Ensinando a literatura de mulheres loucas

Sobre as noções de doença mental e gênero e quem “merece” ter depressão

Mariana Almeida
Passaparola
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12 min readOct 15, 2019

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Sarah Fawn Montgomery

24 de setembro de 2018

Narramos nossa vida nos termos da temporalidade — o quanto algo durou, quando começou ou terminou. Fazendo isso, subestimamos a importância de lugar e posição — os espaços em que as coisas ocorrem, os espaços que esperamos preencher, os espaços em que somos rejeitados. O espaço da minha vida mudou quando mudou para Great Plains, porque o Nebraska é amplo e aberto, as margens da minha vida se estreitaram, os muros daquilo que é considerado uma pressão saudável caíram sobre mim até que eu me vi corpulenta, desajeitada, exposta. Passei mais tempo na minha nova casa, presa na contemplação solipsista de cada dor e sofrimento, o espaço se tornando tão pequeno que eu esqueci como era boa a sensação de mexer o corpo, esqueci como eu costumava correr ou me alongar. Estou ocupada demais tentando desaparecer.

Quando você é ansioso, você deixa que a doença penetre no seu confinamento. O trabalho é sufocante. A ansiedade comprime, é densa e claustrofóbica, milhões de coisas empilhadas na sua cabeça pequena. E isso aconteceu com mais força em Great Plains, a amplidão iminente pressionando a natureza desesperada da ansiedade até que atingisse a tudo. As primeiras mulheres que viveram aqui ficaram loucas: atraídas pela promessa de uma abundante utopia, chegaram para encontrar isolamento, terra estéril varrida pelo vento impiedoso.

Em Redoma de vidro, Sylvia Plath descreve o espaço da depressão de Esther como “muito extático e vazio, do jeito que o olho do furacão se sente, movendo-se pesadamente no meio de uma algazarra.” Se a depressão é o olho do furacão, a ansiedade é onde a tempestade se precipita, o medo canalizado para cima e para baixo, se tornando mais agressivo e suspenso desenfreadamente.

Muitos anos depois de ter chegado ao Nebraska, dei uma palestra sobre Redoma de vidro em uma aula de literatura de mulheres para calouros da universidade e veteranos que ficaram surpresos em ouvir a história da loucura das mulheres.

“Pensei a estrutura do curso ao redor da afirmativa e da noção de que mulheres são ‘loucas’”, comecei cuidadosamente no primeiro dia, preocupada que meus alunos saberiam que eu tinha planejado o curso porque tinha um interesse pessoal no assunto, que tinha sofrido e ainda sofria de ansiedade. Continue, “porque um aluno, no último semestre, veio ao meu gabinete para falar sobre um trabalho e, enquanto conversávamos, me disse, ‘Todas as mulheres são um poucos loucas’, e eu quis explorar essa tão comum interpretação errada.”

(Não disse mais nada sobre o aluno, que sua noiva o tinha recentemente deixado e que ele a tinha chamado de “aquele puta” e “aquela piranha” quando falava com seus amigos, ou que ele tinha escrito histórias de guerra só com personagens homens e explosivos o bastante para detonar o que fosse aquilo que o estava assombrando de sua própria experiência militar, ou que ele tinha escrito peças opinativas para o jornal da universidade sobre o perigo do feminismo e porque mulheres não deveriam ser permitidas de usar calças legging. Não disse que ele abriu bem as pernas no meu gabinete e falou que raramente fazia cursos de mulheres “porque elas eram todas um pouco loucas.” Ou que eu preferi o silêncio, sorrindo porque sabia o que aconteceria se fizesse algo diferente.

Resista, responda e enfrente a raiva masculina, inacreditável. Elabore sua oposição e enfrente o mesmo. Dê uma nota inesperada — um D, um C, um B, não importa — e tenha que se explicar. Ouça alunos dizerem “Everything is na Argument não é título de livro — é minha ex-mulher” ou “As meninas do meu grupo são mandonas, por isso que não consigo aguentar.” Ouça um aluno dizer “Ela quer que eu a estupre.” Tenha alunos homens que gritam com você, te encare e aponte o dedo na sua cara, se recuse a deixar sua sala até que um professor homem da sala ao lado intervenha. Tenha estudantes que escrevam redações defendendo suas fraternidades de acusações múltiplas de estupro ou porque as jogadoras do time americano de futebol têm de ganhar menos porque “os músculos das mulheres, assim como seus cérebros, são menores,” ou como as mulheres não seriam estupradas se namorassem caras legais. Ter alunos que escrevem “Não me importei muito com o material do curso, mas ela é gostosa” nas avaliações do curso. A primeira aula que você deu? O primeiro trabalho? Um aluno escreveu um texto detalhando porque você deveria ficar com ele, então cruzou os braços e ficou falando no fundo da sala pelo resto do semestre quando você o ignorou. E pegou aula com você de novo no outro semestre.

