Em rara entrevista, Elena Ferrante descreve o processo de escrita por trás da tetralogia napolitana

Em rara entrevista, Elena Ferrante descreve o processo de escrita por trás da tetralogia napolitana

Mariana Almeida
Passaparola

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Sete anos atrás, bastou um livro para a recém-conhecida romancista italiana se tornar uma das mais proeminentes personalidades da primeira metade do século XXI. O que fez o fenômeno ainda mais inédito foi que ele envolveu uma autora que escreveu um épico com inegáveis ambições literárias, não um livro para jovens leitores, como a série Harry Potter. Era uma saga com numerosas alusões à história italiana, ancorada geograficamente em um pequeno canto de Nápoles, e esses fatos pareciam condenar antecipadamente o sucesso da obra para a exportação.

Mas o triunfo de “Amiga genial” é também surpreendente porque sua autora não se promove de modo algum. Elena Ferrante é uma mulher sem rosto, cuja identidade é conhecida apenas por sua editora italiana, E/O. Seu nome é um pseudônimo, e que soa uma discreta homenagem à grande romancista italiana Elsa Morante, autora de “A ilha de Arturo” — cujo trabalho, Ferrante diz aqui, ela sempre apreciou. Ninguém conseguiu revelar a identidade de Ferrante, embora alguns nomes tenham circulado na imprensa: Domenico Starnone, um roteirista e romancista napolitano, e vencedor do prêmio Strega em 2001; ou Anita Raja, uma tradutora romana. Quase dois anos atrás, o jornalista italiano Claudio Gatti publicou um furo, identificando Raja como Ferrante, depois de escrutinar suas finanças e impostos e decidir que suas posses excediam o pagamento médio que uma pessoa receberia em uma profissão como a dela. Contra todas as possibilidades, a suposta revelação da identidade de Ferrante provocou um escândalo mundial.

Para seus leitores, Ferrante deveria ter o direito de permanecer anônima, como ela desejava. Uma comoção internacional se ergueu, de leitores irritados que lutaram para proteger a escritores que amavam, e cujo anonimato desejavam preservar. Nada parecido tinha sido visto antes.

A série que começa com “Amiga genial” vendeu mais de 5.5 milhões de cópias em 42 países, com mais de 2 milhões de cópias vendidas nos Estados Unidos. Publicado na América pela Europa Edições, os livros são o resultado bem sucedido de uma política editorial que favorece trabalhos com bastante demanda e paciência diante das gratificações instantâneas. Para profissionais da literatura, é um sinal que em tempos de covardia, há outro caminho para seguir: em vez de publicar livros de auto-ajuda para pessoas tolas, você pode alcançar um grande pública apostando em literatura de verdade.

De onde vem o grande entusiasmo para o tumultuoso retrato de Lila e Elena (também chamada de Lenù), os produtos de um bairro napolitano periférico e subdesenvolvido, cuja amizade começa nos finais da década de 1950? Além da ânsia por longas narrativas, que vemos também no boom das séries televisivas, leitores do mundo todo parecem querer ler sobre sentimentos genuínos. Quem entre nós nunca sonhou em viver complexos e fascinantes relacionamentos como os dessas amigas “geniais”? Lila desiste de estudar para trabalhar na fábrica de sapato da família, enquanto Elena decide receber uma educação clássica e termina deixando Nápoles para procurar seu destino profissional em outro lugar. A proliferação de tramas e a multiplicidade de personagens, em um tempo em que a simplicidade é o traço distintivo, é uma sedução maior. O fato é que o livro é primeiro e sobretudo uma máquina de guerra: seduz lentamente e possui até o momento um poder nunca visto de atração e aquele irresistível je ne sais quoi que o faz, de uma hora para outra, um sucesso.

