Ilustração: Andrea Ucini

Elena Ferrante: “Rindo, nós sentimos o domínio dos poderosos em nossa vidas diminuir”

Mariana Almeida
Passaparola
2 min readMar 4, 2018

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A risada é um curto, muito curto, sinal de alívio

Eu rio com vontade, sem freio, e tão forte que os músculos em volta da minha boca doem. Gosto também de fazer as pessoas rirem, mas não sou muito bem sucedida nisso; em geral o que me parece cômico não faz mais ninguém rir.

Eu lembro de um símbolo que era muito divertido quando eu era uma menina. Você tem que imaginar a placa que proíbe buzinar: uma corneta em um círculo, riscada por uma listra diagonal. Perto disso tem um conversível e um pedestre lerdo que impede o carro de prosseguir. O motorista está debruçado no para-brisas e tocando o violino na orelha do pedestre. Eu ria, e minhas amigas diziam: “Por que você acha isso tão engraçado?”

Sim, por quê? Ainda não está claro para mim. Eu gosto do humor que deriva de situações assim, e eu me dou bem com qualquer um que invente esse tipo de coisa.

Talvez eu ria porque o símbolo da corneta é lido ao pé da letra: tocar a buzina é proibido, tocar violino não, e então isso se transforma num trabalhão só para sinalizar ao pedestre que é melhor ele se mexer. Talvez eu ria porque me parece que recorrer ao violino não é só uma estratégia de contornar a proibição, mas sugere substituir o barulho irritante por algo mais delicado. Talvez eu ria porque proibições sempre me deixaram ansiosa, e uma transgressão polida, quase uma não transgressão, relaxa a tensão.

Rir para mim só pode produzir uma coisa: esticar o que está tenso ao ponto do intolerável. De outro modo, me parece que é excessivo. Eu nunca acreditei que o riso é capaz de colocar um fim nas injustiças do mundo. Nenhum poder nunca se rendeu um centímetro graças ao riso. Ridicularizar, sim, incomodar os poderosos, mas não enterrá-los. E ainda sim, no momento em que rimos, sentimos o domínio dos poderosos em nossa vida diminuir um pouco. A risada é um curto, muito curto, sinal de alívio.

Deve ser por isso que o riso que mais me interessa, no contexto de uma história, é um riso deslocada, o riso que explode em situações em que rir é inconcebível, de fato parece um crime. Existe um momento como esse em A voz do mestre, de Stanislaw Lem: uma criança de nove anos, confrontada pela morte agonizante e intolerável de sua mãe, entra em seu quarto, faz caretas na frente do espelho e ri. Aquele riso em face do insuportável é arriscado para a literatura, e é o riso que mais me interessa.

Traduzido em inglês por Ann Goldstein: https://www.theguardian.com/lifeandstyle/2018/mar/03/elena-ferrante-when-laughing-feel-grip-powerful-lives-relax

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Mariana Almeida
Passaparola

Editora de textos, estudante de literatura & outras artes