Andrea Uccini

Elena Ferrante: “Deus não causou uma boa impressão em meu eu adolescente”

Mariana Almeida
Passaparola
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3 min readApr 22, 2018

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Não tenho gosto pelo trono ao qual nos designamos declarando que somos as amadas criaturas de Deus e dos senhores do universo

Quando se trata de religião, me reconheço nas três Marias, as quais, quando foram ao túmulo e souberam pelo anjo que Jesus tinha voltado dos mortos, começaram a tremer de medo. Minha experiência religiosa parou por aí.

Aconteceu quando eu tinha por volta de 16 anos. Eu li os evangelhos um atrás do outro, e a vida inteira de Jesus me pareceu terrível. A ressureição em si era assustadora: não era uma conclusão reconfortante. Eu espero que eu tenha uma oportunidade para recontar aquela experiência adolescente de leitura em detalhes. Aqui eu direi somente que as histórias dos evangelhos pareciam demonstrar em cada passo que a natureza humana, além das declarações de sua importância e centralidade, era depravada, devotada ou para crucificar sua própria espécie e todas as outras espécies vivas, ou ser crucificada.

Mas mais importante é o fato de que mesmo o super-homem não me convenceu — na realidade, ele me assustou. Deus não causou uma boa impressão na minha sensibilidade quase infantil (16 não era madura o bastante para discutir teologia). Quando ele abandonou seu filho na cruz, ele se comportou exatamente como o pai perverso que os evangelistas Lucas e Mateus descrevem, aquele que quando seu filho pede por pães dá a ele pedras, cobras, escorpiões. E a ressureição? É realmente uma compensação justa para a extremamente dolorosa perda da vida terrena, ou só um truque horrível de mágica que não resolve as coisas na terra — e talvez nem mesmo o problema daqueles que estão no céu?

Na minha breve incursão adolescente pela religião resta só o medo que as três Marias expressam no evangelho de Marcos: seu tremor. Eu me assusto por aquilo que o mais extraordinário poeta italiano, Giacomo Leopardi, chama de “céu noturno pleno de mundos”. Também fico amedrontada pela mesquinhez vaidosa dos seres humanos quando consideram a si mesmos criaturas eleitas. Não tenho gosto pelo trono ao qual nos designamos declarando que somos as amadas criaturas de Deus e dos senhores do universo

O orgulho que deriva disso me angustia — que, apesar de sermos animais rodeados por outros animais, acreditamos que temos o direito de escravizar o resto do mundo. Isso nos faz perigosos e ao mesmo tempo ridículos. Não importa o quanto nos cercamos de poder e alta tecnologia, permanecemos criaturas cômicas, como o gato que uma criança veste pensando ser sua boneca. É urgente que nós aprendamos a confrontar nossas verdades, antes de nos destruir por nossa determinação obstinada de nos tornarmos imortais. O homem tem que fazer sua autocrítica. O futuro que me interessa é um futuro de abertura total ao outro, a qualquer ser vivo, a tudo que é dotado com o sopro da vida.

Traduzido da versão em inglês de Ann Goldstein: https://www.theguardian.com/books/2018/apr/21/elena-ferrante-god-didnt-make-good-impression

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Mariana Almeida
Passaparola

Editora de textos, estudante de literatura & outras artes