E Ferrante? Por trás de sua máscara, a romancista destila a seu público declaração em pílulas, como uma farmacêutica. As intervistas que ela dá podem ser contadas nos dedos, e foram conduzidas exclusivamente via e-mail, com sua editora italiana como intermediária. Seu desejo pelo anonimato não é negociável. Para ela, uma vez que o livro tenha sido terminado, deve existir por si mesmo. Quebrando seu quase constante silêncio aqui, ela explica como conceber a “Amiga genial” em segredo. Ela confidencia sua profunda alegria ao escrever e fala do prazer que sentiu em respondeu à curiosidade dos leitores por meio dos volumes escritos. Longe de se trancar na torre de marfim, ela discute o #metoo e lança um apelo aos permanentes ganhos do feminismo. Ela compara as experiência de grandes atrizes de Hollywood às das mulheres pobres de Nápoles, em uma comovente defesa. Por fim, nos dá algumas pistas inéditas que nos ajudam a entender não quem ela é, mas algo que dá no mesmo: por que ela escreve.

Você se lembra quando você teve a primeira ideia para a “Amiga genial”?

Não posso dar uma resposta precisa. Talvez tenha suas origens na morte de uma amiga minha, ou num casamento lotado, ou talvez na necessidade de retornar aos temas e imagens de um livro passado, “A filha perdida”. Nunca se sabe de onde uma história vem; é o produto de uma variedade de sugestões que, juntas com outras que você não perceber e nunca vão existir, excitam sua mente.

Você sabia desde o início que o trabalho complete exigiria a escrita de quatro volumes?

Não. Na primeira versão, a história de Lila e Lenù coube facilmente em um só, substancioso volume. Só quando comecei a trabalhar naquele primeiro manuscrito eu entendi que seria dois, três, quatro volumes.

A história inteira estava planejada antes do começo da escrita?

Não, eu nunca planejo minhas histórias. Um esboço detalhado é o bastante para que eu perca o interesse pela coisa toda. Mesmo um sumário breve, oral, faz com que o meu desejo de escrever esvaneça. Sou uma daquelas que começa a escrever sabendo só algumas características essencial da história que pretendo contar. O resto se descobre linha a linha.

O primeiro livro da série foi publicado [na Itália] em 2011, o ultimo em 2014 — um curto período de tempo para tão ambicioso empreendimento. Você escreveu a maioria da série antes da publicação do primeiro volume? Pode nos dizer algo sobre o tempo de escrita/publicação do romance?

Comecei em 2009 e levei um ano, mais ou menos, completando a história inteira, com seus vários pontos de virada. Então comecei a revisar, e descobri com grande prazer que desde a primeira página o texto se expandia; crescia e crescia, se tornando mais detalhado. No fim de 2010, dado o número de páginas que se acumulava meramente pelo fato de contar a história da infância e adolescência de Lila e Lenù, a editora e eu resolvemos publicá-lo em mais volumes.

Imagino que quando o primeiro romance da série foi publicado, foi possível escrever com tranquilidade. E então veio o extraordinário sucesso, que poderia ter colocado em xeque sua escrita. Como você foi capaz de manter seu trabalho imperturbável diante do sucesso avassalador?

Foi uma experiência completamente diferente para mim. Quando criança, gostava de contar histórias e descobrir palavras eficazes para a pequena audiência de crianças da minha idade que se juntavam ao meu redor. Era eletrizante sentir o encorajamento delas, sentir que meus ouvintes queriam que eu continuasse, de retomar a história no outro dia, na próxima semana. Era uma empreitada excitante e uma responsabilidade excitante. Acho que senti algo parecido entre 2011 e 2014. Uma vez que estava desligada do clamor midiático — o que foi possível graças à ausência que escolhi em 1990 — o prazer da infância retornou: de dar forma a uma história enquanto uma crescente, vasta e atenta audiência quer que você conte mais e mais. Enquanto os leitores liam o primeiro volume, eu estava refinando e terminando o segundo; enquanto liam o segundo, refinava e completa o terceiro, e assim por diante.

Olhando para trás, como você descreveria seu processo de escrita? Foi espontâneo e suave desde o início? Ou, ao contrário, você teve momentos de dúvida? Você precisou de muitas provas, com muitos cortes e edições?

