Andrea Ucini para o The Guardian

Elena Ferrante: “Nada é comparável à alegria de trazer outra criatura vivente ao mundo”

Mariana Almeida
Passaparola
3 min readMar 10, 2018

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Homens sempre tiveram inveja dessa experiência que é nossa, somente

Eu fui uma mãe terrível, uma ótima mãe. A gravidez muda tudo: nosso corpo, nossos sentimentos, a ordem hierárquica de nossas vidas. A convenção pela qual nos sempre nos consideramos a nós mesmas únicas e indivisíveis falha. Agora temos dois corações, todos nossos órgãos são duplicados, nosso sexo é duplicado — nós somos mulher mais mulher, ou mulher mais homem. E nós somos divisíveis, não metaforicamente, mas na aguda realidade de nosso corpo.

A primeira fez que fiquei grávida, foi difícil de aceitar. A gravidez era uma luta mental ansiosa. Eu sentia isso como um colapso de um equilíbrio já precário em si, como a revelação da natureza animal escondida na frágil máscara do humano. Por nove meses eu estive em uma gangorra de alegria e horror. O parto foi terrível, e foi maravilhoso. Cuidar de um recém-nascido, sozinha, sem ajuda, sem dinheiro, me exauriu; eu mal dormia. Eu queria escrever e nunca tinha tempo. E se tinha um pouco, ficava concentrada só por alguns minutos e caía no sono, insatisfeita. Até que as poucos tudo começou a parecer, a mim, extraordinário. Hoje penso que nada se compara à alegria, ao prazer, de trazer outra criatura vivente ao mundo.

Claro, isso me distanciou por um bom tempo de minha paixão de escrever. Quando menina, eu me imaginava sem filhos, inteiramente absorvida por meus próprios anseios. Eu admirei mulheres que não tinham filhos por escolha própria, e ainda entendo a rejeição à maternidade. O que não tolero mais é a falta de compreensão com mulheres que fazem o possível para engravidar. No passado, eu tinha uma atitude irônica, eu pensava: se você quer tanto filhos, adote-os. Hoje penso que a coisa mais excepcional em minha vida foi conceber e dar à luz.

Os homens sempre tiveram inveja dessa experiência que é nossa, somente, e às vezes sonharam — nos mitos, em certos ritos — com formas de gravidez masculina. Não só isso: eles imediatamente apropriaram a concepção e o parto metaforicamente. Eles concebem ideias, dão à luz a trabalho. E eles nos convenceram de que já que nós temos a prerrogativa da maternidade, a profunda prerrogativa humana de dar forma ao mundo por meio de trabalhos sublimes é deles somente.

Mas agora nós estamos demonstrando que nós, também, somos capazes de criar nascimentos metafóricos, e sombras começam a se desenhar sobre a maternidade, que me parecem ameaçadoras. Um útero pode ser comprado. E em meio às incontáveis próteses que vão fazer avançar as conotações do humano existe uma, o útero artificial, que vai nos libertar dos dessabores da gravidez.

Eu acredito que nesse caso nós não devemos, absolutamente, ser libertadas. Crianças são próteses maravilhosas do nosso corpo incrível, e não as doaremos a ninguém, literalmente, não a pais loucos, não à nação, nem mesmo às maquinas que prometem uma humanidade perfeitamente desumana.

Da tradução de Ann Goldstein para o inglês: https://www.theguardian.com/lifeandstyle/2018/mar/10/elena-ferrante-nothing-comparable-joy-bringing-another-creature-into-world

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Mariana Almeida
Passaparola

Editora de textos, estudante de literatura & outras artes