Quando um aluno me olhou nos olhos e disse que todas as mulheres eram loucas, senti raiva. Que depois se transformou em medo. Culpei a ansiedade por me fazer muito fraca para me defender, por ter muito medo de reagir a isso. Ansiedade, repito para mim mesma sempre, me fez ser irracional e emotiva. Está tudo na sua cabeça. Agora, com uma década de profissão e minha ansiedade mais ou menos controlada, reconheço que não estava com raiva e com medo por causa da minha loucura. Era por causa do meu gênero.)

Vi alunos naquele semestre — principalmente mulheres — aplaudirem escritoras como Virginia Woolf, cujo poema “O anjo do lar” elas compararam às mães e avós e tempos antes dos delas. Foram empáticas com Pecola, a garotinha negra que ficou louca depois de ter sido estuprada pelo pai e culpada pela cidade no livro O olho mais azul, de Toni Morrison.

Eles repetem, “Seu silêncio não vai te proteger,” depois de Audre Lorde. Eles perguntam como podem “Mergulhar no destroço” como Adrienne Rich. Lemos Jennifer Finney Bolan e outros escritores trans, e quando assistimos a Garotos não choram e eles aprenderam que Brandon Teena tinha sido assassinado não muito longe de nossa cidade, organizaram uma noite de cinema no campus. Eles enfrentaram textos complexos, e se apoiaram inúmeras vezes. Foram bondosos consigo mesmos e com outras mulheres.

Mas em Redoma de vidro, Ester Greenwood é privilegiada, insistiam, vive uma vida glamurosa e é, por isso, indigna do tornado que toma conta de sua vida. E Edna, a protagonista de O despertar, de Kate Chopin, é louca. Muito louca. Ela é rica, ela é branca, não sofreu abuso. Ela pode até ser infeliz com os papeis de gênero atribuídos a ela, mas os estudantes questionaram sua decisão de cometer suicídio, acharam que tinha sido um ato de egoísmo ou covardia, o último selo da insanidade. Sentiram pena do narrador de O papel de parede amarelo, de Charlotte Perkins Gilman, mas se referiram a ela como “louca” durante todo o semestre mesmo eu reforçando o caráter ficcional e que Gilman nunca alucinou do modo como seu narrador fazia.

Igualmente, não simpatizaram com o livro Dissipada ‑ Memórias de uma anorética e bulímica, de Marya Hornbacher, que detalha sua experiência com anorexia, bulimia e transtorno bipolar. Eles não gostaram nada de Elizabeth Wurtzel quando leram Prozac Nation, que conta histórias de sua depressão na escola e na faculdade com uma ferocidade para a qual muitos estudantes não estavam preparados. Acusaram-na de ser muito agressiva, se frustraram com o fato de ela ser “relapsa” tantas vezes e não “se controlar”. Perguntaram “Como ela pode ser tão depressiva se nada de ruim aconteceu a ela?”. Escritores aceitos em universidade prestigiosas, tirando sempre A e residentes de hospício não têm nenhuma razão para sofrer.

Meus alunos acreditavam que Hornbacher e Wurtzel, mulheres brancas de classe média que publicaram livros com 20 anos, não sofreram o bastante para justificar sua doença, eram muito bem-sucedidas para doença mental. Eles idealizaram uma versão de causa e efeito da doença mental em que algo terrível — trauma, abuso físico e sexual, racismo, homofobia, pobreza extrema, genética — levava à loucura. Me pergunto se esse era um jeito de se protegerem — a maioria de meus alunos não era muito diferente das mulheres que criticavam. Eles gostavam da adaptação de Prozac Nation, de 2001, com a belamente trágica Christina Ricci. Ricci é obscura e artística, seu amargor contrasta com sua pele de porcelana e olhos tristes, e os estudantes acharam o filme corajosos, o tipo de filme com imagens não trabalhadas e a trilha sonora indie que deixa os espectadores com gosto de angústia quando os créditos sobem. Eles não gostaram de Wurtzel, mas gostam de Hollywood, e este filme, eles insistem, redime o livro.

Antes e depois das aulas eu ouvia alunas dizendo “O cara do terceiro andar não me deixa em paz” ou “Nós precisamos sair para dançar em grupo” ou “Minha amiga foi estuprada no fim de semana”. Algumas traziam seus irmãos menores às aulas quando as escolas estavam fechadas ou tiravam um tempo para cuidar de seus pais doentes, ou usavam suas faltas para ter os bebês que tinham ocultado durante todo o semestre. Algumas choravam no meu escritório ou antes das aulas porque tinham sido estupradas e queriam se desculpar porque pareciam “fora de si”. Eu li seus trabalhados sobre depressão, ansiedade, TOC, transtorno alimentar, transtorno bipolar; mas a maioria tinha muito medo de verbalizar suas experiência em aula.

