limpa. Bem, na verdade, deveria se tornar inelegível (finalmente). Mas, como o personagem Jason, daquele filme do sujeito com a máscara de beisebol, ele sempre volta. E voltará! A condenação também foi para ressarcir aos cofres públicos a nada módica quantia de R$ 42,3 milhões. Mas, aí entra o fator “Jason”, porque ainda há recursos para o STJ e STF, bem como embargos… embargos dos embargos, protoembargos, embargos dos embargos dos embargos… infringentes ou não. Enfim, a torcida é para que ele tenha uma vida longa, afinal, do jeito que vai, caso seja definitivamente condenado, até que todos os recursos sejam vencidos, a futura execução o alcançará já centenário.

O “azul resplendor” (do direito) — a magistral peça de teatro

Os leitores já verão onde quero chegar. Como dizem os jovens, já linkarei tudo isso. Assisti a peça O Azul Resplendor, com Eva Wilma e Pedro Paulo Rangel. Trata-se de uma das melhores metalinguagens já feitas sobre o teatro, a TV e à “produção de sentidos” nestes tempos de fragmentação pós-moderna. O teatro ri de si mesmo (como o Direito deveria rir de si mesmo!). E os personagens fazem uma leitura do modo como se dão as escalas de “sucesso”. As escadas para a glória. O que é talento? O que é sucesso? Na peça, um ator fracassado ganha uma herança e quer investir na volta de uma atriz famosa aposentada. Ele fora apaixonado, platonicamente, durante mais de 40 anos pela agora velha atriz. Quer vê-la de novo. Ele se vê nela. E contrata um diretor. O mais famoso. O que sabe tudo. E que reescreve toda a peça, fazendo algo sem sentido, niilista, pós-moderno. Já não existe a peça que foi escrita. E sequer o papel da velha atriz. O que há, agora, é o sentido novo atribuído pelo diretor, espécie de Humpty Dumpty do teatro.

O tal diretor estudou com bolsa da Viúva na Europa. Desdenha dos patuleus. Por isso, faz “laboratório” com as peças. E a mídia, idiota e interesseira, louva-o. E ele mostra o traseiro para a plateia (ou ameaça fazê-lo). Ele pode tudo. Para a peça, o diretor não contrata atores stricto sensu, mas, sim, artistas famosos da novela das nove. Sim, pouco importa o talento. O que vale é ser famoso, ter músculos ou mostrar as calcinhas ou, ainda, dormir com o diretor. E os repórteres, na coletiva da peça, não perguntam sobre a peça. Nem sabem do que se trata. Querem saber da próxima novela, do próximo papel dos artistas. “- Qual é o seu próximo projeto?”

Eis um retrato da sociedade (do espetáculo). Eis um retrato da cultura. A velha atriz denuncia, mas acaba participando da peça. E o próprio autor da peça, que já não é a que escreveu, comparece para receber a louvação da plateia. Ninguém entendeu nada da peça. Ninguém entendeu “um ovo sequer”. Mas gostaram e aplaudiram de pé. O texto apresentado é incompreensível, totalmente sem sentido. E daí? O que vale é a estética.

No Direito faltam autocríticas. Faltam metalinguagens

Fico pensando nas cenas que narrei acima. É proibido fazer perguntas complexas em concursos públicos. Vale, mesmo, é decorar textos simplificados e facilitados. Quem tentar complexizar, é vaiado. Por que fazer concursos que buscam profissionais que possam compreender a sociedade? Melhor é investir no produto final de quizshows. Melhor é apostar em perguntas que tratem da “ladra Jane”, que furta um automóvel em Cuiabá e leva-o ao Paraguai para vender para um terceiro de boa-fé. Isso! Para que aprofundar? Como consta em livro sobre direito facilitado, no artigo 13 da CF a palavra armas, ao tratar dos símbolos nacionais, não se refere à armas de fogo. Ainda bem, não? Genial. Alvíssaras. Vamos em frente. Vou estocar verbetes do Google!

Por aqui em terrae brasilis, há espaço para tudo. O Rei Roberto Carlos faz/fez cruzada nacional. Para ele, por certo, fatos não existem; existem apenas interpretações, as que ele autoriza, é claro. Qualquer problema, ele chama o especialista em crises. Bingo!

E assim poderia trazer um leque de situações que dariam uma boa peça no estilo “Azul Resplendor”. Algo como Direito Resplendoroso. Ou Resplendor Jurídico. Um ato da peça seria o ensino jurídico. Apareceria a figura do professor fanfarrão. Que ensina só com pauerpoint. Ou que faz piadinha com tudo. Trocadilhos infames. Desdenha da teoria do direito. Ele “ensina” direito. Para ele, aqueles que tratam da Teoria do Direito fazem “perfumaria”. E ele? Bem, ele lê orelhas de livros. Repete o que ele acha a coisa mais sofisticada do mundo: a de que “o juiz boca da lei morreu; o que vale, agora, é o juiz dos valores, o que não se apega a letra ‘fria’ da lei”… Permito-me uma blague: isso deve ser culpa do linguistic turn.

Outro ato mostraria que, nas horas vagas, esse professor — ou qualquer outro — escreve um livro. Sim, porque hoje todos publicam. Há editoras “especializadas”, que por dez “real” a página, editam a “sua opus magna”. E tem grande clientela esse tipo de “gráfica-editora”, que sequer tem conselho editorial: até gente da pós-graduação por lá publica. Ah: na peça, também poderia se retratar um novo produto: Pós-doc fast food. Sim, já existe. Maravilha. Coisa fina.

Outro ato da peça poderia tratar da produção de trabalhos na pós-graduação (mestrado e doutorado). Dissertações sobre “A Natureza do Cheque”, “o Princípio da Afetividade: uma interpretação sistemática”, “Direito das Obrigações e Sustentabilidade” ou algo do tipo (os títulos são fictícios e qualquer relação com a realidade será mera coincidência). É de pensar: qual seria a matriz teórica? Qual a metodologia empregada? Ou um trabalho sobre Platão e, ao lado, outro, no mesmo programa, sobre a “Cobrança de Energia Elétrica” (ou algo assim). Qual a relação de organicidade de um tema e outro? Mas, como na peça Azul Resplendor, os orientadores provavelmente são especializados na matéria (qual? Por vezes, o orientador é o mesmo). E, na maioria dos casos, estudou com bolsa da Viúva. E, na peça, poder-se-ia fazer uma análise da diferença entre algumas monografias de graduação e dissertações… Qual seria a grande diferença? Entra o diretor (orientador?) e declara: “eu é que defino isso”. E a plateia, formada por alunos e pós-alunos, delira. Aplaude de pé. Viva o neonominalismo! Dissertações que não passam de dissertações, mas que se nominam de teses.

No ato final, na apoteose da “peça”, poderiam ser mostrados os diversos modos como se pode dizer qualquer coisa sobre qualquer coisa. Viva a algaravia! E apareceria uma multidão de pessoas cada uma dando um sentido para as coisas. Tratar-se-ia de um novo sintoma: a esquizofrenocracia. O domínio da esquizofrenia no palco (e na vida). Os personagens vão trocando o nome das coisas. Cada um dá o sentido que quer. Um chama a modulação de efeitos de recurso; outro carrega um cartaz exaltando a nova Súmula sobre qualquer coisa; outro diz que a palavra “complementares” de um certo artigo do CPP não quer dizer “complementares”; outros portam cartazes anunciando a venda de palavras e significados; em um canto do palco, uma banquinha vendendo enunciados de Direito Civil e Direito Penal (usam máscaras de neopandectistas); em outro canto do palco, simulando uma sala de aula, um professor escreve na lousa que palavras e coisas não tem qualquer relação. Outro professor, fantasiado de Nietzsche, mostra em pauerpointa frase “Fatos não há; só há interpretações”. Tudo pode. Deus morreu e tudo pode. E, bem no final, alguém vendendo ocitocina. E apresentando a nova ciência: o “neurodireito”. Claro. Já existe existe a neuroeconomia… Em vez de estudar, cada aluno receberá uma injeção de ocitocina. Não precisaremos mais estudar a relação direito-moral. Nem filosofia. Resolve(re)mos isso tudo através de moléculas morais. Qualquer problema, chamem o especialista em crises. Ou o expert em gestão de crises.