No passado, tive muitos problemas com a escrita. Sempre escrevi, desde a adolescência, mas era uma luta, e eu geralmente estava insatisfeita com o resultado. A consequência é que eu raramente estava convencida que eu deveria publicar. No caso dessa longa história, as coisas foram diferentes. A primeira prova saiu ser esbarrar em nenhum obstáculo: o puro prazer de contar uma história foi dominado. E também, o trabalho que se seguiu nos próximos anos foi surpreendentemente fácil, uma espécie de festa permanente. O aperfeiçoamento dos quatro volumes, seu polimento para publicação, foi essencialmente fiel às cruas primeiras provas e ao mesmo tempo o material foi expandido e adensado. Não houve crise, em outras palavras, nem dúvidas, poucos cortes, pouca reescrita, uma cascata de novas inserções. Na minha cabeça, fica a impressão de uma onda gigante, e quando acaba, você fica feliz de ainda estar viva.

Em uma carta a Mario Martone, você disse que qualquer distração poderia fazer a escrita parecer desnecessária, pontuando a fragilidade dela. No entanto, nenhum escritor parece mais forte do que você, e mais capaz de construir um trabalho de ficção colossal. Você concordaria que essa combinação de fragilidade e força é essencial para a sua escrita?

Meu maior medo é o de subitamente sentir que devotar tanto da minha vida à escrita seja algo sem sentido. É uma sensação que tenho com frequência, e acho que terei novamente. Preciso de muita determinação, teimosia, aderência apaixonada à página, para não sentir a urgência dos outros compromissos, um jeito mais ativo de passar a vida. Então sim, sou frágil. É muito fácil para mim me distrair com outras coisas e sentir culpa. E então eu preciso de orgulho, mais do que força. Enquanto escrevo, tenho que acreditar que compete à mim contar esta ou aquela história, e que seria errado evitar ou não complete-la com a melhor das minhas habilidades.

De onde vem a energia vital da sua escrita?

Eu não sei se minha escrita tem a energia que você fala que tem. Claro, se essa energia existe, é porque ou não encontra outros canais ou, conscientemente ou não, recusei escoá-la por esse outros canais. Claro, quando escrevo, eu extraio partes de mim mesma, de minha memória, que são agitadas, fragmentadas, que me deixam desconfortável. Uma história, a meu ver, só vale a pena ser escrita se sua alma emerge dali.

Na sua descrição, Nápoles é áspera, violenta e desagradável, e ainda mais na segunda metade do quarto volume, na qual Lila and Lenù tem que enfrentar a violência de todo lado. Você presenciou atos de extrema violência em Nápoles? Como os napolitanos respondem à violência em todos esse anos, e eles desenvolveram um entendimento próprio da violência inata aos seres humanos, você pode compartilhar isso conosco?

Uma pessoa precisa ter mita sorte para não ser minimamente tocada pela violência e suas várias manifestações em Nápoles. Mas talvez seja a verdade de New York, Londres, Paris. Nápoles não é pior que as outras cidades da Itália ou do mundo. Eu levei muito tempo para entender isso. No passado, eu pensava que só em Nápoles as leis perdiam continuamente seus limites e se confundiam com a subversão, que só em Nápoles bons sentimentos rapidamente, violentamente, sem rompimento, se tornavam maus sentimentos. Hoje me parece que o mundo todo é Nápoles e que Nápoles tem o mperito de sempre ter se apresentado sem máscara. Como é uma cidade, naturalmente, de uma beleza espantosa, o feio — criminalidade, violência, corrupção, conivência, o medo agressivo em que vivemos indefesos, a deteração da democracia — se sobressai.

Lila e Lenù sofrem muito ao longo dos livros. Por que você escolher submetê-las a tantas e trágicas experiências de todo tipo?

Não me parece que o sofrimento delas seja muito diferente daquelas que as mulheres sofrem todos os dias em toda parte do mundo, especialmente se nasceram pobres. Lila e Lenù se apaixonam, casam, são traídas, traem, procura seu papel no mundo, enfrentam discriminação, dão à luz, criam os filhos, são às vezes feliz, às vezes infelizes, experimentam perda e morte. Eu uso o romance, com moderação. O laço emocional que estabelecemos com as personagens é geralmente o que faz sua história parecer uma série de eternas desventuras. Na vida, como nos romances, nós temos consciência da dor dos outros, sentimos seu sofrimento só quando aprendemos a amá-los.