*

O silêncio das mulheres é aprendido. Desde a infância fui ensinada que mulheres da classe trabalhadora — como minha avó, minha mãe, eu — precisavam ser duras e resilientes. Não há tempo nem espaço para fraqueza, para emoção, para loucura indulgente.

A mãe de meu pai, Ginny, tinha só 1,5 metro, mas como a mais velha de sete irmãos, nascida quando sua mãe tinha só 15 anos, ela precisou ajudar a criar seus irmão, ajudar a criar sua mãe, alguns dizem, as duas mais como irmãs do que mãe e filha. Penso nela, coisinha pequena lutando para embalar bebês que não eram dela, olhando as panelas.

Mas quando Ginny casou com meu avô, com quase 2 metros de altura com um temperamento ainda pior, já era hábil em arrumar tudo e lavar para fora para ajudar na despesa da criação de seus quatro filhos. Se sentiu arrependimento sobre seu casamento, depressão pós-parto quando um dos gêmeos morreu na infância, nunca mostrou; se resignou em contrair os lábios numa linha reta como o horizonte do lugar em que tinha crescido e seu olhar na roupa em que os filhos tropeçavam pela casa, enquanto seu marido estava enfurecido. Ela passava as dobras e empilhava as roupas limpas por anos, lutando, engolindo a amargura de sua vida até o dia em que encontrou um nódulo, um caroço duro do tamanho de um melão em seu estômago.

Ginny nunca falou disso. Ela dizia que falar disso atribuía a ele poder, fazia com que fosse profético. Quando finalmente foi ao médico e ele nomeou o que ela temia, e o diagnóstico não era o que estava matando seu corpo, o estigma matou seu espírito, fez com que ficasse com tanto medo que encolheu-se, e parecia muito improvável que a mulher de língua afiada cujas histórias faziam com que ficasse maior e mais forte, que suas palavras agudas pareciam sair de uma mandíbula áspera e caída, que parecia que tinha cedido.

Minhas tias-avós, suas irmãs, era mais ou menos o mesmo: mulheres de Oklahoma costuradas em retalhos, dedos amarelos de segurar cigarros, espirais chicoteando rapidamente de suas bocas de tornado em tardes lentas. Falavam de bicicletas quebradas, cães sujos, latas enferrujadas. Foram usadas por um homem, ou outro bebê ou uma cidade pequena. Faziam cara feia quando traziam a cerveja quente, mãos nos quadris, semicerravam os olhos ao sol. Enxotavam as moscas de suas caras suadas, cuspiam palavras costuradas a sangue ou fogo. Como bronze. Essas foram as mulheres que vieram antes de mim.

A mãe de minha mãe, Glenna, era forte também, embora eu a chamasse de Poopsie, um nome doce, carinhoso. Sua história era turbulenta, de violência — se alguém tinha direito à loucura, era ela, mas ela rejeitou os antidepressivos na velhice, os medos caóticos e os sentimentos causados por eles. Casada com um alcóolatra por quase 50 anos, ela ria quando eles dançavam e se encolhia quando ele levantava a voz ou a mão. Ela nunca falou disso comigo — o avô que eu conheci me dava secretamente doces de caramelo — então eu aprendi sobre seu temperamento só depois que morreu, sempre entre sussurros, fragmentos e não a história completa.

Depois de saber a verdade entendi por que ela parecia tão feliz depois da morte dele. Quando criança, pensava que minha avó estava aliviada de tão ter que cuidar mais do meu avô — ajudando seu corpo pesado a subir na cadeira de rodas, dando comida em sua boca, limpando sua urina por seis anos antes do fim — mas agora eu acho que a razão pela qual ela assobiava com o rádio e se acabava nos doces, seu corpo ágil engordando, era porque ela estava finalmente livre.

Poopsie não se preocupava muito consigo mesmo, mas sim com seus filhos e netos. Ela me avisou da imprevisibilidade dos homens quando eu fui para a faculdade, e me repreendeu quando liguei, perguntando se eu andava de noite pelo campus, por que eu tinha decidido me mudar para uma cidade tão perigosa. Porque eu ainda não sabia sobre meu avô ou o que o mundo podia fazer com uma mulher, pensei que ela estava paranoica. Ansiosa.

