A revolução na felicidade

Mariana Almeida
Passaparola
Published in
5 min readNov 6, 2019

--

Os patronos fundadores não estavam falando sobre bem-estar pessoal

Adriana Cavarero, filósofa italiana

02/07/2019

Todos querem ser felizes. Essa exigência vem desde Sócrates, se não até de antes, e nos mais de dois mil anos em que foi feita, adquiriu o raro status de verdade universal.

Hoje, a evidência desta verdade está ao nosso redor, no boom da indústria de autoajuda, da cultura dos fármacos alteradores de humor e mesmo na educação superior. Um artigo do New York Times de 2018 noticiou que mais de mil estudantes se matricularam em um curso em Yale chamado “Psicologia e Qualidade de Vida”, cujo objetivo era levar os estudantes a viver vida mais felizes e satisfatórias. Em 2014, iniciou-se um enorme curso on-line chamado “Ciência da Felicidade” na Universidade de Berkeley, na California. E ele continua sendo um sucesso.

Livros, artigos e podcasts dedicados à felicidade — especialmente em como ser feliz—proliferam. Explicitamente endereçados a indivíduos do que a grupos, focam a felicidade pessoal para ser aproveitada na esfera privada. Vamos cada um de nós e todos nós sermos felizes!

O tema o qual Hannah Arendt chamou de “felicidade pública” é, por contraste, enormemente ignorado por aqueles que pensam e escrevem sobre cultura contemporânea. Aparentemente, política e felicidade não andam mais juntas. A felicidade coletiva—como Sócrates a compreendia, como uma experiência política compartilhada — é em grande parte fora do contexto.

Mas eu pergunto: podemos ser felizes juntos, não simplesmente como a soma de felicidades individuais, mas porque a experiência mesma de ser e agir juntos nos faz felizes? A resposta de Arendt seria sim, e ela tinha em mente o evento histórica que deu à luz aos Estados Unidos: a Revolução Americana.

A especulação de Arendt sobre o tema é complexa. Sua tese principal é a de que a experiência da liberdade pública — descoberta na Grécia antiga, mas esquecida pela civilização que a sucedeu porque entendia poder como dominação — teve de esperar até o século XVIII e pela Revolução Americana para ressurgir. Arendt alega que os patronos fundadores foram forçados a falar sobre a felicidade pública precisamente porque eles estavam experimentando liberdade pública — uma experiência de atuar para produzir felicidade, como ela diz, “não num âmbito interno para o qual homens podem escapar da opressão do mundo”, mas algo inerente ao “espaço público, ao mercado, que a Antiguidade conheceu como o espaço em que a liberdade compareceu e ficou aparente para todos”.

Isso deixa um traço crucial, de acordo com Arendt, na famosa “busca pela felicidade, a qual a Declaração de Independência afirmou ser um dos direitos humanos inalienáveis.”

Arendt deixa isso claro, contudo, quando diz que o espírito revolucionário, conectado à redescoberta da felicidade pública, vai além da Revolução Americana. Aquele espírito se torna um legado precioso do legado da era moderna, espécie de modelo para o exercício e a busca pela liberdade política que Arendt testemunhou e escreveu durante sua vida — na participação política da revolucionária polonesa e marxista Rosa Luxemburgo; na ascensão dos comitês operários; na Revolução Húngara, a Primavera de Praga e outros movimentos. Arendt argumenta que a experiência da felicidade pública pode ser encontrada onde quer que o povo participe na abertura de um espaço político onde a liberdade seja uma realidade universal.

Compreender a ponto de vista de Arendt nos permite reconhecer o espírito revolucionário atual em movimentos atuais e suas ações políticas — exemplos de democracia radical, que continuam buscando ampliar a liberdade e a igualdade na sociedade. Podemos incluir aí a Marcha de Mulheres de 2017, quando milhares de mulheres se reuniram em Washington e outras centenas de cidades pelo mundo, em uma demonstração política de resistência enérgica e celebrante; a Marcha por nossas Vidas, em 2018, na Flórida e outros estados, em que jovens de diferentes contextos se reuniram para utilizar seu direito de discurso livre para protestar contra as armas e a violência; e em muitos movimentos que resistem ao autoritarismo, à retórica e políticas de exclusão que surgem pela Europa e Estados Unidos.

Em uma aula recém-descoberta da autora, nos anos 1960, incluída na coletânea Thinking Without a Bannister (ainda sem tradução para o português), ela escreve que, para aqueles envolvidos na Revolução Americana, a “experiência de ser livre coincidiu, ou melhor, esteve intimamente entrelaçada, com o começo de algo novo… e obviamente, este presente humano, a habilidade de começar algo novo, tem a ver com o fato de que cada um de nós veio ao mundo como novato por meio do nascimento. Em outras palavras, podemos começar algo porque nós somos iniciantes e, deste modo, principiantes.” Porque o nascimento “é a condição ontológica sine qua non de toda a política”, Arendt diz, “o sentido da revolução é a atualização de uma das grandes e mais elementares potencialidades humanas, a inigualável experiência de ser livre para iniciar um novo começo.”

A felicidade pública é algo que acontece quando nós, em público, criamos algo novo. Ainda, sabemos muitos bem que a felicidade pública não é permanente de definitiva. A despeito dessa fragilidade, agir juntos nos dá uma experiência tangível de felicidade, diferente de qualquer uma que experimentamos privadamente. A felicidade pública é descoberta quando e onde pessoas agem pelo bem da liberdade — e saboreiam o “nascimento” de suas ações.

Na época em que Thomas Jefferson e John Adams experimentaram a felicidade pública na América revolucionária, Jeremy Bentham, filósofo inglês, elaborava seu famoso axioma “a máxima felicidade para o máximo número de pessoas”, que era a medida do certo e do errado que deveria guiar os governos. A ideia foi adotada por vários pensadores utilitaristas e liberais que concebiam a felicidade como bem-estar social — a soma de indivíduos que alcançam saúde, riqueza e segurança — que o estado é chamado a produzir, ampliar e proteger.

Atualmente, com poucas exceções, nossos políticas parecem estar obcecados em definir e regular a quantidade de bem-estar que indivíduos supostamente desejam. Precisamos repensar a quase obsessiva preocupação com a felicidade individual que impregna nossa cultura. Enquanto os norte-americanos celebram a revolução que deu à luz a sua nação, devemos retomar e redescobrir a alegria de dar à luz a ações coletivas.

Sim, nos deixe ser felizes — mas publicamente, politicamente, juntos.

Adriana Cavarero é uma filósofa política, professora honorária da Universidade de Verona, na Itália, e autora da recente obra Inclinations: A Critique of Rectitude (sem tradução para o português).

Traduzido do inglês: https://www.nytimes.com/2019/07/02/opinion/a-revolution-in-happiness.html

--

--

Mariana Almeida
Passaparola

Editora de textos, estudante de literatura & outras artes