Vem aí a coleção “Direito Periguetado”

De fato, a cada minuto nasce um trouxa, para, exatamente, comprar ideias e teses. Aliás, o mundo está cheio de vendedores de ilusões e de fórmulas mágicas. A TV, os jornais e as redes sociais estão repletas de vendedores. Emagreça sem esforço. Tome uma pílulas de casca de camarão. Leve para a sua empresa o professor fulano de tal, “motivador”. Compre pedras luminosas e ponha ao lado de seu travesseiro. Ponha uma fita sobre seu nariz e você vai parar de roncar. Passe o xampu tal e você terá mais cabelos. Use uma palmilha cheia de pedrinhas e você será mais calmo e feliz (claro: seus pés doem e você esquece as preocupações!). Se você ler Nietzsche em drops, será mais feliz. Pascal em pílulas. Platão em 140 caracteres. Mude sua vida lendo Aristóteles twitado. Compre Direito Penal twitado. Ou livros como Jesus, o maior empresário que já existiu (nunca soube que o Nazareno tenha vendido algo). E o best seller O Monge e o Executivo (seria um casal? Ou uma dupla sertaneja, do tipo Milionário e José Rico?). Gosto do livro Seja um Vendedor Ninja (fico imaginando como é um vendedor ninja, fazendo gestos… de ninja). Ainda no Direito, compre o resumo do resumo e você alcançará o sucesso… Minha contribuição sarcástica e/ou irônica: “Compre a coleção Direito Periguetado, que o sucesso é garantido ou seu dinheiro de volta”! Já antevejo a cena: a malta cercando o vendedor, todos querendo o seu exemplar…

Fim do ato…

… mas para dizer que público pediu bis! Por isso, tenho a honra de entregar à comunidade jurídica (e não jurídica) de terrae brasilis o Compreender Direito Volume II, para mostrar “Como o Senso Comum Teórico Pode nos Enganar”. Boa leitura.

CAPÍTULO 1 — O SENSO COMUM TEÓRICO: CONCURSOS PÚBLICOS E NEOGESTÃO NO JUDICIÁRIO

O processo eletrônico e os novos hermeneutas — Parte I

Este capítulo é (mais) uma ode que faço ao Judiciário. Já defendi eleições diretas para os órgãos de cúpula dos tribunais, para aprofundar a “questão democrática” no Poder Judiciário. Este texto é conservador. Reconheço. Conservador porque defende “juízes julgadores”. À moda antiga. E não “juízes-gestores”! Eis o convite à reflexão. Será desenvolvido em duas partes.

Ultrapassando as portas da lei, inicio.

Hermes. A origem.

Tenho contado e recontado essa estória — aliás, conhecida pela maioria que estuda interpretação e hermenêutica. Hermes era um semideus que fazia a intermediação entre os deuses e os mortais. Hermes traduzia a linguagem dos deuses. Hermes se tornou poderoso, porque contava aos mortais o que os deuses diziam. Pois é. O “grande lance” é que nunca-se-soube-o-que-os-deuses-disseram. Só se soube o que Hermes disse que os deuses disseram.

Não temos acesso direto às coisas. Aliás, se tivéssemos, seríamos deuses, por assim dizer. E nem teria graça… Interpretar é como a metáfora do mapa. Um mapa representa algo. Se um mapa é tão perfeito que mostra exatamente as coisas, já não é um mapa. É, sim, a própria coisa. Metaforizado isso, podemos dizer que a mediação hermenêutica é a condição de possibilidade de estarmos no mundo.

Por que estou dizendo isso, no século XXI? Simples. Escrevo sobre Hermes para falar das “novas testemunhas” do processo. Que não são as de ou do Jeová. Escrevo para falar do modo como os juízes e membros do Ministério Público lidam e passarão a lidar com essa nova fenomenologia chamada “processo eletrônico”.

E aparece(ra)m os neo-gestores

Faz algum tempo, alguém inventou o processo eletrônico (desde 2002). Em vez de autos de papel, autos virtuais. Ao invés de pilhas de processos, temos agora “nuvem”. Não há nem pen drive, que ainda é algo que se pode tocar. Agora, tudo se passa em uma “nuvem” (fico pensando — e se um buraco negro a sugar?). Tudo fica clean. Organizado e limpo como uma prisão escandinava. Fóruns e tribunais sem papel sobre as mesas. Assinaturas eletrônicas substituem as canetas. Como o Brasil é avançado, pois não? Trata-se, conforme Marco Marrafon, de uma “burocratização eficientista”.

Sou um conservador. Ou romântico. Alguns — ou muitos — dirão que sou um reacionário, que sou contra o progresso. Obscurantista. Não faz mal. Tenho dúvida — ou melhor, sou cético — em relação à eficácia social-humanística desse novo modelo de “gestão” (como implico com essa palavra…).

Desde que os novos gestores tomaram conta das Universidades, começou o declínio do ensino e da pesquisa. Tudo vira número. Estatística. Um pé nas brasas e um pé no gelo: Temperatura média, excelente. Perderei os dois pés… Mas, e daí? Dou um tiro em um pato e erro o alvo um metro à direita; dou outro tiro no pato errando, desta vez, por um metro à esquerda. Para o neo-gestor, na média o pato foi atingido. Tudo se transforma em números e metas.

No Judiciário, um número x de sentenças deve ser alcançado. Sua qualidade? Pouco importa. Importante é: decidir. Quantidades. Mais adiante, voltarei a esse assunto. Na academia, criou-se o lema: publique ou morra (publishor perish). Aí começa o fator “Imperatriz Leopoldinense”. Desfila conforme o regulamento. O desfile (de Escola) pode ser medíocre… Mas a soma dos quesitos… Todos nota 10 (os mais jovens não conhecem o “fator Imperatriz”… É como jogar só pelo regulamento; a arte fica de lado; o que vale é isolar os quesitos; por isso, o “todo” pode ser medíocre; mas as partes, isoladamente, são “perfeitas”). Um professor ordena que um aluno seu escreva um texto; ele, o professor e mais outro colega, também professor, assinam. Publicado, ambos terão um texto integral (o regulamento diz que até três autores, conta para todos). Textinhos de dez ou doze laudas e… Bingo! Gente que escreve sobre “o papel do artigo tal da Lei tal”. Ou artigos sobre “sustentabilidade”, a nova moda. Já vi artigos Qualis A sobre temas que não dão um artigo no Jornal “O Povo”, de Cachoeira do Sul (ou de Itapemirim). Tudo é número. No Judiciário, quando faltam processos para atingir as metas, cresce o número de decisões passíveis de Embargos de Declaração e Agravos… E Embargos de Embargos. Bingo! Achamos a chave do sucesso. Afogados em números, deixamos a qualidade ir pelo ralo.

Crise de papel?

Quem disse que existe crise de papel no mundo? Qual é a prognose de que vai faltar papel? Papel é material fóssil que está em extinção? Papel polui? Papel não pode ser reaproveitado? Engraçado: o Brasil é o único país do mundo que adotou essa ideia de gestão do Judiciário, que inclui — ou tem como pedra de toque — essa modalidade virtual de processo. Outra coisa: poupar em papel? O que representa o papel no volume de gastos do Judiciário? Gasta-se mais em vale-refeição do que em papel, só para iniciar o tema.

Os novos gestores querem até mesmo limitar o número de páginas de cada peça processual. Algo como “projeto petição 10”. Ótimo: pelo nível da teoria do Direito hoje, dez páginas é muito…! Sugiro fazer tudo por twitter: 140 caracteres e deu prá bola. Eles usam gráficos. Sempre com novas ideias. E gostam de power point. Tire-se-lhes o power point e… Puff. Desaparecem. Fazem reuniões apresentando números.