No quarto volume, porque escolheu fazer com que Nino fosse tão cruel e superficial?

Eu queria descrever os efeitos da superficialidade quando combinada à boa educação e inteligência moderada. Nino é inteligente, mas superficial, um tipo de homem com o qual estou muito familiarizada.

Por que a narrativa implicava o traumático e aterrorizante desaparecimento de Tina, no quarto volume, perto do fim da história?

Aqui eu meu nego a dizer minhas razões — prefiro que os leitores descubram de sua própria maneira. Só enfatizo que o evento foi sempre, mesmo antes de eu começar a escrever, um dos poucos definidos e inevitáveis momentos da jornada narrativa que tinha em mente.

Lila é uma entusiasta das ferramentas eletrônicas, como computadores. Ela parece tomada de um instinto brilhante, e mesmo assim, surpreendentemente, entende esses aparelhos lógicos. Ela é mais imprevisível que Lenù é o contrário?

Lila, nas minhas intenções, nunca é uma entusiasta. Ela aplica sua inteligência em qualquer coisa, por uma razão ou outra, e isso acontece no campo de ação que ela atribui a si mesma, começando pelo momento que ela é forçada a largar a escola. É porque seu paz é sapateiro que ela desenha sapatos. É porque Enzo está fazendo um curso da IBM por correspondência que ela se envolve com os aparelhos eletrônicos. Diferente de Lenù, que usa a educação para forçar as fronteiras do bairro e escaper, impaciente por escrever, Lila age brilhantemente nas reviravoltas, sem esgotar suas próprias capacidades em qualquer uma das coisas com as quais está envolvida. Se quisesse colocar esquematicamente, o único projeto a longo prazo que realmente anima Lila é a vida de sua amiga.

No livro, as mulheres lutam. Os homens geralmente tiram vantagem delas. Como você se sente em relação aos protestos do #MeToo pelo mundo?

Acredito que colocaram um holofote nas questões que mulheres sempre souberam e que sempre silenciaram. A dominação patriarcal, mesmo — apesar das aparências — no ocidente, é muito enraizada, e cada uma de nós, nos mais diversos lugares, nas mais variadas formas, sofremos a humilhação de ser uma vítima silenciosa ou uma cúmplice medrosa ou uma rebelde relutante ou mesmo uma acusadora diligente das vítimas mais do que dos estupradores. Paradoxalmente, não sinto que há grandes diferenças entre as mulheres do bairro napolitano cuja história eu contei e as atrizes de Hollywood ou as mulheres refinadas e instruídas que trabalham nos mais altos níveis do sistema socioeconômico. E levantar a voz e dizer “Eu também” parece uma coisa boa, mas só se mantivermos um senso de proporção: causas justas em particular são prejudicadas pelo excesso. Embora o poder de grandes e pequenos [ofensores] no centro do mundo ou nas periferias resida em não se envergonhar das várias formas de assédio e estupro, eles nos sujeitam a isso e, por meio de um estratagema repulsive, nos fazem pensar que somos nós que temos de ter vergonha.

Você antevinha — e pedia — por um novo feminismo, como o que emana do #MeToo?

Um certo desdém pelo feminismo de mães e avós se espalhou entre as novas gerações recentemente. Há uma convicção que alguns poucos direitos são um fato natural e não produtos de batalhas extremas na cultura e na política. Espero que as coisas modem e que as garotas percebam que temos milênios de subserviência por trás de nós, que a luta deve continuar e que se abaixarmos a guarda, não custará muito para eliminar todos esses direitos, ao menos no papel, que quatro gerações de mulheres tiveram grande dificuldade em ganhar.

Você concorda que seu romance pertence a uma tradição de narrativas populares (como as de Alexandre Dumas), com muita ação e personagens, mais do que a uma modernista, mais minimalista e aproximada da contação de histórias?