A morte dela foi lenta e sem dor. Ela suportou até não poder mais. Quando os médicos descobriram seu câncer de pulmão, minha avó, fumante por mais de 70 anos, nunca pediu cigarro, seu único vício além do meu avô. O câncer desapareceu com radiação e medicação, e embora a fina pele de seus braços estivesse cheia de hematomas e incisões, ela nunca admitiu sentir dor, só reclamava que seu pé estava frio de vez em quando ou que sua unha tinha quebrado. Uma noite ela vestiu seu roupão e chinelos antes de ligar para os bombeiros e caiu no chão porque se recusou a incomodar meu pais, que viviam a uns 800 metros. Ela morreu por um momento e foi ressuscitada, passando um longo fim de semana no hospital, nos mandando embora de unhas feitas, suas mãos presas para impedi-la de remover o tubo de oxigênio. Poupe as crianças, mantenha tudo escondido. Ela ensinou isso a minha mãe, que ensinou a mim.

Minha mãe raramente demonstra dor, embora mancasse quando caminhava, uma perna mais curta que a outra, seu 1,85 metro inclinado, seus pés marcados de artérias e esporões que demonstravam a dor que sentia. Seus dedos acolchoavam retalhos que se transformavam em algo lindo, embora estivessem rígidos pela artrite. Ela sentia dores sem parar — e isso eu sei pela expressão que fazia quando se inclinava para pegar uma criança, achando que ninguém a tinha visto estremecer-se, ou o jeito que ela suspirava sozinha enquanto fazia o jantar depois de 12 horas de trabalho. Dor não era uma opção para minha mãe, nem doença — minha mãe não tirava o dia de atestado, mesmo se estivesse com febre ou vomitando. Recentemente adiou uma cirurgia para torção no pulso por quase um ano, e aprendeu a pegar as crianças que cuidava com um braço só. “Não quero deixar os pais na mão”, ela disse quando eu falei que ela precisava de um descanso. Dor não era uma opção para minha mãe, que raramente falava sobre sua infância violenta ou da violência na vida de suas crianças.

Quando olho para minha mãe, a vejo envelhecer, a tensão, e a preocupação escrita como linhas em seu rosto. Minha mãe não vai ao médico por conta de doença ou prevenção. Como muitas famílias proletárias, nós nunca nos preocupamos muito com saúde. O único medicamento que eu sei que ela tomava era Celexa, que inclusive tomava em secreto todos os dias durante anos. Silêncio, como loucura, corre desenfreado nas veias de nossa família.

Esse é o legado das minhas ancestrais — um legado atado ao gênero, à classe, à violência masculina e suas ameaças, mulheres pobres com filhos demais e sem comida o bastante, e muita mágoa e ódio, mulheres com medo demais de dizer algo sobre dor ou terror. Mulheres tão preocupadas, temerosas, que seus corpos e mentes reagiam. Mulheres destinadas ao silêncio de não falar das coisas que se passavam por sua cabeça quando estavam sozinhas, à noite, e deixavam-nas repousar em cantos escuros, onde se escondiam durante toda a vida.

*

Penso sobre seguir em frente e ficar em silêncio na minha nova casa. Suportei como um fardo minha família junto à minha doença por mais de seis meses. Aqui eu serei diferente. Aqui suportarei apenas a mim mesma. Me aguentarei. Pouparei as crianças. Penso sobre seguir em frente e ficar em silêncio enquanto organizado minha casa em Nebraska e me preparo para começar minha nova carreira e vida de professora, uma vida improvável para as mulheres da minha família que usavam a força para trabalhar. Nos últimos meses, o Celexa diminuiu minha tremedeira nas mãos e soltou os nós da minha garganta, mas ainda vejo o desastre, o medo e o apocalipse. Ainda carrego o frasco de Xanax comigo como uma dona de casa neurótica.

E faço o papel: me preocupa com minha casa. Comprei dúzias de exemplares de cores de tinta para cada cômodo, pintei tiras de cor nas paredes, e olhei de vários ângulos, tentando decidir qual tom de branco gelo dava mais paz. Me preocupei em escolher o tom errado. Me preocupei em demorar demais para escolher. Então me preocupei por estar preocupada. Algo passou em frente à minha vista. Engoli um gosto de água do mar e sangue. O mundo vibrou dolorosamente ao meu redor.

Tenho que continuar. Devo me manter quieta. Pendurei os trilhos da cortina e parafusei. Comprei lençóis para a cama, toalhas para o banheiro. Pendurei e despendurei quadros. Comprei dúzias de vasos de plantas, organizei a cozinha, as estantes. Fazia jarras e jarras de chá todo dia, e cozinhava o jantar toda noite. Trabalhei tão intensamente para fazer este espaço ser suportável que fiquei doente. É verão, mas quando as aulas começarem no outono, farei o mesmo. Em Nebraska, eu sou a senhora Celaxa: vou me chatear. E sorrir.

Traduzido do inglês: https://lithub.com/teaching-the-literature-of-mad-women/

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Mariana Almeida
Passaparola

Editora de textos, estudante de literatura & outras artes