Andrea Uccini

Elena Ferrante: “Sonhar com o retorno ao passado é a negação da juventude”

Mariana Almeida
Passaparola
3 min readMar 24, 2018

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Eu amo pessoas jovens que lutam para dar à sua época uma nova forma e exigem um vida melhor para a humanidade

Eu gosto muito de me reconhecer em minhas filhas e, ao mesmo tempo, sentir que elas fazem o máximo para serem diferentes de mim. Mesmo quando essas atitudes me deixam nervosa, elas parecem positivas. Não se passou um dia sem que elas me dissessem, de modo mais ou menos sutil, que eu pertenço ao passado. Não se passou um dia sem que elas observassem que o que eu estava dizendo era banal e fora de sincronia com o presente, que é a especialidade delas. Nem um dia se passou sem que elas pusessem em competição sua inteligência contra a minha, e o objetivo é sempre o mesmo: fazer com que eu saiba que devo ficar calada. Sem falar em todas as vezes em que eu tive problemas com o computador ou algum aparelho eletrônico, elas intervieram para me lembrar de que eu pertencia à era da caneta-tinteiro e do orelhão.

Eu olho para elas e, às vezes com satisfação, outras alarmada, vejo eu mesma em seus corpos, em seus tons de voz. Partes minhas vêm à tona por alguns segundos, e eu mal tenho tempo de reconhece-las, quando como, em uma página que você acabou de escrever, percebe lampejos da tradição literária por trás de você. Elas, naturalmente, não notam, e isso é bom. Espero que elas tenham o máximo de tempo possível para se declararem milagrosamente novas e prontas, para que possam me ensinar uma coisa ou duas. Eu também me sentia diferente de minha mãe e afastei sua geração para dar lugar à minha. A crueldade das últimas chegadas, quando elas sentiram que eram as primeiras a vir ao mundo, é necessária.

Eu temo enormemente a geração que não deixa, orgulhosamente, seus pais para trás. Mas também estou assustada por aqueles que, aos 20, deixam os pais para trás para seguir as tradições de seus avós ou tataravós. Eu não entendo os jovem que querem substituir o mundo de hoje pela era de ouro, quando todo mundo sabia seu lugar, isto é, em uma ordem baseada em hierarquias sexistas e racistas. De vez em quando, especialmente quando eles se declaram fascistas, eles nem se parecem com gente jovem, e eu me inclino a trata-los com mais dureza do que as pessoas mais velhas que os inspiraram. Sonhar com o retorno ao passado é a negação da juventude, e me entristece descobrir que mulheres jovens, também, sonham esses sonhos.

Eu amo pessoas jovens que lutam para dar à sua época uma nova forma e exigem uma vida melhor para a humanidade. Eu espero que minhas filhas permaneçam nesse caminho por um longo tempo. Então — é a ordem natural das coisas — quando envelhecerem, elas me descobrirão em seu interior, percebendo detalhes físicos, traços de personalidade, pensamentos, e vão aprender a me dar as boas-vindas, dar lugar a mim. Como aconteceu com minha mãe e eu, elas descobriram que, mesmo admitindo que são um pouco como eu, elas continuarão a ser elas mesmas. Na verdade, elas serão elas mesmas mais plenamente, com mais autonomia.

Da tradução de Ann Goldstein para o The Guardian: https://www.theguardian.com/lifeandstyle/2018/mar/24/elena-ferrante-leave-parents-behind-daughters

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Mariana Almeida
Passaparola

Editora de textos, estudante de literatura & outras artes