Não. Eu posso decidir usar alguns mecanismos poderosos da literatura popular, mas eu faço, goste ou não, de um modo completamente diferente daquele que está inserido nessa tradição e executando essa tarefa. Eu digo isso com algum arrependimento, eu não seria capaz de ser um Dumas. Se inserir na grande tradição do romance popular não quer dizer trair, pelo bem ou pelo mal, esse tipo de narrativa mas usá-lo, distorcendo-o, violando suas regras, quebrando suas expectativas, tudo a serviço da história do nosso tempo. Vasculhando o grande depósito histórico do romance e do anti-romance hoje em dia, na minha opinião, é um dever de qualquer pessoa que tenha como profissão ser um narrador. Diderot escreveu “A religiosa”, mas também “Jaques, o fatalista”. Podemos borrar os limites entre experiência literária que são diferentes entre si e usar os dois, ao mesmo tempo, para dar uma forma ao momento histórico. Muita ação, muitos personagens ou o minimalismo que você cita, tomados separadamente, não nos levam longe. Vamos tentar nos livrar dessas prisões inúteis.

Você uma vez disse que descobriu Flaubert quando era bem jovem, em Nápoles. Qual foi a primeira vez que se apaixonou por um livro, um personagem, pela literatura?

Sim, eu amei “Madame Bovary.” Como mulher, quando li, eu trouxe as histórias e as personagens para o mundo que eu vivia, e “Emma,” não sei por que, parecia muito próxima de muitas mulheres da minha família. Mas muito antes de “Madame Bovary,” eu amei “Little Women,” amei Jo. Este livro foi a origem do meu amor pela escrita.

Você foi influencidas por escritoras mulheres (provavelmente francesas, como Colette, Duras etc)?

Quando menina, eu lia uma série de coisas, sem ordem, e não prestava atenção ao nome dos autores — fossem eles homens ou mulheres, isso não me interessava. Eu estava encantada por Moll Flander, pela Marquesa de Merteuil, por Elizabeth Bennet, por Jane Eyre, por Anna Karenina, e não me importava com o sexo do escritor. Mais tarde, nos anos 70, eu comecei a me interessar em coisas escritas por mulher. Se penso nas escritoras francesas, li quase tudo da Marguerite Duras. Mas o livro dela com o qual passei mais tempo, estudei mais detidamente, foi “The Ravishing of Lol V. Stein”; é seu livro mais complexo, mas com o qual você mais pode aprender.

Como você se sente sobre escrita feminina? Você acha que essa categoria existe — que há escrita feminina e masculina? Por exemplo, Elsa Morante versus Hemingway? E seu próprio estilo, você diria que é a combinação do masculine e do feminino?

Certamente, existe uma escrita feminina, mas mais por causa do fato de que mesmo a escrita é condicionada poderosamente pela construção histórico-cultural de gênero. Dito isso, gênero possui cada vez mais uma rede extensa, suas regras têm sido flexibilizadas, e é mais e mais difícil de reconstruir o que nos influenciou e formou como escritores. Por exemplo, eu aprendi com os livros que amei e estudei, escritos por homens e mulheres, e posso facilmente nomeá-los, mas eu também sinto muito carinho pelas frases cuja proveniência eu não mais me lembro, sejam elas de homens ou de mulheres. O aprendiz de literatura, em resumo, passa por vias difíceis de serem identificadas. Então eu evitaria dizer que fui formada por este ou aquele autor. Acima de tudo, evitaria dizer que fui formada essencialmente pela escrita feminina, mesmo que tenha amado e continue amando “Menzogna e sortilégio”, de Elsa Morante. Nós estamos em um período de grandes mudanças, e a representação de gênero está em risco de ser não só não convincente, mas não válida.

Quando você lê um livro, o que mais gosta?

Eventos inesperados, contradições significativas, guinadas súbitas da linguagem, da psicologia das personagens.