Nesse novo imaginário da efetividade quantitativa, perdemos a noção do “caso concreto”. O importante é alcançar efetividades quantitativas. O juiz de Direito e professor Alexandre Morais da Rosa tem escrito muito sobre essa problemática. Alexandre mostra essa síndrome “pós-moderna”: “O sintoma disto pode ser visto pelos inúmeros Relatórios que o Conselho Nacional de Justiça — CNJ obriga a preencher a todo o momento. O culto pela ‘avaliação’, até porque não se sabe, de fato, quais são os critérios de quem analisa, se é que analisa, ganha contornos patológicos nesta virada de século, tudo em nome da Boa Governança”.

E continua:

“Cada vez mais os magistrados são obrigados a enquadrar suas atividades em fichas técnicas de cumprimento de obrigações conforme o Protocolo, também editado ou reiterado pelo CNJ, com o primeiro reflexo de se jogar conforme as regras do jogo, a saber, cada vez mais só se valoriza o que gera bônus, transformando a atividade jurisdicional em uma verdadeira atividade de ‘franqueado jurisdicional’. Claro que abusos acontecem no Poder Judiciário. Contudo, eles não podem ser o ‘Cavalo de Tróia’ da eficiência. O resultado mais evidente é a ‘homogeneização’ das decisões, voluntariamente ou de maneira forçada (Súmulas, Reclamação, Recusa recursal, etc.), com a transformação dos antigos juízes em meros gestores de unidades jurisdicionais.”

Efetividade e Gestão: a nova marca. Se o Agravo é de Instrumento ou Retido, o melhor é negar. Transforme-se-oem Retido. É mais uma decisão. Para cumprir a meta do CNJ. E na administração das “Casas”, tudo é calculado. Vi, dia desses, uma instrução normativa do Ministério do Planejamento (ou da Administração) dizendo que um funcionário tem 23 segundos para limpar um metro quadrado de piso. Pensei: e como, raios, isso chegou a ser normatizado? E porque 23 segundos? É. Uma empresa de Gestão estava “vendendo” a ideia…

Aldacy Rachid Coutinho, professora de Direito do Trabalho da UFPR — e continuo com o texto de Morais da Rosa retro — , aponta que, “dentre as diversas questões ocultas na atualidade, algumas podem e devem ser enfrentadas. Não se pode mais fingir cinicamente que não se sabia!”

E a Professora conclui:

“Passamos de um Judiciário em que a figura do juiz era autônoma para uma ‘jurisdição monitorada’. Basta perceber que os Tribunais controlam desde a quantidade de julgados até o numero de audiências designadas, bem assim indaga o motivo de não se marcar, eventualmente, audiências em alguns dias… Este tipo de ingerência abusiva implica na adoção eficientista da magistratura, numa verdadeira confusão do que se configura o ‘trabalho’ da magistratura”.

O processo eletrônico

Sigo. O busílis deste texto — dividido em duas partes — não é apenas falar dos gestores pós-modernos que infestam governos, universidades e a administração da Justiça. Eles estão por todos os lados. Como os estagiários. Ande no elevador e preste atenção nas conversas: há sempre um neo-gestor por perto. Há governos e prefeituras que criaram secretarias de gestão estratégica. Falta só fundar uma faculdade para formar “estrategistas”. É quase uma epidemia. Bom, cursos de pós-graduação em gestão estratégica já existem. Aos montes. Muitos deles financiados pela Viúva. E logo aparecerão mais mestrados profissionalizantes para ensinar “gestão e estratégia”. De todo modo, meu objetivo é falar do principal produto dessa pós-modernidade: o tal processo eletrônico.

Vamos lá. De que modo os leitores acham que é acessado o processo eletrônico? Acham os leitores (e utentes do sistema judiciário) que um juiz, desembargador, ministro de tribunal, promotor ou procurador senta mesmo na frente de uma tela do computador para ler as peças e olhar vídeos de gravações de audiências? Alguém acredita mesmo nisso?

Vozes importantes do Judiciário, cujas fontes aqui preservo com base na Constituição, apontam a dificuldade de leitura das peças eletrônicas. Confessam que essa dificuldade é quase que intransponível. Imagine-se um processo criminal de crime financeiro em que a prova é invariavelmente documental. Complexa. Abrir todos os documentos é uma tortura, aduzem.

Magistrados importantes, criteriosos no exame da prova — porque eles sabem que a facticidade é quase-tudo no crime — já não estão resistindo mais ao apelo da “terceirização da jurisdição”, obrigando-se a confiar em relatórios e exames feitos exclusivamente por servidores. Claro que os servidores-assessores são muito qualificados e confiáveis, mas o risco de se abdicar da parte mais importante do julgamento é grande. Como diz um deles, “logo alguém vai dizer que os juízes são dispensáveis ou que não existem mais juízes em Berlim”.

Já há consenso em tribunais federais no sentido de que, embora não se admita retrocesso no avanço cibernético, do ponto de vista qualitativo haverá um grande prejuízo. Inexorável prejuízo qualitativo. Se já havia uma tendência de fuga da facticidade, agora, com o processo eletrônico, tudo passou a ser mesmo “virtual”. O caso concreto fica obnubilado. Heidegger tinha razão quando falava da relação ser e ente e o (des)velamento. Um dos magistrados lembra o relato do estrangeiro (Camus): a Justiça nunca se interessou pelo assassinato que ele praticou, sobre os fatos nunca fora perguntado… E foi condenado à morte.

Mais e na mesma linha: o próprio ex-presidente do TRF da 4ª Região, desembargador Vladimir Passos de Freitas, ilustre jurista que ocupa coluna no ConJur e entusiasta do processo eletrônico, confessa que “Os juízes e servidores devem praticar ginástica laboral sob pena de adquirirem moléstias profissionais (v.g., tendinite). A visão continuada na tela também deve causar mal físico.

Concordo. Volta e meia, lido com processo eletrônico. E acrescento: na mesma linha de depoimentos de magistrados, afirmo que é impossível ter acesso completo aos autos. E, para ter esse acesso, o tempo é maior do que o tempo do papel. No limite, faz-se o paradoxal: imprime-se o processo eletrônico… Ou as peças principais. Mas, se era para ser eletrônico, por que imprimir? O que os neo-gestores dizem disso?

O CNJ tem Resolução dizendo que, a critério do tribunal, os documentos eletrônicos podem ser “degravados” ou “transcritos”. Tenho requerido que as audiências sejam degravadas. Para saber o que as testemunhas disseram… Afinal, não é bom saber o que os protagonistas do processo disseram? Normalmente, o relator nega a degravação. Como ele nega, tenho que ir aos “autos”. Bom, é um tormento. O leitor não tente fazer isso em casa… É prejudicial à saúde, mormente aos olhos. E à paciência. E às costas, porque você fica sentado na frente de um monitor.

Contam-me funcionários federais que lidam até com dois monitores na frente, para “relatar” para o destinatário, o juiz, o conteúdo dos autos eletrônicos. E já começam as doenças profissionais. Logo, aposentadorias precoces aumentarão o déficit da previdência. Diz Passos de Freitas que “Os servidores têm diante de si a possibilidade de trabalhar em casa, dirigindo-se à Justiça um ou dois dias da semana. Em tempos de tráfego intenso, ver-se livre de ruas congestionadas é um alívio. Evidentemente, este tipo de concessão deve ser regulamentado e exige uma boa dose de responsabilidade do servidor e da chefia”.

E digo eu: como controlar as horas extras? Como deixar para o servidor “fazer” um trabalho tão importante em casa? E a segurança? O entorno do lar, da casa, pode fazer parte do “processo judicial” a ser “traduzido” pelo servidor? Ora, corremos o risco de o tribunal perder o controle sobre o que o servidor está fazendo e com quem está. Parece-me extremamente preocupante essa questão, pois não? E que trabalho o servidor leva para casa? Seria exatamente a tarefa de ler os autos nas cansativas telas dos monitores dos computadores? Esses mesmos que causam doenças profissionais?

Eis a questão. Aqui entram os novos hermeneutas. As novas testemunhas (que não são de Jeová). Como os magistrados não dispõem de tempo ou paciência (ou saúde) para ficar na frente de monitores e os tribunais não fazem paradas técnicas para assistir “o que, de fato, ocorreu na audiência” que está em um CD, essa tarefa deve ser feita por alguém que traduz esse mistério que está no processo virtual. Aqui entra a figura de Hermes.

