Eu amo crianças que mentem sem motivo algum. No fim das contas, eu costumava ser uma.

Às vezes, alguém dizia: é bom demais para ser verdade. E eu ficava envergonhada…

Mariana Almeida
Passaparola
3 min readJan 31, 2019

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Quando criança, eu era uma baita mentirosa; contava toda sorte de mentiras. Eu mentia para parecer melhor do que era. Eu mentia para me gabar sobre coisas que gostaria de ter feito, mas nunca fiz. Muitas vezes eu entrava em enrascadas, porque era coerente nas minhas mentiras, confessando pecados que eu só poderia cometer dentro da mentira. Eu contava mentiras agoniantes — dolorosas de serem recordadas — improvisadas na pressa de evitar atos de violência, geralmente de parte dos garotos.

Mas as mentiras que eu mais gostava — e eu contei um bom número delas — não serviam para nada. Me esforcei bastante para cria-las e fiz tudo o que podia para que parecessem que realmente tinham acontecido. Elas pareciam tão reais que mesmo eu, enquanto falava, tinha a impressão de que não eram mentiras. Ou talvez fosse o contrário: eu contava mentiras sem considerar que eram mentiras, e então dava a elas uma aparência consistente de verdade.

Esse tipo de mentira pertence ao lado feliz da minha infância. Eu fazia sucesso entre meus amigos, seduzidos por minhas histórias; eles acreditavam por mim e poderiam ficar me ouvindo para sempre. Então, às vezes, alguém dizia: é bom demais para ser verdade. E eu ficava um pouco envergonhada; comecei a jurar que era verdade, e ao mesmo tempo eu Iamentava tudo isso. Comecei a ficar ansiosa, sentia que o jogo estava sendo arruinado. O que eu deveria fazer? Fazer com que as mentiras se tornassem repulsivas? Mas que prazer teria em conta-las se eu as fizesse entediantes, incoerentes?

Talvez fosse por conta dessa criticidade que, por volta dos 12 anos, decidi nunca mais contar mentiras. Talvez eu simplesmente quisesse me tornar adulta, e contar mentiras parecia infantil. Então, como tenho feito frequentemente na minha vida, durante a noite impus a mim uma disciplina furiosa, e parei de contar mentiras. Para compensar, me tornei uma boa oradora em todos os tipos de eventos. Narrei meus sonhos e pesadelos, me esforçando em ser extremamente fiel. Resumia romances e filmes para meus amigos, e eles eram muito detalhados. Às vezes eu também narrava coisas que tinham realmente acontecido comigo — com cuidado, porém, para que não fossem ajustadas e fluíssem melhor para que fosse mais cativante.

Mesmo assim, durante anos, senti saudade das longas, convincentes e gratuitas mentiras da infância: tinha a impressão que fossem mais verdadeiras do que o que tinha acontecido de verdade. Essa nostalgia foi provavelmente o que me levou a dar um estilo de narrativa aos diários que mantinha, e comecei a escrever romances nos quais podia explorar as possibilidades de tipos particulares de mentira que compunham a história.

Enfim, nos romances ou não, a nostalgia permaneceu. Eu amo crianças que mentem sem motivo algum — imediatamente reconheço o prazer. E também reconheço a angústia — a angústia de quando a criança mente para se proteger — porque o mundo é cheio de armadilhas e humilhações, e a mentira pode nos dar, às vezes, um pouco de alívio.

(Elena Ferrante para o The Guardian. Traduzido do inglês, da versão de Ann Goldstein)

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Mariana Almeida
Passaparola

Editora de textos, estudante de literatura & outras artes