Andrea Ucini

Elena Ferrante: “Eu insisto em escrever coisas que penso que nunca colocaria em palavras”

Mariana Almeida
Passaparola
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3 min readMay 6, 2018

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Escrevo com enorme dedicação quando começo a cavar situações comuns, e insisto em expressar tudo aquilo que nos inclinamos a calar

Não há nada sobre o qual eu não escreveria. De fato, quando mais rápido percebo que algo lampejou em minha cabeça e que eu nunca colocaria isso em palavras, em insisto no ato. Algumas pessoas dizem que você deve estar atento, que escritores não deveriam necessariamente colocar tudo em palavras. E uma parte de mim está absolutamente de acordo. Eu gosto de escritas que adotam uma espécie de estética da reticência, escritas que sugerem, escritas que aludem.

Reticência é certa e boa, e certamente efetiva quando aquilo sobre o qual calamos é muito familiar a nós e a nossos leitores. É a aplicação da antiga fórmula: “Deixo o resto à sua imaginação.” E a habilidade do escritor é melhor exibida quando o que ela sugere é muito mais do que diz.

Mas eu tenho de dizer que eu escrevo com maior dedicação quando começo a cavar o comum, eu diria quase banal, situações e sentimentos, e insisto em expressar tudo o que — fora do hábito, para manter a paz — nós nos inclinamos a calar. Não estou em interessada em escrever algo novo. Estou interessada no ordinário ou, melhor, do que empurramos para dentro do uniforme do ordinário. Estou interessada em cavar isso e causar confusão, me forçando a ir além das aparências. E fazendo isso, às vezes deixo de lado disciplina e gosto, porque esses, também, parecem obliteradores. A moderação é toda errada quando a tarefa de escrever é varrer a resistência do ordinário e procurar palavras que vão arrancar, ao menos um pouco, do extraordinário que está oculto nisso. O que não é próprio para ser dito deveria, dentro dos limites do possível, ser dito.

Eu sei que isso significa que eu acaba escrevendo história que talvez irritem as pessoas, e no passado eu lamentava isso. Eu gosto das histórias que decido publicar; me afeiçoo dos personagens que criei, e me deixa triste ouvir alguns dizendo: “Você deveria ter parado, mas não, você continua, você vai mais fundo — até demais, basta.” Eu falo de pessoas me avisando que o protagonista de uma história deveria ser amável, não deveria ter sentimentos terríveis nem fazer coisas desagradáveis.

Uma vez, um livro meu, traduzido e pronto para ser impresso, não foi nem publicado, porque — foi dito — poderia ter uma má influência em mães. Talvez. Nós nunca sabemos que efeito as histórias que escrevemos têm. E se nós, como escritores, falhamos, leitores têm o direito de nos punir — não lendo nossas obras.

Mas eu ainda penso que aqueles que mais ou menos arbitrariamente têm o trabalho de contar histórias não deveriam se preocupar com a serenidade individual dos leitores; melhor, eles deveriam construir uma ficção capaz de ajudar a procurar a verdade da condição humana.

Traduzido da versão do inglês de Ann Goldstein: https://www.theguardian.com/lifeandstyle/2018/may/05/elena-ferrante-insist-on-writing-things-never-put-in-writing

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Mariana Almeida
Passaparola

Editora de textos, estudante de literatura & outras artes