O próprio desembargador Passos de Freitas reconhece: “A leitura é mais cansativa do que a feita em papel. Espera-se que a evolução leve o processo eletrônico a ser lido como os livros no Ipad, inclusive permitindo que se folheiem as folhas e não que se tenha que abrir arquivo por arquivo”.

Mas quando acontecerá isso? Até lá, quantas demandas terão sido prejudicadas pela “leitura cansativa”? Posso testemunhar isso por ter visto alguns processos eletrônicos da Justiça criminal do Rio Grande do Sul. Será que, fôssemos médicos, seria lícito que fizéssemos esse tipo de experiência em operações cirúrgicas, sob a alegação de que, no futuro, os bisturis seriam mais sofisticados? E os que morressem no meio do caminho? Entram nas estatísticas de “perdas calculadas”?

Outro detalhe que não pode ser olvidado. Supondo que, daqui a algum tempo, chegaremos à tecnologia do livro em iPad, quem atualizará o software de todo o acervo já existente? Quem pagará essa conta? A viúva? Um amigo fez uma tese de doutorado há dez anos sobre processo constituinte. Seu banco de dados estava em um tipo de digitalização. Pois bem. Hoje, perdeu tudo. Não há software para reproduzir aqueles dados. Lembram-se da microfilmagem? Onde estão os microfilmes? Se não há mais máquinas para ler os filmes, esta(re)mos perdendo “aquele avanço tecnológico”. E assim acontecerá no futuro, com o abandono do papel impresso. Um pesquisador francês esteve no Brasil. Esteve no TRE do RS. Ali lhe disseram que tudo estava sendo feito eletronicamente. Inclusive haviam mandado incinerar os votos e documentos de 1970 para trás. O francês quase teve um infarto. Seu trabalho na França é pesquisar os documentos das eleições do país dele no século XIX. Como farão pesquisa no futuro em terrae brasilis? Sempre dependeremos das atualizações de softwares? Ficaremos reféns disso?

As novas testemunhas

Andante. Os funcionários — assessores em geral, mais a valorosa classe dos neo-escravos (os estagiários) — são aqueles que fazem essa tradução (não esqueçamos que o próprio Aristóteles justificava a escravidão…). Logo, são eles as testemunhas do processo. Sim, as testemunhas dos autos. Sem aqueles que leem para nós o que está no processo virtual, não há comunicação.

Nunca-sabe(re)mos-o-que-os-autos-nos-dizem; só sabe(re)mos aquilo que os assessores nos dizem que os autos disseram… Em uma perfeita paródia do mito de Hermes.

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Li, no final de semana, o livro que ganhou o prêmio de melhor do ano de 2011 (Prêmio São Paulo de Literatura), chamado Passageiro do Fim do Dia, de Rubens Figueiredo. Fiquei impactado. Trata-se de um dia na vida de um passageiro de subúrbio, que traz em sua mochila um livro sobre Darwin. Imperdível. No ônibus modorrento, sua vida vai passando como em uma tela de TV. Pedro, o passageiro, trabalha em uma pequena loja de livros usados. Lá convive com várias pessoas. Com promotores, advogados, juízes e juízas. O velho juiz diz para a jovem juíza: “ — Aliás, já que a senhora falou, não sente raiva da maneira como eles reproduzem os passos de um processo ali na tela de vidro? Remessa, despacho, vista… Uma listinha vagabunda. Parece que foi feito só para desmoralizar o nosso trabalho, a nossa ciência. Não, não é disso que estou falando, eu me refiro à sentença, à nossa intervenção, sabe, quando a nossa palavra se converte em força. Veja, neste mundo a eletrônica constitui um estatuto superior, quem vai negar isso? A eletrônica pode até não ser, mas aos olhos do mundo vale por uma autoridade em si mesma. E o que vale é só o que importa, esta é a chave de toda a nossa ciência. Então é isso, lá está.

Na sequência, o velho juiz ergueu e moveu as duas mãos como se esticasse uma linha no ar e disse para a jovem juíza:“ — Uma sentença inscrita em prótons e elétrons. A física pura, uma instância expurgada até a última partícula. O poder por excelência…”. E paro por aqui. Dizer mais para quê? Como se diz na psicanálise, por vezes, nos faltam palavras. E como repito há tanto tempo, “palavra é pá-que-lavra…”.

Não sou, pois, pós-moderno (sem que saiba bem o que isso quer dizer). Sou lá do meio do mato. Onde o mato não tem fecho. Como um jurista germânico, inglês ou norte-americano, quero manusear processos… de papel! Sim, como os alemães e outros povos. Sou, definitivamente, uma traça. Sim, um “jurista-traça”. Pronto. Achei o epíteto. E o fecho deste capítulo.

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Neo-gestores, Schubert e as costas do estagiário

As costas do ex-estagiário

O assunto ainda é “efetividades quantitativas versus efetividades qualitativas”. Com efeito o jovem Pedro, ex-estagiário do TJ-SP escreveu, a favor da tese da implantação do processo eletrônico: “só não pensa assim quem nunca teve que carregar 30 volumes de papel nas costas, quem nunca teve que ‘trabalhar’ espremido em sua mesa, sufocado pelas alergias, quem nunca teve que caçar ‘o’ volume perdido, quem nunca teve que enumerar 1.000 folhas em um dia”. Pronto. Eis ai um bom argumento. Processo eletrônico é bom porque alivia as costas. Como se diz por aí, “enquanto o pau sobe e desce, as costas folgam”. E “do couro saem as correias”. Aliás, como ficaria um processo de 30 volumes digitalizado? Quem o leria? Claro. Já sei: os estagiários. Os novos hermeneutas!

Se Pedro, o ex-estagiário do TJ-SP faz essa ironia, permito-me, por outro lado, trazer os comentários do advogado Nilton Teixeira Prates, sobre a segurança dos registros: “trago acontecimento recente na Justiça Trabalhista em Santa Catarina, onde o tratamento dado a um alguns processos virtuais me serviram de alerta:

No primeiro caso, o réu protocolou contestação fora do prazo e teve, num primeiro momento, decretada sua revelia. Com a revelia decretada, a peça contestatória não foi disponibilizada em momento algum, até a prolação da sentença. O Juiz reavaliou a revelia, considerou a peça contestatória e sentenciou pela improcedência do pedido do autor. A peça contestatória continuava indisponível para acesso pelo sistema! Embargos declaratórios, recursos, até que num belo dia, assim, meio que do nada, a dita contestação finalmente se fez disponível. Recursos, tentativa de apuração de fraude, etc… Nada, sequer servidor admoestado. O risco da informatização está naquilo que pode ser incluído, excluído, acessado e não acessado. No processo físico, documento juntado vai pracópia do processo nos arquivos dos advogados. No virtual, enquanto não disponibilizado, fica ao alvedrio de servidores”.

Ou do estudante High Hopes, cujo título foi “E a qualidade, ó!!”, verbis: “Pouco tempo atrás um professor juiz comentou sobre o tal problema das estatísticas e do pouco tempo para dar as sentença, eu pensei a respeito, mas desisti de pensar para não desistir de seguir no direito. Se da forma que está e com o tempo que temos já é difícil, imaginem o tamanho e a quantidade de injustiças que serão praticadas por causa das estatísticas da modernidade. Entramos na era da sentença expressa, entre no tribunal de manhã e em meia hora receba a decisão dos mais (d)eficientes e (des)qualificados juízes. É de apertar o coração e rezar para que a injustiça não seja conosco.”

No meu e-mail, recebi mensagem de juiz do estado do Paraná, informando que pagar R$ 50 por sentença feita por estagiário já é realidade em muitos estados do Brasil. E eu achando que era ficção. Ele diz: “Tenho pena das vidas cujo futuro é posto nas mãos do Judiciário desse modo. Gostaria de poder reagir. Mas remar contra a correnteza e inútil.” E eu digo: Vamos à luta, parceiro. A história nos dará razão.

