Elena Ferrante: “Não tenho muita confiança em quem diz ‘Aqui está um livro verdadeiramente novo’

Mariana Almeida
Passaparola
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3 min readAug 3, 2018

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Não existem trabalhos que rompam totalmente com o passado, trabalhos que o excluam, trabalhos que sejam um ponto de virada

Teve uma fase — em um passado distante, ainda bem — que eu estava convencida de que uma história tinha que ser absolutamente nova, incomparável a nenhuma outra a não ser consigo mesma, ou deveria ser descartada. Era uma atitude muito presunçosa e, ao mesmo tempo, extremamente ingênua. Eu me atribuía dotes e talentos extraordinários, e se eles não se manifestassem em trabalhos de absoluta e preciosa singularidade, eu teria que empreendê-los, mesmo que estivesse traindo a mim mesma, por preguiça ou descuido, ou porque minha suposição era completamente infundada. Em outras palavras, o que eu escrevia tinha que ser melhor que — e ao mesmo tempo completamente diferente — os livros que eu amava e que inspiraram meu desejo de contar histórias.

Hoje, não tenho muita fé em quem diz: “Aqui está um livro verdadeiramente novo.” O que é realmente novo em literatura é somente nossa capacidade de utilizar a tradição, o repositório, da literatura mundial. Estamos imersos naquilo que nos antecedeu. Não falo dos livros didáticos que colocam os autores em cronologia, suas vidas e obras, do começo até agora, nem falo das listas meticulosas que lemos, começando de nossa infância. Não existe nenhum antes para o qual somos o depois. Toda a literatura, grandiosa ou pequena, é, nesse sentido, contemporânea: se aglomera ao nosso redor enquanto escrevemos; é o ar que respiramos.

Consequentemente, nossas páginas nunca são “novas”, no sentido que a indústria cultural dá a esse adjetivo. Nenhum autor produz textos sem pagar seus tributos. Não há obras que rompam com o passado, que o excluam — nenhuma obra que seja um ponto de virada. in the sense that the culture industry gives the adjective. No author produces texts without debts. There are no works that make a clean break with the past, works that exclude it — no truly watershed works. A novidade literária — se alguém insiste no conceito- existe no sentido que cada indivíduo habita o magma de formas no qual ele está imerso. Então, “ser você mesmo” é uma tarefa árdua — talvez impossível.

Ser você mesmo não significa ser “novo”. Me surpreendo com aqueles que provocativamente lisonjeiam sua própria “novidade”, que se consideram únicos, que não querem admitir suas influências. É uma demonstração espetacular de arrogância, o uso da mídia; ou a manifestação do terror de não ter nenhuma individualidade — como se só fosse possível provar isso negando a matéria literária estabelecida e que nos formou. Nem mesmo Homero nunca foi “novo”.

O autor individual toma forma toda vez, graças ao esforço de desconstruir a tradição literária e recolocá-la em formas surpreendentes. E isso não é uma coisa pequena.

Traduzido da versão em inglês de Ann Goldstein: https://www.theguardian.com/lifeandstyle/2018/jul/21/elena-ferrante-no-truly-new-books

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Mariana Almeida
Passaparola

Editora de textos, estudante de literatura & outras artes