No livro, a maternidade é inimiga da escrita (Lenù está tão ocupada criando suas filhas que não consegue ter a concentração que precisa). Em sua própria experiência, como é melhor escrever? Sozinha? Sem ver ninguém? Vivendo reclusa? Ou, pelo contrário, saindo muito, retirando inspiração das relações com outras pessoas, apaixonada?

Quando uma pessoa está apaixonada, escreve bem. E, em geral, quando alguém não tem experiência de vida, do que vai escrever? Passar o tempo focado só em escrever é a ambição de um adolescente, e um adolescente triste. Viver é romper permanentemente com a escrita, mas sem isso, escrever é apenas tocar superficialmente a superfície de um lago. Dito isso, a vida, quando tem a força de uma onda gigante, pode devorar o tempo de escrita. A maternidade, em minha experiência, é certamente capaz de varrer a necessidade de escrita. Conceber uma criança, trazê-la ao mundo, criá-la é uma experiência maravilhosa e dolorosa que durante um longo período de tempo — especialmente se você não tem dinheiro para comprar tempo e energia de outras mulheres — toma o espaço e o significado de todo o resto. Naturalmente, se a necessidade de escrever é muito forte, você, mais cedo ou mais tarde, vai conciliar as coisas e conseguir achar algum espaço. Mas isso acontece em todas as experiências da vida. Elas colidem conosco, nos dominam, e então, se não acabamos mortas em um canto, escrevemos.

Foi difícil acordar um dia e pensar “A história de Lila e Lenù acabou. Eu terminei.” , como dar à luz e imediatamente se sentir de algum modo vazia?

A metáfora do nascimento aplicada aos trabalhos literários nunca me convenceu. A metáfora da tessitura me parece mais efetiva. Escrever é uma das próteses que inventamos para dar mais poder ao nosso corpo. Escrever é uma habilidade, é forçar nossos limites naturais, requer longo treinamento para assimilar técnicas, usá-las com perícia e inventar novas, se acharmos que precisamos delas. Tecer diz isso muito bem. Trabalhamos por meses, anos, tecendo um texto, o melhor que podemos fazer no momento. E quando acabamos, está lá, para sempre ele mesmo, enquanto mudamos, prontos para tecer novos textos.

Você já consider escrever uma sequência, ou histórias paralelas (como J.K. Rowling fez com Harry Potter)? O final permite isso, não?

Não, a história de Lila e Lenù terminou. Mas sei outras histórias e espero ser capaz de escrevê-las. Quando a publicá-las, não sei.

Seu romance valorize a amizade mais do que tudo, até mais do que o amor, que é imprevisível e pode desaparecer. Você valorize a amizade nesse nível, em sua própria vida?

Sim, amizade tem a ver com amor, mas corre um risco menor de ser arruinada. Não está constantemente ameaçada pelas práticas sexuais, pelo perigo que existe na mistura entre sentimentos e no uso dos corpos para dar e receber prazer. Amizade que envolve sexo está mais difundida agora do que no passado, um jogo de corpos e afinidade eletivas que tenta manter à margem o poder do amor e o rito do sexo. Mas no que isso resulta eu não sei.

Perguntei a muitos escritores sobre de onde eles escrevem. O mais recente foi Tom Wolfe, descrevendo sua mesa e as cores da parede de seu escritório — azuis. Você poderia descrever o lugar do qual escreve (e se não, pode falar sobre os objetos pelos quais você tem carinho e que ficam perto de você quando está escrevendo)?

Escrevo em qualquer lugar. Não tenho um cômodo próprio. Acho que gostaria de um lugar nu, com paredes brancas e vazias. Mas é mais uma fantasia estética do que uma necessidade real. Quando escrevo, e está indo bem, rapidamente me esqueço de onde estou.

Essa entrevista apareceu originalmente na revista francesa L’Obs em janeiro de 2018. Jacob é resenhista do L’Obs e autor do livro “La guerre littéraire” (Héloïse d’Ormesson editora).

A tradução é feita a partir do inglês, publicada no LATimes: http://www.latimes.com/books/la-ca-jc-elena-ferrante-interview-20180517-htmlstory.html

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Mariana Almeida
Passaparola

Editora de textos, estudante de literatura & outras artes