A técnica pela técnica?

Na verdade, não sou contra a tecnologia. Deixei isso claríssimo. Minha preocupação é de outra monta. Falo do humano. Demasiadamente humano eu sou. Heidegger falava dos princípios epocais. Cada época tem um fundamento último, que se basta (fundamentuminconcussum). O “eidos platônico, a ousia aristotélica, o ens creatum de Tomás de Aquino, o cogito de Descartes, o Eu Penso, de Kant, o Absoluto hegeliano e o último princípio epocal da modernidade, a Wille zur Macht” (a vontade do poder, de Nietzche). Depois, a era da técnica. Da instrumentalização. Somos escravos da técnica. E, nesse sentido, o enigma que emerge da relação do ser humano com as coisas; da relação entre ser humano e natureza, simplesmente desaparece.

Tudo fica restrito à apreensão calculável das coisas. Não somos mais pessoas de carne, ossos e mentes; somos números, dígitos apenas. Na era do dis-positivo (das Ge-stell), afirma Heidegger, “a natureza é pro-vocada, isto é, interpelada, a mostrar-se como objetividade calculável”. Em um ensaio, absolutamente fantástico, sobre os elementos que forjaram a modernidade filosófica chamado O Tempo da Imagem do Mundo, Heidegger chama esse processo frenético de alastramento do dispositivo, do domínio total da natureza pela técnica de Maschinentechnik, ou seja, “técnica de máquinas”. E o que é o e-process? Mais um capítulo dessa mesma história: é uma faceta do dispositivo que nos rege nestes tempos de crise (que alguns já ousam chamar de pós-modernidade).

De onde surge a massificação?

Nestes tempos de pós-modernidade (?), a produção massificada do direito vai levando tudo de roldão, como a enchente de Xerém. Por falar em água, cada vez mais se citam menos fontes. Como falei outro dia, em terraebrasilis só quem refere a fonte é a garrafa de água mineral. Falei outro dia aqui na ConJur que um dos livros que pretende tratar das disciplinas “humanistas” nos concursos públicos (em face de uma Resolução do CNJ), não cita fonte alguma até a página 124. Os autores são “a origem”. No princípio eram eles, os autores do livro. E no restante do livro a coisa vai à meia-boca. Tudo é de todos, compreendem? Até a Folha de S.Paulo (12.01.2013) constatou que um dos desenhistas terceirizado copiou uma gravura de um sujeito que mora na Ásia. Recortar e colar: eis o grande paradigma hermenêutico. E os processos digitalizados seguem nessa linha: Ctrl-c! Ctrl-v! Sinal dos tempos. Tudo é virtual. Líquido. Fugidio. E desumano…

Prossigo e registro, ainda, que — nos dois capítulos anteriores — , ao lado das críticas ao processo eletrônico, coloquei uma série de questões relacionadas à massificação, que ocorre por culpa do próprio Poder Judiciário. Lembrem-se sempre da frase do ministro Luis Salomão, do STJ: “Transferiram os call centers para o Judiciário.” É lucro para as empresas descumprirem as leis e desrespeitarem o consumidor (ou seja, quero afirmar que o entupimento do Judiciário é também — ou fundamentalmente — culpa dele mesmo). Se você acessar o site de uma companhia de telefonia para reclamar ou tentar ligar para o 0800 (que agora já estão cobrando), terá a nítida certeza de que o “consumeirismo” se tornou um embuste. Disque 1 para descobrir que você é um trouxa; disque 2, para falar em português; disque 3 para ouvir o colaborador falando em gerundês; disque 4 para retornar ao menu; disque 5 para receber o número do protocolo da reclamação que não vai dar certo. Bom também é o Fale com o Presidente. Ali você descobre que é um imbecil já no primeiro minuto (depois do 15º minuto de espera, é claro, porque os call centers não cumprem as resoluções da Anatel). Digo de novo: “Hecha la ley; hecha la trampa!” Vamos: entre em juízo!

E o que dizer das estatísticas exigidas pelo CNJ, que faz com que se artificialize a contagem de processos? E os embargos declaratórios, verdadeira praga contemporânea, que somente servem para procrastinar feitos e “salvar” decisões sem fundamento e mal fundamentadas? Só no Brasil é que existe um dispositivo que institucionaliza decisões omissas, contraditórias e obscuras (e os projetos dos novos CPC e CPP repetem isso; incrível como os responsáveis pelos projetos não se dão conta disso…). E os agravos dos agravos? E o agravo no agravo regimental? Quem tiver a paciência de ler minhas colunas no Conjurou alguns textos e livros que escrevi nestes anos, verá que sempre faço uma análise global do problema. E apresento soluções. Tento mostrar que, se lidássemos com efetividades qualitativas, não seríamos sufocados/engolidos pelas efetividades quantitativas.

O exemplo do médico Dr. José Camargo

Dias destes assisti a uma entrevista do Dr. José Camargo, médico e catedrático de medicina de Porto Alegre. Só ele já realizou 415 transplantes de pulmão (metade do que foi feito no Brasil todo e um quinto do que foi feito no mundo). Tem 66 anos. Quando respondia às perguntas do repórter, seus olhos brilhavam. Apaixonado pela profissão de salvar vidas.

Ele disse: paradoxalmente, quanto mais temos tecnologia, mais corremos o risco de desumanizar a Medicina. Crescemos em técnica; salvamos três vezes mais vidas do que há 30 ou 40 anos. Mas não podemos perder o carinho pelo paciente. E o paciente, depois de operado, deve saber quem foi quem lhe operou. Não pode simplesmente dizer “foi aquele baixinho careca, etc., do hospital tal… acho que foi ele”. Se isso acontecer, a culpa é dos médicos que se desumanizaram. Ou seja, o Dr. Camargo fala de algo que já não existe no mundo jurídico: “o paciente concreto”, quer dizer “o caso concreto”.

Em suas aulas, o Dr. José Camargo ensina aos alunos até mesmo como dar a notícia aos familiares de alguém. Faz desafios com os alunos: “De que modo você me convenceria fazer uma biópsia de um nódulo que parece não ter importância, que não causa dor”? Sua intenção: formar pessoas; médicos-que-sejam-humanos. Sim, a Medicina está massificada. Faltam médicos, faltam hospitais. Mas diz o Dr. Camargo: “Cada atendimento é um atendimento. Ali está um ser humano.” E digo eu: eis o caso concreto!

Fiquei emocionado com a entrevista do Dr. Camargo à TVCOM, de Porto Alegre. O Dr. Camargo é mais do que um médico humanista. É uma metáfora viva. Ele deve ser universalizável.

Contundente, também denunciou a mercantilização da medicina. Falou sobre o dono da Amil, vendida por R$ 6 bilhões. Perguntado sobre o segredo do sucesso da Amil (empresa de planos de saúde), o proprietário disse: deu certo porque lidei a vida toda com a mão de obra barata, os médicos brasileiros. Bingo! O Dr. Camargo acertou no pulmão do dono da Amil, sem trocadilho!

Falo nesse tom desse grande médico para denunciar a era da técnica do Direito (Ge-stell). A Medicina também evoluiu tecnologicamente. E como evoluiu! E já se desumanizou. O Dr. Camargo é um combatente da resistência. Humildemente, alio-me a ele. Quero ser humano, demasiadamente humano.

É isso que tentei dizer nas reflexões sobre os perigos do processo eletrônico. É isso que queria que entendessem. Nada mais, nada menos. Se nos queixamos que no SUS o médico olha o paciente superficialmente e saca requisição de exames ou receita de qualquer psicotrópico, no Direito já de há muito estamos fazendo pior que no SUS. O Dr. Camargo também não é contra a tecnologia. Ao contrário. Também graças a ela é que ele é “o cara”. Mas avanço tecnológico não pode banalizar, trivializar, transformar os pacientes em números, em prontuários.

Se ensinamos para nossos alunos que o Direito é uma questão de “caso concreto”, por que razão não nos esforçamos para, usando a tecnologia, chegar mais próximo ao “caso concreto”? Por que usamos a tecnologia para nos afastarmos do “caso”? Se a tecnologia (no caso, o processo eletrônico) não servir para humanizar o Direito, então, para que serve? Esse é o busílis da questão. A técnica tem de nos servir e não nós servirmos à técnica. E nem ela deve nos desumanizar.

