Mais que fantasmas: a explosão da literatura fantástica feminina

Mariana Almeida
Passaparola
5 min readJan 6, 2020

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Não foram poucas as escritoras espanholas que exploraram o mundo do irreal ao longo do século XX: desde a pioneira Emila Pardo Bazán a Cristina Fernández Cubas, passando por Ana María Matute, Rosa Chacel, Carmen Martín Gaite ou Pilar Pedraza. O mesmo se pode dizer do que ocorre em outras literaturas em espanhol, em que o rol de escritoras é impressionante: basta pensar em Elena Garro, Silvina Ocampo, Amparo Dávila, María Luisa Bombal ou Rosario Ferré.

Com a mudança de milênio, produziu-se uma autêntica explosão de vozes femininas que cultivam o fantástico e o insólito em espanhol. Uma explosão não só importante por seu número, mas também por seu conteúdo. Essas vozes estão propondo novos caminhos e desenvolvendo temas e formas ausentes ou pouco exploradas nas obras dos autores masculinos.

Para além da vontade de subverter os limites do real, há um aspecto essencial que as une: sua vontade de empregar o fantástico e o insólito para refletir sobre a posição das mulheres na sociedade, para subverter os modelos femininos tradicionais.

No entanto, resulta, no mínimo, insatisfatória a presença dessas escritoras nos cânones literários, nos estudos acadêmicos, nos suplementos culturais ou nos prêmios literários (salvo honrosas exceções). Uma omissão negativa tanto para o conhecimento do panorama do fantástico como da produção cultural feminina.

Por isso queremos reivindicar e, sobretudo, dar visibilidade à narrativa escrita por mulheres que se movem para além dos escritos marginais do realismo. De reclamar seu lugar, sua presença, em um âmbito da criação que — para alguns — ainda parece pertencer aos homens. O mesmo se pode dizer do que ocorre no cinema, na televisão e nos quadrinhos. É o que busca, por exemplo, do ciclo Fantástica & Insólitas, que se celebra até junho de 2020 na Universidade de Alcalá.

Mundos fantásticos que reivindicam os excluídos

São muitas as escritoras atuais que poderíamos evocar aqui, algumas das quais figuram no ciclo Fantástica & Insólitas: as espanholas Patricia Esteban Erlés e Cristina Jurado, as argentinas Mariana Enríquez e Samantha Schweblin, as mexicanas Cecilia Eudave e Daniela Tarazona, as peruanas Yeniva Fernández e María Consuelo Villarán, a equatoriana Solange Rodríguez Pappe, a chilena Alejandra Costamagna, a colombiana Gabriela Arciniegas… Esteban Erlés, Eudave e Enríquez, em particular, são as que possuem maior impacto e exemplificam muito bem essas novas vias de exploração do que se oculta por trás dos limites do real.

A espanhola Patricia Esteban Erlés é uma excelente criadora de mundos perversos e perturbadores. Em suas atmosferas opressivas se combinam o fantástico, o humor negro e o grotesco para refletir um profundo ceticismo com respeito às relações humanas (a família e as infidelidades amorosas são recorrentes em seus contos). Daí que muitos de seus personagens sejam solitários e desencantados, presos em uma realidade que os pressiona.

Outro aspecto essencial em sua narrativa é a presença do monstro, em muitas de suas variantes, quase sempre tratado por uma perspectiva familiar, cotidiana, até ridícula, mas sem que com isso perca sua dimensão ameaçadora. Entre esses monstros, é evidente sua predileção pelos fantasmas, ainda que também costume recorrer ao duplo, bruxas ou seres metamorfoseados. Suas garotas perversas e diabólicas merecem menção à parte, com presença constante no livro de microrrelatos Casa de muñecas (2012) e que tem seu eco nas meninas atormentadas no hospício de Santa Vela em que est[a ambientada sua última obra, Las madres negras (2018), uma novela coral sobre a obsessão patológica, a repressão do diferente, a infância e a família, a nefasta influência da religião, a paixão (amorosa e sexual) e a amizade.

Crítica social em mundos irreais

A mexicana Cecilia Eudave, contista, novelista e estudiosa do fantástico, explora os caminhos do delirante e do monstruoso em textos que normalmente movem-se pelo “inusual” do que pelo estritamente fantástico. Sua novela Bestiaria vida (2008) é um perfeito exemplo: a narradora identifica os membros de sua família como monstros (súcubo, basilisco, licantropo etc.) não só para definir suas qualidades como também para mostrar como se relacionam e, sobretudo, seu (perverso) efeito sobre a identidade da protagonista. Também merece destaque seu livro de microrrelatos Para viajeros improbables (2011) que é composto de um catálogo de países inventados, de prodígios físicos e mentais, de animais e seres inquietantes, que também tem como objetivo denunciar a crueldade e a ignorância da sociedade contemporânea.

Por último, a argentina Mariana Enríquez, recente ganhadora do Prêmio Herralde de Romance, combina o fantástico e o terror natural nos contos que compõem dois de seus livros mais impactantes: Los peligros de fumar en la cama (2009) e As coisas que perdemos no fogo (2016). Em ambos, constrói um retrato da sociedade contemporânea no qual se mesclam o passado histórico mais sangrento da Argentina (a Ditadura) e os mitos (e monstros) que compõem sua cultura urbana.

Assim, as vozes femininas, a visão sinistra da infância, a maternidade e seus traumas, a violência de gênero, os desaparecidos da repressão da dituradura (que voltam como fantasmas), a indiferença diante da pobreza, a monstruosidade… servem para que a autora reflita sobre os horrores cotidianos — reais ou ficcionais — que desenham o que somos.

A monstruosidade como denúncia

Se as comparamos aos autores masculinos que cultivam esses gêneros, destaca-se seu tratamento muito diferente com relação aos personagens femininos. Especialmente, a constante presença do tema da construção da identidade.

Se o fantástico é um discurso ambíguo e elíptico que expressa o excluído pela cultura, não é difícil compreender por que esse modo de representação é adequado para a expressão do sujeito feminino, tradicionalmente silenciado e marginalizado. É um uso feminista do fantástico casa vez mais usado e que se manifesta em várias características recorrentes nas obras dessas autoras: vozes femininas que expõem em primeira pessoa a experiência do fantástico e do inusual; e personagens femininos cujas histórias consistem em um constante movimento de reconstrução identitária frente à identidade estereotipada construída pelo discurso hegemônico patriarcal.

Nessa reconstrução é vital a subversão dos papeis femininos, e a destacada presença da monstruosidade como forma de denúncia e transgressão dos modelos tradicionais, tanto no que se refere à representação do corpo como à violência e ao horror como reflexo da opressão contra a mulher. O fantástico escrito por mulheres tem uma clara perspectiva política e reivindicadora, na qual o não realista se converte em uma ferramenta ideológica de denúncia social e genérica.

Traduzido do espanhol e publicado originalmente em: http://theconversation.com/mas-que-fantasmas-la-explosion-de-la-literatura-fantastica-femenina-124612?fbclid=IwAR3UCgXtyreOy4J3G4HXPsDMylGs6TYYjKMRnrBKd8QFbYOP4nHXFzOHxlg

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Mariana Almeida
Passaparola

Editora de textos, estudante de literatura & outras artes