O “paciente concreto”

Em nome de uma realjuridik (em tempos de realpolitik), perdemos nossa capacidade de indignação. De que modo podemos ser críticos, se nossas teses sequer serão analisadas amiúde pelos tribunais? Como alguém pretende discutir uma causa a partir de uma tese, se, no futuro, haverá limitação de 10 laudas ou 12.000 caracteres? Estamos emburrecendo. Os livros estão ficando cada vez mais banais, standards, sem sofisticações. Trata-se de uma “michelteloização” da ciência jurídica. Nos aeroportos, além das publicações plastificadas próprias para uso em concursos públicos (são plastificadas para usar no banho?), encontram-se já “Direito Constitucional em Palavras Cruzadas”. Sim. “Meninos, eu vi”! Se você não entende por que os Juizados Especiais estão atravancados pelas companhias telefônicas e pelos bancos, a solução está à mão: Compre o livro chamado “Juizados Especiais em Palavras Cruzadas”. Algo como “Ofertas Casas Bahia”.

O que mais farão nossos “pastores” do Direito? Falta só começarem a fazer excursões ao Monte Sinai, para benzer os manuais e fazer a Fogueira Santa de Israel… Ou, antes dos concursos ou durante a aula dos cursinhos, os alunos receberão toalhas “benzidas”, como as que o Missionário Valdemiro oferece nos cultos de sua Igreja Mundial da Graça de Deus (é a Mundial e não a Internacional, porque essa é do R. R. Soares). Aleluia, irmãos!Contextualizo o que acabo de dizer (meu estagiário de plantão levanta uma placa explicando): o que o Professor Lenio quer dizer é que de que adianta sermos high tech se a cada dia retrocedemos em termos de saber e sabedoria? É como se os médicos, com todo aparato tecnológico à disposição, operassem os pacientes sem um prévio exame de sangue e sem localizar, detidamente, o locus do tecido adoecido…

Sigo. Sobre o e-process. Indago: os juízes da República são técnicos que apenas examinam formalidades ou profissionais com formação humanística que conseguem perceber

que “Direito é uma questão de caso concreto”? São questões que devem ser respondidas pelos adeptos da tecnicização em massa. Pelos neo-gestores. Insisto: juiz não é gestor! Ele julga! Ele deve ser como um compositor. Mesmo que, por vezes, a sinfonia fique inacabada… Masdeve tentar. Lembremos do que Dworkin fala sobre o processo como um romance em cadeia. Como já referi, a sentença não é um conto.

Nessa trilha, pergunto: como os adeptos do processo eletrônico e da estandardização (neo-gestão) dos processos analisariam o seguinte caso concreto, isto é, como fica(ria) uma decisão como a proferida no Recurso Cível 5003352502011.404.7111/2012, da lavra do TRF-4, que confirma sentença por seus próprios fundamentos, invocando o artigo 46 da Lei 9.099, combinado com o artigo 1º da Lei 10.259? Verbis: “Os fundamentos do acórdão, pois, são os mesmos da sentença, onde todas as alegações já foram analisadas.

O referido acórdão invoca também uma conhecida decisão do STJ no REsp 717.265/2007, segundo a qual “o magistrado, ao analisar o tema controvertido, não está obrigado a refutar todos os aspectos levantados pelas partes, mas tão somente aqueles que efetivamente sejam relevantes para o deslinde do tema”. Essa decisão gerou Embargos Declaratórios, que foram respondidos basicamente a partir da reprodução do teor do artigo 46 da Lei 9.099, verbis: o julgamento em segunda instância constará apenas da ata com a indicação suficiente do processo, fundamentação sucinta e parte dispositiva. Se a sentença for confirmada pelos próprios fundamentos, a súmula do julgamento servirá de acórdão. Como fundamentos retóricos, os embargos trazem a colação dois julgamentos do Supremo Tribunal, o AI-AgR 453.483 e o HC 86.533, em que o Supremo diz que a decisão que se remete aos fundamentos adotadas na sentença não viola o artigo 93, IX. O Supremo, para tanto, remete-se à Lei 9.099. Tautologicamente. Ou seja, é constitucional porque é legal e é legal porque é constitucional. Dizendo de outro modo: (O biscoito) “Tostines é fresquinho porque vende mais… e vende mais porque é fresquinho.” O “dilema Tostines” deixou de ser dilema, no Direito. Não há mais a interrogação. É tudo ao mesmo tempo.

Há vários questionamentos que devem ser feitos, que somente podem ser superados por argumentos de realjuridik. Ora, não parece adequado que uma lei ordinária possa se colocar frontalmente contra o dispositivo da Constituição que estabelece a obrigatoriedade de fundamentação amiúde de todas as decisões. Não me canso de lembrar que a Corte Europeia de Direitos Humanos considera a fundamentação/justificação das decisões como um direito humano fundamental da decisão. Consequentemente, o dispositivo da Lei 9.099, assim como se encontra, jamais poderia ser considerado adequado ao disposto no artigo 93, IX, da Constituição. E por uma razão simples, que é uma questão republicana stritcto sensu: a garantia do devido processo legal e o direito ao tratamento equânime que todos têm. Ou isso, ou se pode(rá) entender que as causas dos Juizados são meias causas ou causas anãs.

Nos julgamentos do Supremo Tribunal que invocaram a lei para sustentar a não violação por parte dos acórdãos a quo do artigo 93, IX da Constituição, têm-se nitidamente uma perigosa interpretação da Constituição de acordo com a lei. Por isso, parece não restar dúvidas de que o artigo 46 da Lei 9.099 e o modo como ele vem sendo aplicado fere não somente de frente o sentido ôntico do artigo 93, IX, como também os princípios republicanos que informam e conformam um processo dentro do Estado Democrático de Direito. Ademais, deve-se consignar que o mesmo conteúdo observado no artigo 46 da Lei 9.099 reaparece no artigo 82, parágrafo 5º, do mesmo diploma legal. O artigo 82 aplica-se a procedimentos penais da alçada dos Juizados Especiais, sobre o que já me manifestei em outra oportunidade. Na ocasião foi dito que, a única forma de se “salvar” o referido dispositivo de sua — patente — inconstitucionalidade, seria através de uma interpretação conforme a Constituição (verfassungskonformeAuslegung) que atribuísse ao dispositivo o seguinte sentido: “se a sentença for confirmada pelos próprios fundamentos, a súmula do julgamento servirá de acórdão,desde que sua aplicação seja devidamente fundamentada”.

Mas, como vivemos uma realpolitik e uma realjuridik, nada mais posso dizer, a não ser me consolar com as palavras do Dr. José Camargo, que mesmo depois de ter “julgado” (perdoem-me a analogia) tantos pacientes, ainda continua a apostar no “paciente concreto”. Aquele paciente. Sim, o indivíduo… aquele-que-não-pode-ser-dividido!

Uma metáfora sobre “neo-gestores”

Metáforas nos ajudam a entender o mundo. Li na internet e penso que encaixa como uma luva. Não há autoria certa (há vários — um deles chama Jorge Yamashita). A estória é a seguinte:

O chefe do Departamento de Reengenharia ganhou um convite do presidente da Empresa para assistir a uma apresentação da “Sinfonia Inacabada” de Franz Schubert, no Teatro Municipal. Como estava impossibilitado de comparecer, passou o convite para o seu gerente de Organização, Sistemas, Métodos e (Neo)Gestão e pediu que, depois, ele enviasse sua opinião sobre o concerto, porque ele iria almoçar com o presidente, no dia seguinte, e queria saber como havia sido a apresentação.

Na manhã seguinte, quase na hora do almoço, o chefe do Departamento recebeu, do seu gerente, o seguinte relatório:

1 — Por um período considerável de tempo, os músicos com oboé não tinham o que fazer. Sua quantidade deveria ser reduzida e seu trabalho redistribuído pela orquestra, evitando esses picos de inatividade.

2 — Todos os doze violinos da primeira seção tocavam notas idênticas. Isso parece ser uma duplicidade desnecessária de esforços e o contingente nessa seção deveria ser drasticamente cortado. Se um alto volume de som fosse requerido, isso poderia ser obtido através de uso de amplificador.

3 — Muito esforço foi desenvolvido em tocar semi tons. Isso parece ser um preciosismo desnecessário e seria recomendável que as notas fossem executas no tom mais próximo. Se isso fosse feito, poder-se-ia utilizar estagiários em vez de profissionais.

4 — Não havia utilidade prática em repetir com os metais a mesma passagem já tocada pelas cordas. Se toda essa redundância fosse eliminada, o concerto poderia ser reduzido de duas horas para apenas 20 minutos.

5 — Enfim, sumarizando as observações anteriores, podemos concluir que: se o sr. Schubert tivesse dado um pouco de atenção aos pontos aqui levantados, talvez tivesse tido tempo de acabar a sua sinfonia.

6. — Resumindo: esse “tal” de Senhor Schubert — do qual, aliás, nunca ouvi falar — desperdiçava tempo e materiais. E era um imbecil. Um retrógrado. Um dissonauro.

Assinado: Gerente de Organização, Sistemas, Método e (Neo)Gestão (obs: a assinatura era eletrônica).

Eis a metáfora dos novos tempos. A estorinha é autoexplicativa.

Numa palavra final

Como se lê em Grande Sertão: Veredas — sim, esse livro de Guimarães Rosa, aquele autor que Pedro Bial certa vez equiparou ao Programa Big Brother ou vice-versa (e por isso vou estocar comida e construir um bunker):

“A água só é limpa nas cabeceiras… O mal ou o bem estão em quem faz. Não é no efeito que dão. O senhor ouvindo, me entende!”

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Dia destes, vi na internet um esquete do grupo humorista “Porta dos Fundos”, que faz interessantíssima crítica (na verdade, genial!) à nossa “pós-modernidade”, onde nada tem fundamento, nada tem DNA, tudo (se) pode…

No esquete, há dois participantes: O publicitário “totalmente cool” e o bispo de uma igreja neopentecostal que necessita de uma campanha para rearranjar a sua igreja que está perdendo fiéis. Reproduzo, de forma aproximada, os diálogos:

Diz o Publicitário: “Eu dei uma olhada no livrinho… bacana. Como é o nome? Ah Bíblia. O título não é bom; como título, não vende. Pensei em trocar o nome, tipo 50 tons de Bíblia, Ah, quem mexeu na Bíblia… De qualquer forma, é um bom material. Tem passagens que me fizeram rir muito. Mas é muito longo…”

O Bispo intervém: “Mas é a história da humanidade.

Mas o publicitário continua: “Mas lá por Mateus tem uma barriga. Isso aqui eu cortaria tudo”, mostrando várias páginas do texto. “Jeremias… E quem é Salmos? Noé…Argh… Eu tiraria o personagem do rapaz!”

Perplexo, o bispo pergunta: “Que rapaz?

E responde o publicitário: “O principal, que diz que é o principal”. Ah, responde o bispo, “Jesus”.

Acrescenta o publicitário: “Não entendi a função dele. Ele não tem carisma…”, emendando: “Ele é filho de quem mesmo? É tudo rocambolesco, meio mexicano.”

O bispo interrompe novamente: “Na verdade, ele é o personagem principal, o fio condutor…”. E o publicitário ataca: “Ele precisa morrer? E a cruz… Vamos substituir por pneus.” “Mas a história tem dois mil anos”, diz o bispo. “Tá bem. Você quer manter o personagem, OK. Mas, por que Cristo… é esse o nome, não, por que ele tem que ser homem?” “Mas é que…”, gagueja o bispo…

O bispo é interrompido pelo publicitário, que berra: “Quem disse que era um homem? Por que não uma mulher disfarçada de homem, lutando contra o preconceito.

E o bispo: “Mas eu não gostaria de mexer nisso…”.

E o publicitário: “A Cleo Pires no papel de Cristo. Isso dá um filme, bispo Carmelo!”. E, chamando a assessoria, diz: “Manda a bíblia para o Duduxa. Mas não mande nesse papel… Manda em papel couchê… Onde se viu um livro com esse tipo de papel fininho?”. E o bispo vai embora, com a cara amarrada.

Bom, o resto aqui não importa. O que importa é a analogia. É assim que funciona “a coisa” hoje. Sem fundamento. Sem raízes. Sem saber. Sem sabedoria. Sem DNA. Tudo é grau zero. Tudo pode ser “feito” a partir de agora.

Imaginando “diálogos publicitários”

Imagino o mundo desse publicitário do esquete e o comparo com o mundo da estandardização do Direito. O mundo da cultura simplificada. Dos clichês jurídicos. Do Malatesta. Da “verdade real”. Do “princípio da ponderação”. Das fórmulas para passar em concursos. Dos livrinhos feitos para “resolver” os problemas do Direito. Da expressiva maioria dos livros utilizados nas Faculdades de Direito. Fast food jurídico: eis a solução. Tudo “tipo pentecostal”, em que não há religação com nada. Apenas a “unção” direta. Em nome “de o Senhor”…

Imagino o professor — desses que escrevem sobre Direito Constitucional em palavras cruzadas (à venda nas rodoviárias e farmácias), Direito X e Y simplificados, descomplicados etc. e estes que escrevem, do modo como explicitei acima, sobre as demandas da Resolução 75-CNJ — dialogando com seu editor:

Esse autor que o CNJ indicou… como é o nome dele mesmo… Karson, Kelson, ah, sim. Isso…Kelsen. Tem um livro muito complicado. O nome já começa mal. Teoria Pura do Direito. Deveríamos trocar o nome para ‘Pura Teoria do Direito’… Entendeu? ‘Pura teoria’. Afinal, não se diz que esse Kelsen era um positivista? Logo, tudo vira teoria. Pura teoria. Cool. Mas o livro é muito grande. Vamos resumir tudo em não mais do que 80 páginas. Por que mais de 500? E esse negócio de estática e dinâmica jurídica? Tira fora a parte da estática. Direito é vida. Anda prá frente. Tem uma parte que é hilária, que temos de ressaltar: é quando ele dá diferença entre um bando de ladrões e a sociedade… Compreendeu? Isso prá discutir a corrupção é massa. Agora, com o mensalão, Kelsen neles… Outra coisa engraçada é o capítulo 8º. Ri muito. Diz ali que o que os juízes fazem é política jurídica. Grande coisa. Esse Kelsen. Escreveu tudo isso para chegar a essa obviedade.

E o editor: “Tem certeza que vende?” O professor responde: “Xá comigo. Esse Kelsen é sinistro. Dá até para fazer um rap.

Imaginemos outra cena, com outros (neo)professores, em negociação para fazer um novo livro:

Lendo por aí, diz-se que para fazer um livro sobre concursos que tragam na pauta a humanização do Direito de que trata a Resolução 75-CNJ, deve-se colocar Dworkin e Alexy. Dworkin… cá entre nós, que nome engraçado este, não? Do-working; um sujeito trabalhador, indeed.

E o outro professor: “Trabalhosos são os livros dele… difíceis demais de ler. O cara cita mil exemplos e agora deu para falar de ouriços… o que será que esse bicho tem haver com o Direito?”

Ao que o primeiro professor responde: “Ouriço, chouriço, o que me importa? O importante é criar um jeito de conquistar o mercado com esses caras. Por isso vamos fazer um guia de leitura… algo que facilite as coisas, entende? Interessante seria juntar os dois, esse Dworkin e o tal do Alexy. Ambos falam em ponderação. Só que um diz dimensão de peso e o outro ponderação mesmo. Dimensão de peso, ponderação… tudo tem haver com balança, logo deve ser a mesma coisa”.

O seu sábio interlocutor — o segundo (neo)professor — , então lhe diz: “Acho que um bom começo seria insistir no jargão — regra é no tudo ou nada e princípios é na ponderação — assim qualquer um entende”.

O primeiro professor, entusiasmado, acrescenta: “Brilhante!!! Essa frase tem que constar da quarta-capa do livro. Será um verdadeiro chamariz para as vendas!

Em outro canto da cidade. Local: Mesa da editora. Café fumegante. O editor comenta com um (neo)professor: “Tem um autor que faz sucesso na Teoria do Direito… esse que inventou o termopós-positivismo, Müller… Sim, Müller… Friedrich. Você deveria escrever sobre ele.

Sobre quem? Müller?” — pergunta o (neo)professor.

Isso, Müller”, responde o editor. O professor, com certo ar de desprezo, responde ao empresário: “Müller… isso é nome de jogador de futebol… e de pastor evangélico.” O editor, estupefato, redargui: “Não! É um teórico do Direito, escreveu sobre a diferença entre texto e norma.”

Resposta do (neo)docente: “Ah, esse negócio de diferença entre texto e norma é algo muito simples. O texto é a letra da lei e a norma é a interpretação que se dá a ela. No fundo, qualquer coisa que o intérprete disser sobre o direito, será uma norma… Qual é novidade nisso?

Mais uma cena, desta vez envolvendo as demandas do Exame da OAB, que começou a cobrar questões relativas à filosofia e teoria do Direito. Como seria a cena?

Vamos a ela. Um jovem professor aborda um “catedrático” de cursinhos. Parênteses necessário: Dia desses, vi um destes jovens professores divulgando sua obra pelo Face: Código Penal para Concursos… fantástico, já não é mais o Direito Penal… é o Código Penal que é para concursos! Dizia a notícia que o diploma legislativo estava atualizado segundo a doutrina, a jurisprudência e… às questões de concurso, é claro. Na verdade, o adjetivo usado foi “superatualizado”. Interessante o que a língua pode fazer conosco, pois não? Será que o adjetivo “atualizado” comporta superlativo? O que seria um Código Penal superatualizado? Mais atualizado do que o atualizado…? Interessante… Talvez pudéssemos lançar um novo aparelho para conquistar o mercado jurídico: “o atualizatômetro”.

É possível prever os congestionamentos que a intensidade das compras provocariam na internet. Sim, claro, porque, para acompanhar a tecnologia, o atualizatômetro seria um aplicativo disponível tanto para o sistema iOS quanto para a plataforma Android. Bastaria ao utente aproximar o seu aparelho celular do livro desejado que o mecanismo acionaria um de seus critérios catalogadores. Três seriam os patamares de medida: Proto-atualizado; atualizado; e o superatualizado… apenas os livros superatualizadosseriam sucesso de vendas.

Mas, contava eu que o jovem professor aborda um professor mais velho, um “catedrático” dos cursinhos, e, de forma desesperada, começa a expor desordenadamente: “Professor, professor… como faremos? A OAB, professor… A OAB incluiu essas disciplinas propedêuticas nos Exames de Ordem… Oh, céus!”.

Com a tranquilidade de quem navega em águas calmas, o “catedrático” se volta para o moço e diz: “Meu rapaz, não há o que temer, temos o total domínio do fato… Ademais, todos esses anos de técnicas para memorização, quadros mentais etc., foram muito úteis para nós. Temos um knowhow em simplificações.

Todavia, nem toda a sabedoria que emanava do experiente docente pôde trazer paz para o coração do novato. Ainda em nervos incontrolados, o jovem professor disse: “Meu senhor, com todo o respeito, dizem que vão cobrar, inclusive, conteúdos sobre a tal de hermenêutica jurídica.” Com claras marcas de horror na face, o jovem, extremamente alarmado, continuou: “Imagine se nós tivermos que estudar aquele alemão chamado alguma coisa tipo Gadâmer ou Gadamér.”

Com total despreocupação, o velho professor disse: “Mas esse Gadamér — o acento é na última sílaba, meu filho — é muito simples… Preste atenção no que vou te contar. Para esse filósofo, o grande problema da hermenêutica é a questão do método. Em especial, a questão do método nas ciências do espírito. O que ele pretende é propor um novo método para tais ciências. Diante disso, ele afirma que todo compreender pressupõe uma pré-compreensão do compreendido.”

O “catedrático” tomou mais um gole de café e, sobranceiro, continuou o “ensinamento”: “O que isso quer dizer? Quer dizer que, quando vamos interpretar um texto como a Constituição, por exemplo, e, mais especificamente, perguntar se a Constituição permite a realização do aborto para fins terapêuticos, as respostas que serão dadas a este problema coincidirão com a pré-compreensão que tem aquele que interpreta. Ou seja, variando o interprete, varia a interpretação, porque a interpretação é fruto da pré-compreensão. É algo subjetivo, entende? Cada um tem a sua pré-compreensão. No fundo, não era necessário esse alemão… como se chamava, mesmo? Ah, Gadamér… escrever um livro tão grande para dizer uma coisa tão simplória.”

O “catedrático” valorizou a cena… Lentamente, tomou outro generoso gole de café, pegou a chave de seu Mercedes e “fechou” a discussão (com chave de ouro): “Bastava ele dizer: No terreno da interpretação, tudo é relativo porque cada um possui a sua pré-compreensão do objeto interpretado. Pronto! Viu só menino, não há o que temer… como eu te disse, temos o total domínio do fato. Não sei por que tem gente que complica essas coisas. Vamos. Vá lá e prepare a primeira aula sobre hermenêutica. E arrase.”

Depois de ouvir os “lampejos de sabedoria” do “catedrático”, o jovem professor sentiu aquela sensação de paz que cabe a poucos. Percebeu que tudo era muito simples. A explanação “medalhão” do ancião “entrou pela sua alma como um jorro súbito de sol”. E lá se foi para preparar a sua arrasadora aula magna sobre o tema.

Se acham que estou exagerando, leiam de novo as citações que lancei acima, constantes em obra sobre a Resolução 75.

Numa palavra final

Tércio Sampaio Ferraz Jr ensina a diferença entre dogmática e zetética. Não é difícil. Serve para que entendamos o mínimo dos mínimos sobre o papel da reflexão jurídica. Enfim, serve para mostrar que não se faz Direito sem reflexão teórica (podemos chamar a isso de alografia jurídica). O exemplo que Tércio nos ajuda: Sócrates estava sentado na frente de sua casa e passa um sujeito correndo atrás de outro. O filósofo pergunta: “O que está acontecendo?” ao que o perseguidor responde: “Ele é um ladrão e eu devo prendê-lo”. Essa é a dogmática. Já a zetética exigiria perguntas, como: “O que é um ladrão, “o que é furtar”, há elementos que comprovem o fato”?

Pois a dogmática tem sido vista e feita desse modo. E nas últimas décadas foi se estandardizando. E virou nisso que está aí. Pentecostalizaram (sem ofensa aos pentecostais) a dogmática e o Direito. A resposta vem pronta. Direta. Do senso comum. Do realismo (filosófico) e de sua vulgada. Isso é assim porque é. Por que ler Dworkin se é possível ler um pequeno resumo em uma sebenta? Por que fazer perguntas, se podemos ter as respostas antes que estas sejam feitas?

Como venho dizendo, não é necessário que se elabore obras herméticas sobre o Direito e que sirvam para concursos públicos. Entretanto, mesmo que o livro queira apenas tratar de “noções gerais”, ainda assim estas não devem ser simplificadoras do fenômeno jurídico (e social). Portanto, não parece adequado que se busque conceitos liquefeitos, resultantes de “grau zero” ou “descobertos” do âmbito da cultura “jurídico-popular”, isto é, do entremeio da terceira divisão do Direito.

No fundo, neopenteconstalismo jurídico quer dizer: “Pedagogia da prosperidade.” Sim, é isso que a cultura fast food tem vendido. A possibilidade de se “aprender” Direito sem “estudar o Direito”. Fácil. De forma direta. Sem intermediações.

Aleluia!

Lenio Streck é professor convidado da PASSAGENS — ESCOLA DE FILOSOFIA. Em 27/04/2017, ministrará o curso “Hermenêutica Jurídica” (http://www.escolapassagens.com.br/0025.html)

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